Minha recensão no Ina semana passada:
O nome do físico soviético Boris
Hessen (1893-1936) pouco dirá ao público em geral. Notabilizou-se como filósofo
e historiador de ciência, que alimentou nos anos 1920 e 1930 uma polémica
filosófica no quadro da ideologia comunista que reinava na antiga União
Soviética. Os dois lados eram comunistas e, portanto, adeptos do materialismo
dialéctico de Marx e Engels. Mas uns punham mais o foco no «materialismo»,
sendo por isso mecanicistas, e outros no «dialéctico». Os primeiros estavam
mentalmente formatados pela física clássica, ao passo que os segundos, embora
com a mesma formação, estavam abertos às teorias então emergentes da física moderna,
como a teoria da relatividade de Albert Einstein e a teoria quântica de Werner
Heisenberg e Erwin Schrödinger. Os primeiros achavam essas teorias produtos da
ciência burguesa ocidental, arredada dos problemas, interesses e preocupações
dos operários camponeses.
Quando Vladimir Lenine morreu em
1924, ficou vago o lugar de Presidente do Conselho do Comissariado do Povo da
União Soviética que ele ocupava desde 1922, ano do fim da Guerra Civil russa e
da criação da União Soviética, que duraria até 1991. O corpo de Lenine (sem o
cérebro, que foi removido), ainda hoje está exposto na Praça Vermelha de
Moscovo. Josef Estaline ficou à frente do Partido Comunista da União Soviética
até à sua morte, em 1953, tornando-se na prática o líder do país, embora só a
partir de 1941 (em plena guerra mundial) se tenha tornado presidente do Conselho
de Ministros. Estaline foi o responsável da Grande Purga, ou Grande Terror, perpetrada
entre 1936 e 1938, que causou mais de um milhão de mortos. Entre elas estavam
membros do Partido Comunista, funcionários do governo e até altas patentes do
Exército Vermelho. Uma das primeiras vítimas foi precisamente Hessen, passado
pelas armas em 20 de Dezembro de 1936, ao fim de quatro meses de prisão e após
um julgamento sumário à porta fechada. De nada lhe valeu ser membro do Partido Comunista,
para além de cientista e intelectual proeminente.
Todos os escritos dele foram
banidos, como era costume nessa época. Caiu sobre ele um silêncio pesado,
que só cessou em 1956, três anos após a morte de Estaline, quando o novo secretário-geral
do Partido, Nikita Khrushchev, empreendeu uma reabilitação de algumas das vítimas.
O fim trágico de Hessen foi partilhado por muitos outros cientistas: os que não
experimentaram a morte instantânea foram condenados à morte lenta em campos de trabalho
na Sibéria. Foi o caso muito conhecido do geneticista Nikolai Vavilov, uma das
maiores autoridades soviéticas em botânica, que faleceu num desses campos,
enquanto o charlatão Trofim Lysenko ocupava o seu lugar na Academia Lenine das
Ciências Agrícolas (ver, por exemplo, Simon Ings, Estaline e os Cientistas,
Temas e Debates, 2017). Só contava a obediência cega ao Grande Líder. Por
ironia do destino, Lavrenti Beria, o maior executor da Grande Purga como Comissário
do Povo para o Interior, foi preso e executado pouco depois de Estaline ter morrido.
Acaba de sair na editora Parsifal
o livro Einstein e Lenine em Moscovo com o subtítulo Polémicas filosóficas
da ciência soviética, que reúne um conjunto de nove textos de Hessen,
escritos entre 1927 e 1931. A selecção de textos, da tradução do russo e de uma
extensa (42 páginas) e bem fundamentada introdução, são do físico Rui Borges (n.
1973), que foi docente e investigador na Irlanda, Reino Unido, Brasil e
Portugal.
Borges é o autor de um outro
livro sobre o mesmo personagem: Boris Hessen. O Cientista Subversivo
(Ela por Ela, 2015), que contém uma tradução do texto mais famoso de Hessen, que
escreveu em 1931 para o 2.º Congresso Internacional de História da Ciência e daTecnologia
em Londres, «As raízes sociais e económicas dos Principia de Newton». Não
só é uma das primeiras análises marxistas da obra principal de Newton, como é
um marco da história da ciência, uma vez que inaugurou uma visão dita externalista
dessa história, que enfatiza o contexto social, económico e político da criação
científica. Um notável grupo de intelectuais britânicos foi marcado por esse
trabalho: o historiador de ciência John Bernal, o biólogo John Haldane, o sinólogo
Joseph Needham e o historiador Eric Hobsbawm. O artigo de Hessen está, aliás,
na base de uma certa corrente da actual sociologia das ciências. A delegação
soviética enviada para Londres, chefiada
por Nikolai Bukharin (que foi líder de uma corrente comunista dita de direita
em contraste com a corrente dita de esquerda de Leon Trotski) incluía um
controleiro, que vigiava Hessen, já na altura considerado suspeito de crimes de
opinião.
Hessen provém de uma família judaica
(tal como Lenine, um facto que foi ocultado durante muito tempo) de Kropyvnytsky,
hoje na Ucrânia. Estudou Física, primeiro na Universidade de Edimburgo, na
Escócia, em 1913-1914, e depois na Universidade de Petrogrado (hoje São Petersburgo).
Juntou-se ao Exército Vermelho na Guerra Civil, graduando-se em 1929 no Instituto
do Professorado Vermelho em Moscovo. Em 1931 passou a ser catedrático de Física
na Universidade Estatal de Moscovo e em 1933 foi eleito membro da Academia de Ciências
da Rússia. Entre 1934 e 1936 foi vice-director do Instituto de Física de Moscovo,
dirigido por Serguei Vavilov, irmão do famoso geneticista. A morte aos 43 anos
impediu-o de continuar uma promissora carreira. A física soviética brilhou pontualmente
no século XX por exemplo com a atribuição do Prémio Nobel em 1962 a Lev Landau,
um cientista que considerava Estaline um ditador da pior espécie, mas que teve
o cuidado de não exteriorizar a sua posição, trabalhando ordeiramente dentro do
sistema. Ficou lendária a sua luta contra a morte após um acidente de automóvel,
pouco antes do Nobel.
O livro agora publicado inclui nove
artigos, escritos por vezes em co-autoria, saídos todos, excepto o último, na
revista Sob a Bandeira do Marxismo, um órgão comunista, embora não
oficial, de discussão filosófica. No primeiro, «O 5.º Congresso dos Físicos
Russos», Hessen critica o seu colega Arkadi Timiariazev por ele ter contestado
Einstein, um assunto que aprofunda no segundo artigo, «A relação do camarada
Timiariazev com a Física Moderna» (é curioso que também na Alemanha Einstein tenha sido
perseguido, acusado, não de idealismo, mas de fazer «ciência judaica»). O
terceiro é «Recensão a Dialéctica na Natureza», uma obra colectiva dos
mecanicistas, e o quarto «Prefácio aos artigos de Einstein e J. J. Thomson (no 200.º
aniversário da morte de Isaac Newton)» discute as posições sobre Newton de dois
dos maiores sábios da época. O quinto é uma nota sobre Marian Smoluchowski, o físico
polaco que descreveu, pouco depois de Einstein mas de forma independente, o
movimento browniano ou aleatório de partículas. O sexto, mais longo, «Materialismo
mecanicista e Física Moderna» aborda a objectividade do acaso. O sétimo, de
teor marcadamente político, «As raízes filosóficas do oportunismo de direita», confronta
os opositores ideológicos. O oitavo é um abaixo-assinado de resposta a um
artigo do Pravda: «A luta em duas frentes da filosofia». Por último, «Éter»
é uma entrada da Grande Enciclopédia Soviética sobre o meio hipotético que
Einstein aboliu em 1905. Este escrito, um pouco confuso, provocou a chacota de
jovens físicos como Landau e George Gamow. Este último haveria de se exilar nos
Estados Unidos, onde publicou várias obras de divulgação científica, avultando O
Senhor Tompkins no País das Maravilhas, que Rómulo de Carvalho traduziu para
a colecção Cosmos (1942), de Bento de Jesus Caraça.
O livro tem Lenine no título. É
bem conhecido que, no VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, em 1920, foi
apregoada a tese leninista: «O comunismo é o poder soviético mais a electrificação
de todo o país». O Partido Comunista sempre se interessou pelas aplicações da
ciência que traduziam progressos materiais. Mas o interesse de Lenine pela
física é mais fundamental. Ele é autor do livro, de 1909, Materialismo e
Empiriocriticismo (edição portuguesa: Avante, 1982), escrito no exílio em
Genebra e Londres com uma agenda política pois visava atacar as ideias do
camarada Alexander Bogdanov, que foi expulso do comité central. Essa obra,
considerada uma referência do materialismo dialéctico, foi de leitura
obrigatória em toda a União Soviética e países satélites. Comprei na República
Democrática Alemã manuais de física que tinham longos prolegómenos sobre o
marxismo-leninismo, citando-o, antes de entrarem nas matérias científicas. Para
Lenine existia um mundo real e objectivo, que a nossa mente procurava fixar,
opondo-se por isso às teses idealistas, segundo as quais os objectos só existem
na nossa mente. Ser apodado de idealista era um perigoso insulto, pois Lenine
era considerado a autoridade suprema. O culto dos seus escritos e da sua
personalidade foi levado ao extremo. Estaline, por exemplo, fez tudo para
aparecer como único e fiel herdeiro de Lenine. A referida obra de Lenine
continua a ser estudada: foi o tema da tese de doutoramento de Ana Henriques
Pato, dirigente comunista portuguesa: Materialismo e Idealismo na Física do
Final do Século XIX e Início do Século XX… (Nota de Rodapé, 2015).
O livro organizado por Rui
Borges, com bibliografia, um conjunto de fotografias e índice onomástico,
interessa não apenas aos cientistas, historiadores e filósofos, mas também a
todos os curiosos pelo debate de ideias que ocorreu no início do que Hobsbawm
chamou a «era dos extremos».
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