A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o mais importante think-tank da educação global tem, nas últimas décadas, no âmbito do seu projecto "Schooling for Tomorrow" (SfT), delineado aquilo que designa por “cenários para a educação do futuro”. Sobre o assunto escrevi, com Cátia Delgado, um artigo (ver aqui).
Um desses "cenários", que tem vindo a ser acentuado, é a dissolução da escola como instituição destinada a assegurar a escolaridade ou escolarização (aqui). Na última versão dos "cenários" ("Global Scenarios 2035"), tal proposta (que pretende impôr) não deixa margem para dúvidas (ver aqui, aqui, aqui e aqui).
Noto que se trata de uma ideia que a organização apresenta como inovadora, mas devemos relembrar que a desescolarização da escola foi uma das bandeiras da ala libertária do Movimento da Escola Nova de finais do século XIX, princípios do século XX.
Mesmo que consideremos a ideia absurda, a verdade é que ela, em tempos mais recentes, tem feito o seu caminho, tem-se infiltrado nos modos de pensar social, nas decisões políticas e, como não podia deixar de ser, tem desencadeado múltiplas "experiências inovadoras" que são invariavelmente apresentadas como muito bem sucedidas.
Passo-lhe a palavra, naquilo que entendo ser o mais relevante para o esclarecimento do desafio, notando a responsabilidade que ele imputa - e, no meu entender, bem - aos educadores, que deveriam estar atentos aos avanços deseducativos do mundo empresarial-financeiro e político (por esta ordem):
"É uma realidade em expansão, que se acelerou após a pandemia e que quase ninguém quer ver: já não há escolas, há alunos matriculados numa “certificação internacional” (...), que estudam sobretudo em casa, com apoio de plataformas eletrónicas de ensino (com todo o tipo de recursos didáticos para cada aluno aprender com eficácia) e inseridos em pequenos grupos que se encontram semanalmente em pequenos espaços das cidades e vilas do país.
Aqui, cada aluno(a) continua a trabalhar no seu portátil e pode interagir com os outros em workshops vários e conta com um learning coach. Os materiais disponíveis nas plataformas são quase inesgotáveis: aulas muito bem “dadas” por docentes muito experientes, materiais para estudo e apoio ao “saber mais”, exercícios práticos que a IA consegue personalizar na perfeição, sistemas de conversação com professores especialistas “eletrónicos”, avisos e alertas, etc.
Ou seja, cada aluno tem aqui uma oportunidade incrível de gerir autonomamente e de modo livre as suas aprendizagens, podendo assim escapar às “aulas de seca”, onde teria de ouvir professores a debitar matéria em P.Point, além de não ter de aturar colegas diferentes, alguns deles inoportunos, indisciplinados e até violentos.
Não será este o melhor dos mundos?
Nas novas “escolas algoritmizadas”, os “professores eletrónicos” (PE) são todos “excelentes”, serão necessários muito poucos professores de carne e osso e os que subsistirem terão de se transformar em learning coach ou em personal trainers. Os “PE” não se cansam nem se desgastam, produzem todo o tipo de relatórios para a tutela, ao minuto e sem qualquer reclamação, não faltam, não entram em conflito com a mesma tutela nem fecham as escolas.
A escolarização tende assim a abandonar o espaço público e a remeter-se para o consumo particular e individual. A circulação internacional dos novos cidadãos globais fica desde logo assegurada e também deixa de haver políticas nacionais de educação (já não deixou de haver há muito?), basta estas novas “escolas” seguirem as orientações programáticas das grandes agências mundiais, como a OCDE.
Pode, assim, deixar de haver escolas, essas instituições onde se convive, aprende e traba-lha em conjunto.
Nós damos a lenha para essa fogueira
(...) Que será feito da riqueza relacional da escola (...) e do próprio acesso mediado ao conhecimento? Que sucederá se perdermos progressivamente o ambiente escolar de socialização e de aprendizagem da vida em comum? Que será feito da própria sociedade como a conhecemos e da possibilidade de vivermos uns com os outros, se tudo se fecha sobre cada indivíduo e em redor de grupos de mesmidade?
(...) se é verdade que o mercado espreita todas as oportunidades, também não é menos verdade que as políticas educativas têm aberto as portas para este futuro sem escolas poder acontecer (...).
Alguns ainda agitam a bandeira: e a escola pública? A resposta é clara e o jogo está a ser jogado à vista de todos: a escola pública corre sérios riscos de ser a opção de excelência para os pobres, para os que não conseguem escapar-lhe (...).
As plataformas eletrónicas e a IA promovem muito melhor a competição e (...) fazem-no de modo brilhantemente individualizado, apoiam cada aluno no minuto certo e guiam-no na senda de uma completa “aquisição das aprendizagens essenciais”; cada aluno pode gerir o seu quotidiano, aprender a qualquer hora e em qualquer lugar, ao ritmo que pretender.
Quanto mais a educação for um bem de “consumo alienado”, mais se desfaz o laço social que ela contém e a sua utilidade passa a declinar-se em redor da sua mensurabilidade.
Quanto mais tornamos a escola antropologicamente exígua e axiologicamente estreita, liofilizando o ensino e a aprendizagem, mais estamos a contribuir, nós mesmos, para a algoritmização da educação.
Não, o que acontece não é apenas obra dos outros, dos perversos que seguem a lógica do mercado educacional, nós próprios somos os atores-autores que, provavelmente sem o sabermos, já fomos capturados pela sua lógica (...).
Os avanços da tecnologia estão a ser e serão os principais fatores da mudança do subsistema escolar, não são os reformadores educacionais, os belos decretos e Projetos Educativos ou os intermináveis Planos de Atividades ou os inenarráveis Relatórios de Autoavaliação. Eles enchem-nos os dias, esgotam-nos o ser, esmagam-nos o sentir, mas não nos enriquecem.
Enquanto uns continuam a esgrimir as utopias educacionais dos séculos XIX e XX (...) as distopias estão a encarregar-se de fazer o trabalho sujo de as corroer e destruir (...).
Optar por sair à rua e gritar até à exaustão “escola pública”, “escola pública”, sem mais, é pouco, é mesmo muito pouco, cheira a fim de época, a estertor (...)."
2 comentários:
Dou de barato que nós, os professores, nos deixámos manietar pelas grandes políticas económico-financeiras de organizações internacionais, como a OCDE, e por filosofias exóticas, como o ubuntu, e agora ei-nos aqui sem autonomia técnico-científica ou pedagógica.
Com papas e bolos se enganam os tolos!
Prometeram-nos um mundo feito de facilidades e felicidade se desistíssemos de ensinar e , infelizmente, acreditámos que a escola devia se feita, essencialmente, de grelhas, perfis à entrada e à saída, Projetos Educativos, Planos de Atividades e Relatórios de Autoavaliação, para beneficiar os pobrezinhos. O resultado já está à vista: o pouco que ainda resta da escola pública, está transformada num inferno, cheio de indisciplina e violência, para alunos pobrezinhos e professores proletarizados!
Precisamos, em suma, caro Anónimo, de pensar o que, como professores, devemos fazer, sendo que a nossa acção tem consequências... nos mais jovens, na sociedade, no mundo. Cordialmente, MHDamião
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