segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

OS BÁRBAROS DO SUL

Meu artigo no último As Artes entre as Letras:

O recente livro. do historiador Luís Filipe Thomaz Nanban-Jin. Os Portugueses no Japão, publicado pela Gradiva, fornece um excelente pretexto para falar das relações entre Portugal e o Japão. Nanban-Jin significa “Bárbaros do Sul,” nome que os japoneses chamaram aos primeiros portugueses que demandaram por mar as suas ilhas. A obra tem duas partes. Na primeira, «De Sagres a Tanegaxima, texto que tinha servido de introdução à História dos Portugueses no Extremo Oriente (A. H. de Oliveira Marques, dir., Fundação Oriente, 1998), o autor expõe, num resumo magistral, a expansão marítima portuguesa nos séculos XV e XVI. Na segunda, «Os Portugueses no Japão,» que reproduz o conteúdo escrito de uma luxuosa obra anterior que não se encontra facilmente (CTT, 1993), o autor detém-se nos primeiros contactos luso-nipónicos. Se a primeira parte tinha figuras a preto e branco, a segunda tem, além delas, um extratexto a cores, que inclui os famosos biombos Nanban.

Um outro livro recente que também fala do Japão, embora com um olhar mais actual, Uma Varanda sobre Tóquio (Avenida da Liberdades Editores), foi escrito pelo gestor David Lopes, que trabalhou no Japão dirigindo uma empresa local durante os anos da COVID-19. O autor dá-nos, numa espécie de «dicionário fundamental» trilingue (português, inglês e japonês), as impressões dele sobre o «país do Sol nascente». Muito curioso, quer no conteúdo quer na forma, com vinhetas para cada entrada. Apenas um pouco menos recente é um outro livro sobre o Japão, Tóquio. Diário. 1946. Saído em 2019 (2.ª ed., 2022), é seu autor Alberto Franco Nogueira, embaixador português em Tóquio em 1946 (portanto, no imediato pós-guerra), que haveria de ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar. A obra foi publicada pelos herdeiros do diplomata. Tal como Lopes também Franco Nogueira se mostra fascinado pelo país que o acolheu. Tal como ele, primeiro estranhou e depois entranhou.

Mas volto à primeira obra. Luís Filipe Thomaz, autor de A Expansão Portuguesa. Prisma de muitas faces (Gradiva, 2021), é um dos nossos maiores historiadores. Organizou o Instituto de Estudos Orientais da Universidade Católica Portuguesa e, reformado, passou a monge da Igreja Ortodoxa. Fiquei um dia siderado a ouvi-lo recitar em sânscrito na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Em Nanban-JIn começa com uma síntese dos Descobrimentos Portugueses, iniciados com a conquista de Ceuta em 1415 e  encerrados com a chegada dos primeiros portugueses ao Japão em 1542 ou 1543. Não há a certeza da data, mas o mais provável é ter sido em 1543, pelo que no ano passado se celebraram os 480 anos desse evento, ocorrido na ilha de Tanegaxima, no Sul do arquipélago nipónico, onde todos os anos se organiza a o Festival da Espingarda, uma vez que os portugueses foram os introdutores dessas armas no Japão. Os primeiros lusos podem ter sido três comerciantes que, partidos das costas da China, aportaram à ilha, apanhados por uma tempestade. Teria sido, nesse caso, uma chegada acidental e não motivada pelos negócios e muito menos pela conquista. Não se percebe muito bem porque demorou 30 anos  desde a chegada lusa à China, protagonizada por comerciantes vindos de Malaca em 1513, até à chegada ao Japão, quando este já era conhecido há muito (Marco Polo chamou-lhes Cipango). Uma hipótese pode ser a dificuldade na utilização de portos chineses. Outra a falta de interesse comercial por ilhas, que se haveriam de revelar ricas em prata.

Depois de ter integrado a «descoberta» do Japão na saga dos Descobrimentos, Thomaz apresenta o quase um século em que floresceram as relações entre portugueses e japoneses. O contributo dos missionários, em especial os jesuítas, foi essencial: conseguiram o baptismo de grande número de japoneses, mais do que haviam conseguido na China. Mas, em 1639, após a unificação política do Japão, os triunfantes expulsaram os cristãos portugueses, pondo fim à convivência entre os dois povos. Os portugueses eram chamados «bárbaros» porque não partilhavam os costumes locais, como o de comer com pauzinhos (ainda comiam à mão, numa época em que, no Ocidente, o garfo começava a ser utilizado.) Vinham de Macau em naus grandes, pintadas com preto de pez, o que originou o nome de «barcos negros» (aparecem nos  biombos Nanban). Dois personagens famosos chegaram ao Japão no século XVI: o missionário jesuíta São Francisco Xavier e o andarilho e escritor Fernão Mendes Pinto (os dois cruzaram-se em Malaca e, talvez devido a esse encontro, Mendes Pinto foi noviço dos jesuítas). Thomaz relata o encontro dos ocidentais e orientais numa perspectiva de história global, bem longe de um olhar colonizador. Mostra que, nessa época, não era Lisboa que comandava o que os portugueses faziam no Extremo Oriente, já que os negócios e a religião mandavam mais do que a política. Era, como já alguém disse, a «cauda que fazia abanar a cabeça do cão».

A cidade de Nagasáqui, que sofreu os horrores da bomba em 1945, foi criação ocidental, pois antes de os portugueses chegarem não passava de uma aldeia piscatória. As vítimas da bomba não foram tantas como em Hiroxima pois o urbanismo se fez em bairros nas colinas sobre a baía portuária e não numa rede quadriculada plana como era usual no Japão. Mas Nagasáqui já tinha vivido outra tragédia, embora menor. Em 1639 foi  aí perpetrado um massacre contra uma embaixada portuguesa: 48 pessoas foram executadas, por não terem renunciado à sua fé, enquanto 13 foram mandadas de volta para Macau de modo a divulgarem a noticia. Escreve Thomaz no fim do seu livro: «Foi o episódio da Embaixada Mártir com que ao cabo de 96 anos de frutuoso contacto se encerraram, até à reabertura do Japão em pleno século XIX, as relações luso-nipónicas.»

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