Meu artigo no último JL:
Não se sabe ao certo quando
nasceu Luís de Camões, embora o ano de 1524 seja convencionalmente aceite. Em
1924 celebraram-se os seus 400 anos e em 2024 deviam-se celebrar os 500 anos. De
facto, o governo nomeou uma comissária das comemorações, a camonista Rita
Marnoto, professora da Universidade de Coimbra, mas parece que se esqueceu de
orçamentar a verba necessária.
A discussão sobre o nascimento do
nosso maior poeta tem sido curiosa. Há, inclusivamente uma previsão astrológica
feita pelo poeta Mário Saa, pseudónimo de Mário Cunha e Sá (1893-1971), que estudou
Engenharia, Matemática e Medicina em Lisboa sem nunca ter acabado nenhum curso.
No seu livro As Memórias Astrológicas de Camões (Empresa Nacional de
Publicidade, 1940; e Edições do Templo, 1978), concluiu, com base nalguns
poemas e numa carta astrológica (a capa original de Eduardo Malta representa Camões
empunhando essa carta), que o poeta nasceu em 23 de Janeiro de 1524, às 20h40.
Esta conclusão não tem obviamente grande valor, conforme reconheceu o filósofo
Josué Pinharanda Gomes (1939-2019), na longa recensão que fez ao livro de Saa num
seu artigo em Mario Saa. Poeta e Pensador da Razão Matemática (Manuel
Cândido Pimentel e Teresa Dugos, eds., Universidade Católica, 2012). Em 2009,
no blogue De Rerum Natura, a matemática Carlota Simões retomou a data de
Saa, baseando-se nalguns versos de um soneto (“O dia em que eu nasci morra e
pereça”) e na ocorrência de um eclipse solar precisamente um ano antes da alegada
data de nascimento. As únicas coisas certas são que esse eclipse existiu e que
o suposto dia de aniversário foi a um sábado (Saa escreveu ao Observatório
Astronómico de Lisboa, que lhe confirmou que 23 de Janeiro de 1524 foi um
sábado). Os estudiosos de Camões continuam divididos, mas praticamente ignoram
a conjectura de Saa.
No tempo de Camões a astrologia confundia-se com a astronomia,
que só viria a emergir tal como é hoje com os trabalhos de Galileu e de Kepler
no início do século XVII (Os Lusíadas saíram em 1572). Para reconhecer
que o poeta tinha um vasto conjunto de conhecimentos astronómicos basta ler a
sua epopeia. Luciano Pereira da Silva (1864-1926), professor de
Matemática da Universidade de Coimbra, escreveu uma série de artigos na revista daquela
instituição entre 1913 e 1915, que saíram numa separata intitulada A
Astronomia nos Lusíadas (Imprensa da Universidade de Coimbra, 1915), da
qual foi feita uma reedição pela Junta de Investigações do Ultramar em 1972,
com introdução de Luís de Albuquerque,
também ele professor de Matemática em Coimbra e especialista em história da náutica.
Ainda hoje esse livro é indispensável para quem queira conhecer a ciência
contida n’Os Lusíadas e as eventuais fontes do seu autor. Em 2014 o
Museu da Ciência de Coimbra organizou um colóquio, do qual foram publicadas
actas, para assinalar os 150 anos de Pereira da Silva.
Camões, que deve ter estudado em
Coimbra, estava bem informado sobre o sistema do mundo ptolemaico, que então
vigorava (e que era ensinado na Universidade por Pedro Nunes, o detentor da
cátedra de Matemática, seu contemporâneo).
Pode perguntar-se por que razão não usou o sistema heliocêntrico,
publicado no famoso livro de Copérnico de 1543. Nunes conhecia esse livro, mas
nem ele nem os outros cientistas da época lhe deram grande atenção. Só mais
tarde Galileu e Kepler fizeram vingar o heliocentrismo. Um livro bastante útil
sobre a ciência n’Os Lusíadas é do astrónomo brasileiro Ronaldo Rogério
Mourão (1935-2014), Astronomia em Camões (Lacerda, Rio de Janeiro,
1998). O mais moderno em Camões não é tanto a «máquina do mundo» que ele
descreve em pormenor, mas o relevo da observação e experiência dos «rudos
marinheiros» (escreveu no canto V: «Os casos vi, que os rudos marinheiros,/ Que
têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando
as cousas só pola aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só
por puro engenho e por ciência/ Vêm do mundo os segredos escondidos,/ Julgam
por falsos ou mal entendidos.» Não podemos esquecer que o próprio Camões
embarcou para a Índia. O poeta renascentista, ao descrever a viagem de Vasco da
Gama, revelou-se pioneiro do espírito empírico que haveria de reger a ciência
moderna.
Foi na Índia que Camões publicou
os seus primeiros versos impressos. E aqui há uma curiosa associação à ciência:
eles foram publicados como introito a uma obra científica, Colóquios dos
Simples, do médico Garcia de Orta, impressos em Goa em 1563. Camões deve
ter sido amigo de Orta, pois só assim se entende a aparição de numerosas e
precisas referências a plantas n’Os Lusíadas. O botânico Jorge Paiva, da
Universidade de Coimbra, num artigo sobre a flora na obra de Camões (em António
Andrade et al., Humanismo e Ciência: Antiguidade e Renascimento,
Universidades de Aveiro e Coimbra, 2015), identificou c. 50 espécies n’Os
Lusíadas e c. 35 na lírica, sendo orientais a maior parte das que aparecem
no poema épico (há, porém, plantas dos campos do Mondego na ilha dos Amores).
Antes de Paiva, outros especialistas trataram a flora n’Os Lusíadas como
o Conde de Ficalho (1837-1903), que fez uma edição dos Colóquios dos Simples
(1891-92) e que escreveu a Flora nos Lusíadas (1880; ed. recente: Hiena,
1994). E outra é o livro do engenheiro agrónomo Joaquim Vieira da Natividade A
Flora na Lírica de Camões (Academia das Ciências, 1970)
Outras ciências podem ser
referidas a propósito de Camões. Jorge de Sena e Vasco Graça Moura trataram facetas
matemáticas, designadamente a “divina proporção,” em obras bem conhecidas. Orlando Ribeiro estudou a geografia camoniana
num trabalho de 1980 na revista Finisterra. O brasileiro Pedro Nava publicou
A Medicina de Os Lusíadas (Ateliê Editorial, São Paulo, 2004). Menos
conhecida, por se tratar de uma edição do autor, é a obra do engenheiro
químico, professor da Universidade de Coimbra, Armando Tavares da Silva, Camões
e a Química. A Química em Camões (2010). O autor, que fazia investigação em
história, faleceu há um ano, mas este belo e raro livro lembra-me, na minha
biblioteca, a oferta que me fez.
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