quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

LER RAUL BRANDÃO

Peguei, ao acaso, no segundo volume das MEMÓRIAS de Raul Brandão, que já frequentara por várias vezes, e mais uma vez me tomou de assalto aquela voz única, serenamente meditativa, inocentemente destemida e cândida, ao revelar-nos a balbúrdia, o desconchavo, os lados baixos, oportunistas, violentos e até assassinos, da 1.ª República. 
 
É uma paisagem negra, de grande pintor, que viu e conviveu com importantes actores daquele período conturbado, que nos conduziu a quase cinquenta anos de Estado Novo. 
 
Raul Brandão não era monárquico nem tinha saudades da monarquia. Pintava só o que via e nada escondia. Diz coisas tremendas, conta factos, incidentes, conversas, que nos deixam atordoados. Com objectividade, sem ênfase, sem excesso de efeitos, sem espírito de fofoquice, como os grandes cronistas da antiguidade. 
 
Quando diz que Júlio Diniz morreu virgem ou que os testículos de Latino Coelho pareciam duas castanhas piladas, não está a fazer literatura com especiarias indiscretas, mas simplesmente a dizer o que lhe vinha ao conhecimento, sem nunca carregar no traço.
 
É um pintor, aparentemente imperturbado, mas, no fundo, terrivelmente angustiado. Faz-nos retratos inesquecíveis de Mouzinho de Albuquerque, nos últimos dias da sua vida, antes de se suicidar, de Teófilo Braga, entrincheirado na sua avareza balzaquiana, mesmo no funeral da sua devotada mulher, exigindo repetidamente um funeral barato e não permitindo que vestissem à morta um dos seus melhores vestidos, porque era um desperdício… 
 
O mesmo homem, de simplicidade franciscana, que pedia desculpa por sair da Academia mais cedo, porque a sua empregada doméstica estava doente e ele tinha de ir cozer umas couves. De Guerra Junqueiro, que idolatrava, como poeta e como filósofo, deixa-nos também um portentoso retrato. Junqueiro era, de certo, um grande poeta, que as gerações de hoje ou não reconhecem ou não conhecem, mas o filósofo que nunca foi, e que Brandão e outros exaltaram, esteve na origem do célebre ensaio em que António Sérgio tiroteia implacavelmente o mito de pensador colado à figura do autor de OS SIMPLES. 
 
Vale a pena ler e reler estes três volumes de memórias de Raul Brandão, nas quais uma atrevida candura se alia, sem dificuldade, a uma inocente indiscrição. 
 
Eugénio Lisboa

1 comentário:

Anónimo disse...

É de grande oportunidade a sugestão de Eugénio Lisboa para lermos as memórias de Raul Brandão. É de facto um quadro espantoso do que era a vida política e cultural em Portugal nos fim da monarquia e nos princípios do século XX; os mesmos erros, as mesmas trapalhadas, os mesmos golpes e indignidades de agora, ou ainda pior. Tudo indica que pior. Mas, entretanto, passaram cem anos e a impressão que temos é que muito pouco melhoramos porque quase nada aprendemos. A maior parte dos nossos políticos - e sobretudo os dos últimos anos - não têm noção da importância educativa ou deseducativa das suas atitudes. E que se queremos que o país progrida é preciso, em todas as situações e por todos os meios, ir educando os cidadãos, com exemplos de inteligência, coragem, persistência e boas práticas. Colocar o partido à frente do país, por exemplo, e fazer do impedimento de que os outros governem a nossa estratégia política só concorre para que o lodaçal continue e eles mais tarde ou mais cedo sejam varridos como entulho. Como aconteceu à maior parte dos que enchem as referidas Memórias.

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