Minha recensão no último "As Artes entre as Letras":
Sempre gostei de livros de entrevistas. Se o entrevistador
for hábil e as respostas forem espontâneas, o entrevistado pode revelar-se,
como nunca o faria se o próprio escrevesse reflexivamente a escrever sobre si.
Tenho nas minhas mãos mais um livro que vai enriquecer uma estante de livros de
entrevistas da minha biblioteca. A edição – em bom papel e com um deslumbrante
design de Cristina Lourenço – é da ANÉIS- Associação Nacional para o Estudo e
Intervenção na Sobredotação (a sigla é um achado!), uma associação com sede em
Braga e varias delegações no país, criada em 1998 por professores, psicólogos e
estudantes para desenvolver e apoiar crianças e jovens com características de sobredotação,
assim como as respectivas famílias. O actual presidente é Alberto Rocha,
professor em Ciências de Educação, que dirige a revista “Sobredotação” daquela
associação.
Os entrevistados são quinze figuras, na sua maior parte
públicas, nas áreas das Artes (o pianista Flipe Pinto-Ribeiro e a bailarina
Olga Roriz), da Cidadania (o político Adriano Moreira, a piloto da Força Aérea Diná
Azevedo, a jurista e política Francisca Van Dunem e o bispo Januário Torgal Ferreira),
do Desporto (a atleta Fernanda Ribeiro e o judoca Nuno Delgado), das Empreendedorismo
(a vitivinicultora Leonor Freitas e o empresário de café Rui Nabeiro, que agora
faz 90 anos), da Ciência e Tecnologia (a engenheira Ana Pires e os médicos
Manuel Antunes e Sobrinho Simões, o primeiro cirurgião cardíaco e o segundo
patologista) e da Literatura (os escritores Afonso Cruz e Alice Vieira). São
oito homens e sete mulheres, num bom equilíbrio de género. O prefácio é de Manuel
Patrício, professor de Filosofia de Educação e ex-Reitor da Universidade de Évora,
e o posfácio de António Sampaio da Nóvoa, professor de Ciências da Educação e ex-Reitor
da Universidade de Lisboa, que hoje é embaixador de Portugal na UNESCO. Entre o
prefácio e as entrevistas o leitor encontra uma nota introdutória, que explica
o propósito do livro – conhecer os percursos de vida de pessoas “especiais” - e
uma nota explicativa sobre as entrevistas, explicitando que, tirando um caso
(Rui Nabeiro), elas foram por escrito. As perguntas, partindo de uma matriz
genérica, foram adaptadas para cada entrevistado. Com esta metodologia,
perdeu-se a fluidez e a frescura de uma boa conversa.
Quem foram os organizadores? Pois, além do diretor da ANÉIS,
foi Emílio Ferreira, professor e dirigente associativo na área da canoagem,
Olímpio Bento, professor de Ciências do Desporto na Universidade do Porto, e
Leandro Almeida, professor de Psicologia da Educação da Universidade do Minho,
onde foi vice-reitor (tenho o gosto de ser co-autor dele, num artigo de um doutorando
meu sobre a realidade virtual na educação). Um leque de nomes com um percurso
de vida que revela que também eles são “especiais”(notei o facto de três deles
serem naturais de Gondomar). Com este livro eles pretenderam, nas suas próprias
palavras, “homenagear figuras marcantes nos mais variados sectores da práxis
social, para extrair delas s renovação de ânimo de toda a comunidade, tão
requerida numa gora de desilusão e incerteza”.
As questões pretendem conhecer a vida de cada homenageado.
Como enveredou pela área a que se tem dedicado? O que impulsionou o seu talento?
Qual foi o papel da família e da escola? Que exemplos e que obras mais o marcaram?
Quais foram as dificuldades no florescer da sua vocação? Quais são os papéis da
vontade e do acaso? O que faria de diferente se pudesse voltar atrás? Qual foi
o papel da ética? Que lições quer transmitir para favorecer a excelência
profissional? Em suma: Que sonho teve na sua vida e como o concretizou? Na
contracapa é destacada uma frase sobre a concretização dos sonhos do grande escritor
alemão Johann Wolfgang Goethe: “Quando uma criatura humana desperta para um
grande sonho e sobre ele lança toda a força da sua alma, todo o universo
conspira a seu favor.”
São várias as gerações representadas no livro, desde Adriano
Moreira, que vai fazer 99 anos em Setembro próximo, até à Ana Pires,
investigadora em Robótica no INESC-TEC no Porto, que tem apenas 31 anos. Mas há
uma constante no tempo: a determinação no percurso de vida. Todos eles são “sobredotados”
no sentido em que revelaram uma determinação fora do comum. Moveu-os a todos uma
vontade firme, que alavancou o esforço de ultrapassar barreiras. Como disse
Afonso Cruz, numa frase justamente destacada por Sampaio da Nóvoa: ”Quando se
gosta, pratica-se a todo o instante”. Dá o exemplo da natação que fazia com o
seu pai: “Ele nadava por prazer e eu nadava para chegar à borda da piscina e
sair.” Afonso Cruz hoje nada com gosto nas águas da literatura.
Detive-me com mais atenção nos entrevistados da área da ciência
e tecnologia. Achei muito interessante o depoimento de Ana Pires, a primeira
mulher portuguesa a fazer um curso de “cientista-astronauta” num programa
apoiado pela NASA. Ela critica a instabilidade do emprego científico em Portugal,
mas não desiste. Foi um prazer ler os depoimentos de Manuel Antunes e Manuel
Sobrinho Simões, dois médicos que conheço e estimo. O primeiro, natural de Ourém,
ingressou no curso de Medicina na Universidade de Lourenço Marques, em
Moçambique, e depois especializou-se em cirurgia cardíaca em Joanesburgo, na
África do Sul, antes de se estabelecer na Universidade de Coimbra e nos
Hospitais da Universidade. O segundo, natural do Porto, nascido numa família de
médicos, achou natural seguir na peugada de familiares, tendo-se enveredado pela
investigação biomédica na Universidade do Porto. Quando lhe perguntaram “Que
atributos subjectivos o impeliram a focalizar-se na investigação?”, respondeu:
“Penso que foi a curiosidade e a vontade obsessiva de fazer perguntas. O que me
vem à cabeça são sempre questões do género ‘O que será isto?’, ‘Porquê´?” Essa
é a atitude peculiar do cientista.
São 15 “percursos com sentido” que vale a pena ler numa bela
edição apoiada pela Associação dos Industriais de Madeira e Mobiliário de
Portugal. Não abundando os mecenas em Portugal, este acto de mecenato merece
elogio por ter permitido divulgar as vidas de pessoas inspiradoras.
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