Somos um povo estranho, largamente constituído por pessoas que desprezam, com facilidade, jóias da coroa do nosso património cultural. Pode elaborar-se, é claro, com cautela e não como pretexto para se exibir um snobismo parolo, uma hierarquia de valores mais ou menos aceitável ou mais ou menos discutível. Mas dificilmente se aceita desprezarmos alegremente valores egrégios da nossa cultura, em razão de pífias ideologias literárias, políticas, religiosas ou simplesmente de normas que uma moda efémera possa inculcar. Para a poesia, para o romance, para a literatura, em geral, é como dizem que é no céu: há várias moradas. Os espíritos realmente universais e abertos, como Goethe, sabem acolher a diversidade do universo da criação com uma gula que portentosamente os alimenta. Os espíritos estreitos, de “escola” ou de capelinha, querem impor, como norma universalmente aceite, o pequeno chiqueiro em que patinham. A uma poesia que se lhes apresente, diferente da sua, dizem: “Essa poesia não me interessa.” Seria como se um cientista dissesse: “O princípio de Arquimedes não me interessa: só me interessa a lei da gravitação”.
Causa espanto o modo como se machuca, se persegue, se ignora ou se finge que se ignora, se amesquinha, se denigre, se apedreja, se reduz o profundo e diversificado miolo de certas obras, reduzindo-as a “clichés” mal amanhados, causa espanto, dizia, como se faz tudo isto e ainda pior, a grandes figuras da nossa cultura, cujo pecado é o de serem incomodamente grandes; que se não tenham querido abrigar no terreirinho minúsculo de qualquer “escola” ou “ismo”; que não tenham querido caber nos coletes apertados que desastrados alfaiates congeminaram.
Povo pequeno e não tão rico como isso em valores culturais, damo-nos ainda assim ao luxo de gastar energias em ridículas guerrinhas ideológicas ou comicamente tribais, em promover normativos idiotas e em desprezar aquela arte que não abdica de ser arte. Tudo é aceitável, menos o verdadeiro talento, o bem cuidado ofício e uma não dispensável inteligência. Incensa-se até aos cornos da Lua pseudo-talentos de cultivadores do puro psitacismo, da verborreia alimentada de palavras que se não casam umas com as outras, de metáforas cancerígenas ou meramente arbitrárias, de um desprezo clamoroso por uma arte poética que a arte da poesia, por definição, exige, de um amesquinhar irracional da retórica, como se esta não fosse ferramenta essencial do ofício literário! Incentivam-se assim os maus oficiais do ofício, louvando-os por não terem a oficina e as ferramentas que deviam ter.
Vou dar só um exemplo desta estratégia enviesada que, entre nós, se pratica há décadas de ressentimento, sem inteligência nem grandeza. O quinzenário Jornal de Letras, em boa hora, publicou, no seu último número, um longo texto de António Carlos Cortez, revisitando o soneto na literatura portuguesa. Nesta revisita, o crítico não exclui, e bem, um dos mais admiráveis livros de sonetos da nossa história literária: Biografia, de José Régio. Nem vejo como poderia excluí-lo. Cortez trata-o até com visível admiração, embora não resista ao “cliché” – que me tenho fartado de tentar demolir – que reduz o miolo do livro poliédrico e complexo ao “psicologismo” (análise do “eu”). Pergunto ao simpático A. C. Cortez: acha mesmo que Biografia se reduz à dimensão do “psicologismo”? Que não intersecta, com igual vigor, outras dimensões importantes da aventura humana? (Como, de resto, toda a obra de Régio e de outros criadores da presença). Que diabo, não será já a altura de se começar a ler, mas a ler mesmo, os textos do autor de O Príncipe com Orelhas de Burro, esquecendo os “clichés” disseminados por manuais e histórias de literatura?
Porém, o que eu queria aqui sublinhar não era o texto simpático de Cortez. O que achei estranho, embora estas coisas já me não surpreendam, é ver – e aqui a responsabilidade não é do crítico – que, de entre as fotografias de autores de sonetos, que ilustram o ensaio, houve lugar para autores infinitamente menores, mas deixou-se de lado, imagine-se!, um dos máximos cultores do soneto, entre nós, e uma das maiores figuras da cultura portuguesa de todos os tempos: José Régio. Terá sido um lapso? Ou terá sido, como dizia um brincalhão, um “lápis” freudiano? Não chegará de ressentimento bacoco e de estúpida e obstinada perseguição a alguém a quem tanto a nossa cultura deve? Será que a verdadeira independência, aliada à verdadeira grandeza, se torna definitivamente intolerável, num país pequeno e palrador?
Dizia Goethe que “o que passa passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre”. Sim, mas às vezes resplandece para quem se recusa a olhar para a luz.
Eugénio Lisboa
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