domingo, 18 de abril de 2021

João Afonso dos Santos, o último dos colonos


Minha recensão no I da última quinta-feira (por erro do I, em vez da foto do autor - em cima - foi publicada a foto do irmão, José Afonso):

Só fui uma vez a África, a São Tomé e Príncipe, há pouco mais de um ano. Não há, na minha família ascendente, quem tenha estado em África. O que sei sobre África começou por ser o que a escola salazarista me ensinou. Aprendi as estações do caminho de ferro de Benguela, os rios de Moçambique e as montanhas de Timor, que tinha de papaguear (recordo ainda o nome do “pico mais alto de Portugal”, o Ramelau). Os territórios coloniais chamavam-se “províncias ultramarinas” e a pátria ia do Minho a Timor.

Muitos portugueses conheceram África involuntariamente através da guerra colonial, que agora faz 60 anos, e a minha jovem pessoa não tinha qualquer vontade de a ir conhecer dessa maneira. Quando entrei para a Universidade de Coimbra, em 1973, ainda havia essa guerra, mas, pouco depois, quando fui às inspecções militares, já ela tinha cessado: fui dispensado do serviço e incorporado na “reserva territorial”. Não tive, mesmo à justa, de ir defender um Império totalmente anacrónico.

Li alguns livros sobre África, que emendaram a minha formação escolar. Percebi melhor o que foi o colonialismo. Acabo de ler um livro de memórias que relata na primeira pessoa os últimos tempos do Império português. O autor, que escreve extraordinariamente bem, é um autodeclarado “colono”, não por cobiça de exploração, mas pelas circunstâncias da época. O homem é sempre ele e as suas circunstâncias… O livro, publicado pela Sextante, o segundo de dois com capas em tons sépia, intitula-se O Último dos Colonos. Até ao cair da folha e é seu autor João Afonso dos Santos (n. 1927), um advogado cujo irmão, José Afonso dos Santos (n. 1929), todos conhecem: Zeca Afonso.

A vida de João Afonso coincide com as últimas décadas do Império. Ele, o irmão, dois anos mais novo, e a irmã residiram, muito pequenos, em Angola e Moçambique, onde o pai foi juiz. Os dois rapazes regressaram a Portugal em 1939, tendo João ingressado em Direito, seguindo o pai, e José em Histórico-Filosóficas. Durante a Segunda Guerra Mundial, os dois estiveram afastados dos pais e da irmã, porque o pai foi nomeado para Timor, onde esteve cativo dos invasores japoneses.

No primeiro volume de memórias (O Último dos Colonos. Entre um e outro mar, Sextante, 2015), João Afonso conta a história da sua família e da sua infância e juventude até entrar em 1946 na Porta Férrea da Universidade como caloiro. Alguns anexos da pena do pai testemunham a sua conturbada experiência em Timor.

O volume mais recente (os dois são independentes e, acabado o segundo, lancei-me logo na leitura do primeiro) começa com um capítulo sobre a vida universitária em Coimbra, seguindo-se seis outros sobre a vida em Moçambique, para onde João Afonso, em 1955, já casado, foi trabalhar, primeiro em Lourenço Marques e depois na Beira. Quando soube do 25 de Abril, o autor estava no Café Luso na cidade da Beira, onde andava de candeias às avessas com Jorge Jardim, o magnate local que acalentava o sonho de uma independência branca. A história de João Afonso cruza-se várias vezes com a do seu irmão que, com a sua segunda mulher, viveu em Moçambique entre 1964 e 1967, onde deu aulas e apurou os seu ouvido para os sons africanos (por exemplo, a canção “Lá no Xepangara”, do “Coro dos Tribunais”, 1974, foi criada na Beira).

O primeiro capítulo do segundo volume interessou-me particularmente porque João Afonso conta histórias de Coimbra entre 1946 e 1953 quando havia praxe e tradições (eu fiz a Universidade sem praxe, por causa do “luto académico” após a greve estudantil de 1969). Lido o primeiro, verifiquei que os irmãos Afonso e eu andámos no mesmo liceu, o D. João III, hoje José Falcão, e até morámos em casas próximas na Av. Dias da Silva, nos Olivais. João Afonso conta a sua estada em casa da muito beata tia Avrilete, de onde Zeca Afonso saiu para casar com uma miúda pobre da casa ao lado. João Afonso, por sua vez, enamorar-se-ia de uma estudante de Filologia Germânica que conheceu numa Queima das Fitas e com quem casou em 1954. Reconheci muitos dos locais do livro. Por exemplo, no Largo da Sé Velha, uma placa lembra que Zeca Afonso viveu aí. O cantor começou com o fado de Coimbra (o primeiro disco é de 1953). Actuou com o Orfeão Académico, com a Tuna Académica (que faziam excursões às colónias) e com vários grupos de fados. Em 1962, mudando de estilo, mudou a música popular portuguesa.

Sei alguma coisa de Moçambique pelas histórias que os meus professores me contaram, por terem estado na Universidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), quando dela era reitor José Veiga Simão, lente de Física de Coimbra. Vivia-se bem, para dizer o mínimo, obviamente se se fosse branco e se tivesse um bom lugar. As praias eram boas. Havia bom marisco e boa cerveja (a grande chamava-se “bazuca”). Claro que havia racismo e discriminação. Eis como João Afonso descreve a capital: “Lourenço Marques era uma cidade bem desenhada e cómoda, de largas avenidas sombreadas. Refiro-me aos bairros amplos, regulares e pacatos de alcatrão e cimento, não à zona africana do caniço, um pouco excêntrica, dédalo inextricável de casa pobres, barracas de zinco, placas de cartão e contraplacado, blocos de concreto, delimitado interiormente por paliçadas, que as fortes chuvas inundam, em chegando o tempo delas, agravando a insalubridade do lugar. (…) Para circular na zona urbana dispôs durante muito tempo o cozinheiro ou o mainato de uma pequena caderneta indígena, que era assim como um salvo-conduto em terra ocupada.”

Havia algumas infraestruturas criadas pela administração lusa, mas faltavam outras: por exemplo, para chegar de carro de Lourenço Marques para a Beira tinha de se ir pela África do Sul e pela Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe).

Não havia oposição organizada. Mas João Afonso descreve a fuga para a Suécia, escondido num navio, de um preso político que tinha sido entregue à PIDE pelas autoridades da África do Sul. As eleições eram manipuladas: o autor descreve uma “chapelada” que viu nas eleições presidenciais de 1958 nas quais entrou Humberto Delgado. A polícia política tomava conta de tudo e de todos. Veja-se o que aconteceu ao irmão Zeca: “As autoridades não levaram a bem que ele desse umas aulas nocturnas (gratuitas) no Centro Associativo dos Negros de Moçambique, instituição debaixo de olho, com um historial persecutório da parte do poder político.”

A guerra colonial permaneceu longe de Lourenço Marques e da Beira: começou em 1964 em Cabo Delgado e alastrou depois para o Tete. A descolonização, como é sabido, não se fez sem problemas, após o acordo de Lusaca (1974) entre o governo português e a FRELIMO, que conduziu à independência a 25 de Junho do ano seguinte. O início do novo país não foi pacífico, primeiro com a revolta de alguns colonos na capital e depois com a prolongada guerra civil.

João Afonso descreve algumas das situações que viveu com algum humor. Por exemplo, a propósito da independência, conta a história de um conhecido oposicionista (que soltava “filho da…” sempre que ouvia o nome de Salazar), que “se passou” no processo de descolonização, escrevendo um violento opúsculo sobre “sabujice e traição”. Escreve o autor: “Eu não tinha dúvida, ao encará-lo, de que ali mesmo, no café, àquela hora pacata, amortecida dos labores digestivos, iria aos fagotes da excelentíssima figura se acaso a apanhasse a jeito (…). É então – penso - que o inquebrantável oposicionista descobre esta coisa extraordinária: estava mais próximo do ditador do que alguma vez lhe passaria pela cabeça. Em termos de política colonial, bem entendido.”

O autor teve protagonismo cívico primeiro durante o estertor do regime colonial e depois na transição de poder: fez parte de um grupo chamado “democratas de Moçambique” que se encontrou em 1974 com Samora Machel na Tanzânia e fez parte da Comissão de Descolonização. Foi advogado dos padres que testemunharam massacres perpetrados pelas tropas coloniais. No livro transcreve o depoimento de uma freira: “A depoente tem conhecimento de que foram metidas à força pelos comandos numa palhota e queimadas vivas treze pessoas, entre mulheres e crianças.” Isto foi antes do genocídio de Wiriamu que correu mundo..

A descrição do processo da independência é entrecortado por algumas anedotas. Por exemplo, por este diálogo pitoresco entre o autor e um funcionário que pretendia que ele fizesse uma sessão de “dinamização”, que ele não queria fazer: “‘Tudo bem, camarada Dr. tudo bem’. ‘E já agora’, acrescentei, ‘prescindia do Dr. ou sou camarada ou sou Dr.” Ou neste outro diálogo, entre ele e um desconhecido simpático, os dois à porta da casa de banho de um restaurante. O moçambicano perguntou-lhe: “ ‘Camarada, chichi ou cócó?’. ‘Chichi’. ’Então faz xavor, que eu vai fazer cócó, demora mais tempo.’ ”

O autor regressou a Lisboa em Setembro de 1975 após terem sido nacionalizados todos os escritórios de advogados. Foi, portanto, um dos muitos retornados.

No fim do livro, o autor descreve um sonho no qual o viúvo de Joana Simeão, uma opositora à FRELIMO, pretende voltar a casar. Um documento em anexo mostra como um grupo de moçambicanos, entre os quais Joana Simeão, foram fuzilados por decisão de um tribunal do partido, num processo sumário contra os “traidores do povo”. Não havendo certidão de óbito, o sujeito precisava de uma solução jurídica. E ela logo surgiu: havia apenas que legalizar um divórcio por “abandono do lar conjugal.” Uma amarga ironia sobre uma tragédia moçambicana.

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