domingo, 18 de abril de 2021

PARA QUE SERVE A CULTURA?

 


Novo texto de Eugénio Lisboa (na foto, José Régio, aqui citado):

No malogrado diário Europeu, dirigido por Augusto de Carvalho, nos anos oitenta do século passado, publiquei a primeira de uma série de crónicas, com o inquietante título acima. A pergunta preocupava-me e nunca, para ela, encontrei uma resposta satisfatória. Como nem o jornal onde foi publicada nem o livro onde foi recolhida são de fácil acesso, e dado me parecer que a pergunta merece reflexão, trago-a aqui de novo e muito me agradaria que fosse comentada. 

 Na imprensa, uns pugilistas, braços nus, 
Uns contra os outros, rábidos, disparam 
Sarcasmos, que ao diabo não lembraram… 
Que línguas, santo nome de Jesus! 
Camilo, Nas Trevas (sonetos sentimentais e humorísticos) 

 Quando era mais novo e mais inocente, acreditava que havia três mundos sagrados, onde o espírito soprava, privilegiadamente: o da Arte, o da Religião e o da Academia. O templo da criação, o templo do retiro e da meditação solitária, o templo da reflexão e do diálogo. Cá fora era o caos, a poluição, a falta de rigor, a promiscuidade… Dos três templos, só o da religião me parecia inacessível, por me faltar a fé. Ainda assim, ousava eu dizê-lo, de mim para comigo, como me seduzia às vezes, depois do vendaval e da intensidade das paixões (com o seu desgaste e o sentido de abaixamento que não raro nos infligem), um bom retiro e uma longa meditação, num vasto e frio claustro apetecido! Que pena ser a fé um ingrediente indispensável! Assim sonhava, e vejo hoje para quão longe da realidade eu disparava o meu apetecer!

 A vida dá-nos muito e tira-nos ainda mais. Tira-nos, sobretudo, as nossas melhores ilusões. Sei hoje – e sabe-o quem não queira persistir em alimentar sonhos e alienações que já nada sustenta – que o mundo da Arte, o mundo da Religião e o mundo da Academia nada têm de sagrado: são territórios profanos, tão bons e tão mesquinhos como quaisquer outros onde se desenvolve a actividade dos humanos, com as suas grandezas e as suas infâmias. Ocasionais Palatinos de intrigas pérfidas, de sórdidas lutas pelo poder, palcos de intrigas bizantinas, terrenos quase sempre improváveis para o activo «exercício da bondade», para usar uma expressão cara a José Régio – a Arte, a Religião e a Academia nada têm a oferecer de sofisticadamente especial à sensibilidade refinada e ao gosto austeramente exigente.. Ou por outra: não a Arte, a Religião e a Academia em si, mas o terreno, o contexto humano em que tais pelouros se manifestam… O homem tudo reduz à sua dimensão quotidiana, que não é necessariamente estimável e, menos ainda, particularmente admirável. De aí que muito cedo me tenha começado a chocar a atmosfera de zaragata adstringente em que frequentemente se processa o «diálogo» dos nossos escritores, dos nossos artistas, dos nossos homens de cultura… A luta desenfreada pelo território ocupado, a ânsia de captar, manter e expandir as chamadas «zonas de influência», a paroquial preocupação com uma reputaçãozinha provinciana e nem por isso menos apreciada, cedo inclinam o «diálogo» no sentido do famigerado «modelo de polémica portuguesa» (Camilo). A tal ponto tudo tende a descambar no insulto pessoal, no dichote, na insinuação pequenina e um pouco sórdida, que a higiene quase sempre recomenda que voltemos a cara para outro lado. «Ó Musa da calúnia, não me contes / D’esta lusa Calábria altos mistérios», gemia Camilo que no entanto mergulhou até ao pescoço no pântano da milenar polémica portuguesa, cujo perfil ajudou a delinear. Diante deste espectáculo pouco estimulante, turvo e torpe, apetece perguntar: «Mas, afinal, para que serve a cultura? Para que serve, se nos não dá um padrão de conduta elegante, se nos não afina nem o espírito nem os códigos de comportamento?» Repito: «Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que nos não torna melhores? Que faz ela que nos não dá o gosto de um estilo, de uma estética das maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?» 

É claro que a cultura é uma coisa e a moral é outra. Mas já Gide insinuava que a moral era, ao menos, uma eventual dependência da estética (e não o inverso, diga-se de passagem). Seja como for, alguns de nós gostaríamos de pensar que a estética promove ou desencadeia uma certa elegância do proceder porque o contrário disso… é feio (como dizem os pais às criancinhas, quando elas praticam um acto moralmente punível: note-se a contaminação do moral pelo estético, que naturalmente o absorve). A este respeito, observava Somerset Maugham (que era, por sinal, um espírito livre e desenvolto, alheio a preconceitos e por isso detestado e desprezado pela classe menos inteligente que a Inglaterra até hoje produziu – a dos «high-brows»): «O valor da cultura é o seu efeito no carácter. Não serve propósito nenhum a não ser que o enobreça e o fortaleça. O seu uso é a própria vida. O seu objectivo é, não a beleza, mas a bondade». Não sei se será assim. A verdade é que os factos observáveis nos levam frequentemente a pensar, ainda com Maugham, «que o único uso da cultura é permitir que digamos disparates com alguma distinção». E, às vezes, mesmo sem qualquer particular distinção. A cultura torna-se um mero «ornamento» social ou, no limite, um equipamento profissional que não confere qualquer especial elegância de gestos ao eventual manipulador dela. Neste extremo (que não é uma raridade), a cultura, como notava Simone Weil, «é um instrumento manejado por professores para fabricarem professores que, chegada a sua vez, fabricarão outros professores». Tudo à margem de qualquer superioridade, distinção, exemplaridade e, muito menos, sacralidade… 

Pode compreender-se e fazer-se até um inventário inteligente das causas deste fenómeno um tanto penoso. É um facto: os artistas, os escritores convivem mal uns com os outros. Nos seus romances, em especial no ciclo romanesco A Velha Casa e também no notável e pouco lido romance que é o Jogo da Cabra Cega, José Régio fez, entre outras notáveis coisas, um levantamento perfidamente penetrante e exaustivo das armadilhas em que tropeça, no convívio com «os outros», a fauna dos artistas e, de um modo geral, dos homens de cultura. E na sua extraordinária Confissão dum homem religioso, Régio voltou ao assunto: «Por agora», notava ele, num capítulo precisamente intitulado «O Convívio Humano», «não versarei senão as dificuldades que levanta o exercício da literatura. Creio serem mais ou menos conhecidos os ressentimentos, as rivalidades, as lutas aceradas e mesquinhas, as pequeninas intrigas, os rancores manifestados ou recalcados, os impulsos de revindicta, etc., que se criam entre os criadores literários, ou entre os criadores e seus críticos, ou ainda entre os criadores e o público. A necessidade de compreensão, aprovação e apologia – torna todo o artista vibrantemente sujeito a esses por vezes baixos fenómenos psíquicos». Eu iria um pouco mais longe do que Régio: é a necessidade de aprovação e apologia, aliada a uma permanente incerteza ou insegurança que estão na base do comportamento não raro pouco elegante de tanto escritor e artista. Rivalidade, espírito de competição – existem em todos os sectores da actividade humana, incluindo o pelouro científico. Simplesmente, neste último, tudo se processa a um nível menos áspero, mais civilizado. É que, como observava C. P. Snow, «um cientista criador tem, em regra, uma razoável certeza quanto ao valor da sua obra», ao passo que a maior parte dos escritores e pintores não a têm. Os critérios de avaliação dos resultados, em arte, não têm a mesma meridiana segurança e nitidez que poderão ter os de avaliação idêntica, em ciência. Um êxito, no domínio científico, sossega e aplaca. Um «êxito», em arte, deixa perpetuamente inquieto o seu autor, porque nenhum juízo lhe pode dar uma garantia segura do valor da sua obra. De aí, insinuava Snow, o bizarro e inquietante comportamento do grande poeta americano, Robert Frost, que, inundado de prémios e comendas, mas sempre inseguro, sofreu até ao último minuto com a angústia do Prémio Nobel, que acabou por nunca chegar… Um grande poeta, pendurando o seu destino num prémio falível! Um grande artista que honraria qualquer prémio, aguardando, com ansiedade «cocasse», uma recompensa que já nada lhe acrescentaria à glória! Mas Eliot tivera o prémio e Frost queria-o também! «De todas as paixões, comentava Snow, «a inveja – e tanto mais quando devora personalidades de grande formato – é a menos agradável de contemplar.» Frost era um grande poeta e, em alguns aspectos, um grande homem. Mas era um grande homem que a sua imensa cultura e convívio profundo com as coisas e pessoas da cultura não afinaram até ao ponto de ser capaz de desprezar uma honraria discutível. Stendhal afirmou um dia que chegara a saber alemão tão profundamente como o francês, que era a sua língua, mas que esquecera deliberadamente a língua de Goethe, por desprezo, ao dar-se conta de que os alemães levavam a sério as condecorações. Entre esta atitude extrema e o patético desassossego de Frost, eu opto decididamente por Stendhal. Há neste pequenismo de se levar a sério um galardão qualquer, mesmo supostamente importante, uma inelegância fundamental, uma falta de integridade em relação aos fundamentos da própria criação, um habitar de zonas superficiais que nada têm que ver com a génese profunda que o acto criador implica. Há, em suma, uma falta de estilo infinitamente dolorosa de contemplar. Os galardões e prémios dão uma certa alegria festiva à vida e, às vezes, uma certa compensação material. Mas, se uma vida de alegria profunda, como se supõe que é a alegria da criação, se vê subtilmente ameaçada por aquilo que não é do domínio do essencial, então apetece perguntar: Para que serve a arte? Para que serve a cultura? Para que servem, se tudo quanto produzem, como resultado, é uma fauna humana cujo comportamento milenar é de uma suprema falta de estilo? «A civilidade recíproca entre autores é uma das cenas mais risíveis na farsa da vida», observava o implacável Dr. Johnson, testemunha aguda da comédia humana do seu tempo. Ai de mim, de então para cá as coisas não mudaram para melhor! O poeta hindu Tutsi Das passava por ter chegado a um tal estado de afinação, doçura e sintonia com a natureza, que conseguia comunicar com todas as criaturas vivas dos bosques. E Rabindranath Tagore, grande poeta indiano do século XX, possuía um espírito tão suave e gentil, que os esquilos lhe trepavam pelas pernas acima e os pássaros vinham, sem receio, pousar-lhe nas mãos. Pudesse isto ficar como emblema do que a verdadeira cultura, fecundando o que em nós há de melhor, deveria afinal produzir: um estilo, uma elegância, um panache, uma bondade, uma doçura de viver. Uma capacidade de desprezar tudo quanto não é essencial. Uma lealdade fundamental com o nosso eu profundo. Um decidido voltar as costas aos jogos mundanos, aos códigos em voga e às «zonas de influência». Uma forma de saber escutar o «canto profundo». E só esse. 

 Eugénio Lisboa

5 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Este texto do Eugénio Lisboa coloca questões e dá, ou sugere, algumas respostas, que são de entendimento difícil e, aparentemente, supérfluas por serem de pendor e de teor especulativo acerca de comportamentos humanos que, penso eu, se manifestam em contextos muito sofisticados e torturados de jogo, com as suas regras e os seus juízes, ainda que longe de estarem institucionalizados e reconhecidos como tais e, mais ainda, longe de serem aceites, tanto uns como outros, por serem quase sempre autopropostos e, no que diz respeito aos veredictos, do mais inconsistente e lastimável que há, por serem, quase sempre, ou esmolados, ou pedinchados, ou estrategicamente concedidos por quem se investe no poder de o fazer. Há mais exemplos de situações reais, possíveis e imaginárias.
Se já é inatingível estabelecer critérios, que o sejam, daquilo que deve-ser o jogo, quanto mais causador de conflitos e de intolerâncias não será a intervenção de árbitros que chamam a si o protagonismo da discórdia.
O artista, poeta, romancista, músico, pintor, arquitecto, pensador, cientista, realizador, enfim, todos os criadores, críticos, podem estar à mercê do juiz mais ou menos piedoso, que são eles próprios. Mas ao que eles não escapam é ao jogo da vida, da cultura, dos árbitros que decidem o jogo, dos valores, dos mercados…
A não ser que os desprezem e não lhes reconheçam idoneidade nenhuma, mas isto não resolve nada e só agrava as coisas. Os criadores não estão adstritos a nenhum dever especial de bonomia, harmonia, cedência, de sujeição, de complacência, de irmandade ou clientelismo, em troca de expectativas de serem valorizados, bem pelo contrário, certas cumplicidades podem comprometer a credibilidade e o valor do seu trabalho.
Nada é menos supérfluo do que a arte, as ideias claras, o pensamento revelador, o engenho inovador e a visão surpreendente, a ciência, a criação humana, enfim, a cultura.
Nada é mais humano do que a cultura, da qual destaco o prodígio da língua e as linguagens. Ela é a realidade humana, uma das faces da realidade em sentido amplo, sendo a outra face a realidade natural, embora o homem também seja um animal, que faz parte desta.
Se pensarmos o homem como um animal, de acordo com o critério da necessidade vital, diremos que a cultura é supérflua.
Mas o princípio da economia que rege os organismos vivos, incluindo o homem, deixou de ser no humano um ter de ser, tipo tropismo, e adquiriu a natureza de um poder ser, tipo possibilidades, alternativas.
Se isto pode ser visto deste modo, a racionalidade humana nasceu assim, da possibilidade de escolha. A partir daqui, tudo pode ser explicado com coerência e consistência, inclusivamente, se e porquê a cultura é um edifício da ordem do dever-ser.(Continua)

Carlos Ricardo Soares disse...

(Continuação)

Aliás, não esqueçamos que a economia é a ciência das escolhas. Justamente, tudo aquilo que nos interessa, em cada situação de possibilidades de escolha, alternativas ou não, é saber qual é a melhor escolha.
O problema, que me parece ser o busílis de todos os problemas de ordem humana e social, ou a mãe de todas as frustrações culturais, não é a possibilidade de erro. Esta possibilidade está presente em qualquer escolha, por mais informada que seja, porque só o futuro dirá do acerto ou desacerto da escolha, em função do critério que se seguiu.
De resto, qualquer escolha implica renunciar às alternativas. Isto também pode ser muito problemático. E há escolhas que têm de ser feitas impreterivelmente, que não podem esperar pelos conselhos da melhor ciência.
Mas, dizia eu, mais acima, a mãe de todas as frustrações é o arbítrio.
A cultura está num ponto de desenvolvimento que nos permite ter esperanças de que as sociedades humanas se entenderão acerca do que devem ser as melhores escolhas, em todos os domínios. A paz será, assim, possível.
A mãe de todas as frustrações é que, não é por dispormos do entendimento necessário sobre o que deve ser feito, a nível individual, estadual, internacional, mundial, nem por isso ser feito, que estamos livres de actos criminosos, terroristas, atentados, de loucura, etc., que deitem tudo a perder.
Nada do que é humano, exceptuando a sua natureza animal involuntária, que funciona em modo autónomo, e o arbítrio, que é individual, a que não chamo liberdade, tem outra matriz que não seja a cultura.
Assim sendo, a cultura é a realidade sem a qual o humano, enquanto social, não existiria.
A questão “para que serve a cultura?”, tal como as respostas que se lhe deem, é, obviamente, cultural e, como qualquer outra realidade, pode servir para objectivos (culturais) muito diversos, sem que possamos antever todos.
A cultura serve unicamente, e é tudo o que interessa, para sermos o que somos, ou seja, o ser humano é um ser cultural e vice versa, no sentido em que um não tem significado sem o outro.

Eugénio Lisboa disse...

Agradeço ao Dr. Carlos Ricardo Soares, as suas observações e aproveito para fazer um esclarecimento. Eu não ponho de modo nenhum em questão o valor insigne da cultura. Ainda há pouco publiquei um livrinho intitulado "VAMOS LER!" que é um vigoroso convite à leitura, isto é, à aquisição de cultura. E enumero os vários ganhos que essa leitura nos proporciona. Portanto, a minha pergunta não insinua, de modo nenhum, que a cultura não serve para nada. Mas faz uma pergunta pertinente e, ao mesmo tempo, dilacerante: de entre os imensos poderes que a cultura tem, terá também o poder de tornar as pessoas melhores? O que se passou com a Alemanha nazi - a mesma Alemanha, que era um dos países culturalmente mais sofisticado, na música, na literatura, na filosofia, na ciência, nas artes plásticas - deixa-nos perplexos e profundamente desassossegados. Aquele país, saturado da mais vasta e profunda cultura, tendo produzido os maiores compositores, cientistas, escritores como Goethe e Thomas Mann, filósofos como Kant e Schopenhauer, destruiu a Europa, produzindo um inferno dantesco de mortes e atrocidades de toda a ordem. Mas o poder depredador do homem não se ficou por ali: depois disso já tivemos a guerra fria com a insana construção de bombas nucleares em quantidade suficiente para erradicar para sempre a vida no planeta, com a agravante de se ter colocado este mundo perigoso e à beira do abismo, nas mãos criminosas e genocidas de energúmenos como Trump, Bolsonaro, Erdogan e muitos outros que aqui não nomeio. Tivemos a Coreia, o Vietnam, o Afeganistão, Etc. Em Portugal, vemos todos os dias gente com cursos universitário a dizerem e fazerem infâmias que põem em risco a nossa periclitante democracia. Pergunto: terá a cultura, alguma vez, entre todos os enormes poderes de que disfruta, o poder de melhorar o homem? É uma pergunta dilacerante. Foi feita no final da segunda guerra mundial e continua, infelizmente, a ter de ser feita e a não ter resposta convincente. Se ela, a cultura, não é capaz de afinar as sensibilidades a ponto de tornar impossíveis Dachau, Auschwitz e o Gulag, então teremos muito com que nos preocupar. Ou simplesmente resignar-nos a aceitar que a cultura tem todos os poderes menos este: de preservar a civilização e a vida no planeta. É desolador, mas é provavelmente um facto.
Eugénio Lisboa

Carlos disse...

Vejo a cultura, em sentido lato, como uma repetição de uma descoberta, que se afina, refina, com o passar do tempo, e dos imprevisto, a exemplo da vida biológica. Oportunista, tende a civilizar quando não há competição pelos recursos. Não sei se é condição necessária, mas não é seguramente suficiente para nos livrar do lobo do homem. Livra-nos de não ter de recomeçar a cada nascimento, dá-nos asas sobre o instinto, um desejável espartilho lasso para que o individuo não seja quadrado pelo grupo a que pertence. É o meu ponto de situação, mas continuo tão perdido e estupefacto com o que se passa ao meu redor, que me refugio na compaixão e imploro a fé que não tenho.

Carlos Ricardo Soares disse...

As observações do Eugénio Lisboa apontam muito bem para as preocupações e as inquietações da nossa cultura, como processos humanos que, paradoxalmente, tendem a tornar-nos tanto piores, quanto mais deliberadamente procuram tornar-nos melhores, ou, pelo menos, num certo sentido de melhor.
A cultura, na minha perspectiva, é de matriz normativa. Embora a normatividade ética, moral, religiosa, jurídica, estética, do conhecimento, da política, etc., seja fundamentalmente o mesmo fenómeno de dever-ser, não deixam de ter expressões, conteúdos, objectivos e sanções diferenciados. Importa salientar que, se assim for, é uma realidade, como foi realidade toda a sucessão de guerras e de monstruosidades perpetradas pelos "melhores" que a cultura produziu.
A cultura continuará a fazer aquilo que sabemos e queremos, a todo o custo, fazer, ou, por outra, o homem continuará a fazer o jogo que é suposto dever saber jogar.
As vozes que se levantaram ao longo da história contra a cultura dos guerreiros, de violência e de dominação, de subjugação e de superação dos adversários e dos inimigos, além dos padecimentos, do choro e lamentos, dessa inenarrável e insuportável realidade, pouco puderam mudar. Até o cristianismo, que ensaiou inverter o conceito de homem melhor, acabou por se revelar o maior promotor daquilo que criticava e censurava. Mas os outros, os que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para realizar e personificar os valores da civilização, que enfrentaram e anularam o poder dos inimigos, mais não fizeram do que reforçar e promover as razões da cultura de guerra. De tal modo que as sociedades, ainda hoje, são guerreiras e implacáveis para com os fracos, os inúteis, os fardos, os deficientes, os inábeis, os ignorantes, os inaptos para o combate. Quando descansam, curam as feridas, reorganizam as forças e os recursos, fomentam as suas economias e divertem as populações, não se distraem nenhum momento da principal razão de tudo isso: recuperar a força, o poder militar. Tudo está preordenado e instrumentalizado para esse grande fim, a que chamam Paz.
E não é apenas porque se sentem ameaçadas no quadro do jogo político e militar. Se não for para se defenderem de um ataque, é para impedirem que desrespeitem as regras do jogo, chamemos-lhes assim. E se desrespeitam as regras do jogo, há que obrigar a repor a situação e a respeitar. E se as regras do jogo permitem certos avanços para uns, também permitem para os outros, mas isto não é aceite pelos poderosos. Aliás, só há liberdade para os que podem.
Esta é a cultura dos melhores, dos heroísmos, dos invencíveis, dos laureados, dos troféus, dos pódiuns, e dos que clamam por vingança, que nem fingem acreditar na justiça.
E os melhores são aqueles que superam e vencem os desafios de salvaguarda dos valores em que acreditam. São os que ganham os jogos e os campeonatos, em todos os campos ou, pelo menos, mais do que os outros.
Os melhores no sentido de terem mais bondade, de se tornarem mais solidários, pacíficos, tolerantes, empáticos, dotados de compaixão, de paciência, de generosidade, companheirismo e de amor pelos outros, não deixam de ser, como os outros, expressão e fruto da cultura, mas não há competição nestes domínios.
É lancinante pensar que o dever-ser que a cultura é, seja expressão de sabedoria. Principalmente, quando são os melhores, sempre em nome do que “escolhem”, ou “elegem” como melhor, a perpetrar o pior.

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