Novo texto de Eugénio Lisboa:
Voltaire, esse gamin sempre irrequieto e produtor de saudável desassossego, dizia, com graça e verdade, que a História serve para provar que tudo pode ser provado com ela. E não posso deixar de lhe dar razão, quando vejo historiadores, como Manuel Loff, no Público de 27 de Abril, aludir ao “papel pioneiro e persistente que os portugueses tiveram no tráfico [de escravos].” Está muito “inclusivo” e apresenta-se muito “chic” este exercício de autoflagelação masoquista, que hoje costumam fazer políticos, comentadores e historiadores, em substituição da obsoleta confissão católica e da quase tão obsoleta conversa no sofá do psicanalista. Com resultados nem melhores nem piores.
Até aqui, tudo bem. Mas já não está tão bem, quando se usa, para este exercício praticado com algum frenesi, a manipulação dos factos históricos. O falecido Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, quando via as suas “visões” confrontadas com a realidade cruel dos factos, respondia com grande desenvoltura: “Os factos são estúpidos.” A citação de Manuel Loff, que acima faço, também se fundamenta na crença de que os factos da história são estúpidos e devem, por isso, ser ignorados. Dizer que os portugueses foram pioneiros no tráfico de escravos não é apenas uma opinião controversa: é uma clamorosa falsidade, inconcebível num historiador. Os portugueses não foram pioneiros, no tráfico de escravos, nem na história do mundo nem na história do continente africano. O uso dos escravos como mão de obra barata, no esteio das mais diversificadas economias, vem dos tempos mais remotos, desde o neolítico, passando pela Mesopotâmia, hebreus, gregos, romanos, continuou na Idade Média e veio por aí fora, só tendo sido abolido no século XIX.
Atenas, o berço da democracia tinha escravos, embora mais bem tratados do que os de Esparta, que os tratava com grande dureza. Platão tinha, salvo erro, doze escravos, o que o não impediu de escrever os seus não efémeros Diálogos. A civilização romana tinha, como principal esteio da sua economia, a escravatura, isto é, a mão de obra barata. Júlio César vendeu, de uma só vez, 52 000 escravos e Tito não fez a coisa por menos de 90 000 (judeus). Em Roma, o escândalo ia ao ponto de ser maior o número de escravos do que o de homens livres.
Mas, mesmo em África, dizer que os portugueses foram pioneiros desse negócio é rotundamente falso. Quando os portugueses chegaram a África, a escravatura já se praticava nesse continente havia nove séculos, sendo seus oficiantes tanto negros como árabes. Se alguma coisa os portugueses ali foram fazer foi aprender como se fazia aquele negócio e não introduzi-lo lá, pela primeira vez. Aliás o negócio fazia-se por intermédio de gente local: feiticeiros, sacerdotes e régulos. Como dizia um grande escritor francês do século XX, “ne nous attendrissons pas!. “
Nada do que acima escrevo poderá ser interpretado como uma defesa da escravatura. É, muito lisinhamente, um apelo ao bom senso e a não se interpretar a história como um pretexto para conclusões tendenciosas e autoflageladoras. O ser humano é isto e não há uma grande base de dados que nos levem sequer a crer que somos hoje muito melhores do que fomos ontem. Trump, Bolsonaro, Adolfo Hitler, Franco, Staline, Pol Pot são gente do nosso tempo. Hélas, ne nous attendrissons pas!
Eugénio Lisboa
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