Minha recensão no jornal I da semana passada (com pequena edição):
A Elsinore, uma chancela da
editora 20|20, foi buscar o seu nome à
designação em inglês da cidade dinamarquesa de Helsingor, onde fica o castelo
de Kronborg, que inspirou Shakespeare na escrita de Hamlet. O
surrealista Mário Cesariny foi buscar ao Hamlet o título do seu poema
“Welcome to Elsinore” (Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004), que vem
transcrito a abrir os livros com aquela chancela. Na série de não-ficção da Elsinore
estão obras de extraordinário êxito como Homo Sapiens: História Breve da Humanidade
(2020; há uma edição anterior: Vogais, 2013) e Homo Deus: História Breve do
Amanhã (2017), do historiador israelita Yuval Noah Harari. Mas estão também
boas obras de divulgação de ciência como A Sexta Extinção (2014), da
jornalista norte-americana Elizabeth Kolbert, e livros que ligam a ciência e a
literatura como Vozes de Chernobyl (2016), da escritora bielorussa Svetlana
Alexievich, Prémio Nobel da Literatura de 2015. O último volume publicado dessa
colecção, Pegadas. Em busca dos fósseis futuros, tem a ver com a história
do amanhã, como a “sexta extinção”, isto é, a grande extinção causada pela espécie
humana, e com a tragédia de Chernobyl. A escrita, embora não ombreando com a de
Alexievich, é literária e cativante.
Quem escreveu? David Farrier,
professor de Literatura Inglesa na Universidade de Edimburgo, formado em Leeds, com experiência docente em Leicester e beneficiário de uma bolsa na
Universidade de New South Wales, perto de Sidney, na Austrália, usada para
redigir boa parte desta obra. Esta foi distinguida em 2017 com o Prémio St.
Aubyn para primeiras obras de não-ficção da Royal Society of Literature. No
entanto, só foi publicado em Março deste ano, tendo a sua tradução em português
(muito competente, de Raquel Dutra Lopes) saído em Outubro. O livro, que não é
grande (306 páginas), estende-se por oito capítulos, que são precedidos por uma
introdução e seguidos por uma coda. Farrier tem-se interessado por temas
ambientais, que cruzam ciência e
literatura. Em 2019 publicou um livro sobre o mesmo tema, mas de âmbito mais
académico: Anthropocene Poetics: Deep Time, Sacrifice Zones and Extinctions (University
of Minnesota Press, 2019).
O livro trata das marcas humanas
que poderão ser encontradas num futuro distante, daqui a dez mil anos ou a dez
milhões de anos, tal como encontrámos na Tanzânia pegadas de hominídeos de há
mais de 3,6 milhões de anos. O autor parte das pegadas em sentido estrito: “Às pegadas
antigas, bem como a tocas, rastos e marcas de dentes, chamam-se ’vestígios fósseis’.
Ao contrário de corpos fossilizados, falam-nos da vida, e não da morte. Embora
incorpóreos, estes vestígios prestam testemunho do peso, do porte e dos hábitos
de um corpo entretanto partido, contando histórias acerca de como eram vividas
vidas antigas.“ Foi o economista norte-americano John Maynard Keynes que disse
que “a longo prazo, estaremos todos mortos”. De facto, não sabemos se daqui a
dez mil anos ou dez milhões de anos ainda existirão representantes do Homo
Sapiens a caminhar sobre a Terra. Escreve Farrier: ”Talvez não haja gente no mundo para
interpretar os nossos vestígios; não obstante, estamos – por todo o lado,
constantemente e com uma prodigalidade espantosa – a deixar um legado que
perdurará por centenas de milhares ou, até, centenas de milhões de anos.” Pode
não haver pegadas em sentido literal. Mas haverá decerto marcas da presença
humana neste planeta. Prossegue mais adiante: “Pegadas é a minha tentativa
de descobrir como seremos recordados pelo futuro muito profundo. Há milhares de
anos que as pessoas modificam a Terra e alteram os ecossistemas, mas as
alterações feitas ao planeta e os materiais cada vez mais duradouros que nós
(sobretudo no Norte global) criámos desde a revolução industrial surgiram com
uma velocidade e um inventividade sem precedentes, e deixarão marcas
persistentes, mais do que qualquer coisa que os seres humanos tenham produzido
antes. Na minha busca por fósseis do futuro olho para o mar, para os oceanos e
para a rocha, de uma bolha de gelo tirada do cerne da Antárctida a um túmulo de
resíduos radioactivos nas profundezas do leito rochoso finlandês.”
O nome Antropoceno que Farrier tem
no título do seu livro mais académico foi proposto no início dos anos 80 pelo biólogo
norte-americano Eugene Stroemer, para referir o tempo marcado pelo impacto humano
no planeta, mas foi o químico holandês Paul Crutzen, Nobel da Química de 1995, que,
no ano 2000, propôs um novo tempo geológico que se sucedesse ao Holoceno, iniciado
há 11,7 mil anos com o último grande período glacial e que é a última época reconhecida
até agora do Quaternário. De facto, existe uma controvérsia sobre a existência
dessa época e, caso ela exista, sobre o seu início. Crutzen defende que teve origem
na Revolução Industrial, mas há quem o faça remontar à Revolução Neolítica e
quem proponha que só começou com as primeiras explosões nucleares, no fim da
Segunda Guerra Mundial. Em 2009, conforme lembra Farrier, a Comissão Internacional
de Estratigrafia nomeou um grupo para estudar a possibilidade de criar essa nova
unidade geológica, a “era do ser humano”. Em Abril de 2019, o grupo divulgou que iria propor à referida Comissão
a nomeação do Antropoceno em 2021. Decisiva será a evidência da presença humana
nos estratos, que se pode concretizar por microplásticos, metais pesados ou núcleos
radioactivos provenientes das explosões nucleares (provavelmente a proposta
será aprovada e o início será em meados do século passado).
Para procurar marcas humanas perduráveis
Farrier não se poupou a esforços em excursões no Reino Unido, designadamente na
paisagem à volta de Edimburgo (que, devido à deriva dos continentes, já teve
clima equatorial, conforme pode perceber quem, como eu, já viu o museu
“Dynamical Earth” naquela cidade escocesa) e noutras paisagens do planeta. Visitou,
por exemplo, a Grande Barreira de Coral na Austrália, que está ameaçada pelas
alterações climáticas globais. Esteve em Xangai, cidade com mais de 24 milhões
de habitantes que corre o risco de ficar inundada se o nível das águas do mar
continuar a subir. Não será só Xangai: Nova Iorque e Nova Orleães não poderão
ficar no mesmo sítio, pelo que haverá uma Nova Nova Iorque e uma Nova Nova
Orleães.
Uma das marcas maiores do livro é
o conjunto das suas citações literárias. Muitos escritores têm “pegadas” no
livro. Louve-se o cuidado que a tradutora teve de usar as traduções de edições portuguesas
de obras já publicadas em vezes de voltar a traduzir: Foi buscar, entre outros,
e por ordem alfabética, Svetlana Alexievich, Walter Benjamin, Daniel Defoe (podemos
ler a passagem em que Robinson Crusoe encontra uma pegada na areia, que o leva
a pensar que não está sozinho), T. S. Elliot, Philip Dick, John Milton,
William Shakespeare e Virginia Woolf.
As referências desse não tipo
sucedem-se. Por exemplo, Farrier, quando fala dos plásticos, cita o ensaísta
francês Roland Barthes, que em Mitologias (Edições 70, 1978), escreveu: “A
hierarquia das substâncias é abolida, pois uma só as substitui a todas: o mundo
inteiro pode transformar-se em plástico, e até a própria vida, pois, segundo parece,
já começaram a fabricar-se aortas de plástico.” Barthes não imaginou, porém,
que o plástico iria formar enormes ilhas
nos oceanos… Nem que já há plástico fossilizado: o livro acaba com o encontro
de uma corda fossilizada numa praia. Outro exemplo: Farrier cita a escritora norte-americana
Ursula K. Le Guin, que, em “The carrier bag theory of fiction” (1986), diz que
o primeiro instrumento humano não foi uma arma de arremesso, como sugere
Stanley Kubrick em 2001. Odisseia no Espaço, mas sim um recipiente (um
saco ou um balde) para levar uma coisa de um lado para outro. A metáfora de
mudar uma coisa de um lado para o outro aplica-se à construção de cidades:
fazemos edifícios de betão, aço e vidro, deixando grandes buracos nos sítios
onde fomos buscar rochas, minérios e areia.
Farrier sabe bem usar metáforas. Serve-se
por exemplo da “Biblioteca de Babel” de Jorge Luís Borges, para descrever o ar aprisionado
em pequenas bolhas no gelo, que nos informa como foi o clima terrestre há
muitos anos. O gelo funciona como uma biblioteca que guarda a memória dos tempos
passados. É de lá que conhecemos o aumento das concentrações de dióxido de
carbono na atmosfera. E é lá onde ficará um registo do tempo de hoje.
Na minha opinião, Farrier não
enfatiza suficientemente as grandes diferenças que haverá na Terra a longo
prazo do ponto de vista geológico pois os continentes são “jangadas de pedra”.
Nem os resultados da lenta evolução biológica, que conduzirá a espécies que nos
terão como antepassados. Mas dá-nos uma perspectiva do futuro a longo prazo que
nos suscita humildade. No final, escreve: ”Achamos que sabemos o que esperar do
mundo em que vivemos e perdemos a oportunidade de ver as coisas não só como são
mas também como estão a tornar-se. Novos mundos surgem todos os dias, observou Calvino,
e nós não reparamos neles. Na correria do dia-a-dia, escapa-nos a mudança
subtil; através do hábito, vemos o presente à luz do passado. O desafio
encontra-se em aprender antes a examinar o nosso presente e a nós mesmos, à luz
sinistra lançada por um futuro iminente.”
Sem comentários:
Enviar um comentário