segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ELOGIO DA TEMPERANÇA

Do meu estimadíssimo amigo Eugénio Lisboa, a meu pedido, recebi esta belíssima e certeira crítica literária publicada, dias atrás, no "Jornal de Letras": 

 I have been the recipient of excessivadmiration and reverence 
from my fellow beings through no fault and no merit of my own
(Albert Einstein)

A cultura portuguesa perdeu recentemente quatro vultos de considerável aparato, cujo desaparecimento causou bastante ruído na comunicação social. O problema não está na quantidade de ruído, mas na sua qualidade. Em países como o Reino Unido, os Estados Unidos ou a França, por exemplo, quando uma figura de grande gabarito desaparece, fala-se o suficiente dela, em obituários, mas fala-se em tom de calma objectividade, evitando-se a inflação do tom e das palavras e pondo-se num prato da balança as virtudes e no outro os defeitos ou falhas.

É quase sempre assim porque um obituário não deve ser um debitar de intemperanças ou de desgovernados ditirambos. A admiração não deve abandonar um vigilante espírito crítico e um sentido das proporções capazes de fazerem uma avaliação serena e composta do perfil do falecido. 
Infelizmente, entre nós, quase nunca é assim.

A este propósito, dizia o ficcionista francês, Barbey D’Aurevilly (de que uma das ficções foi adaptada a um notável filme) que “a admiração usa por vezes de um telescópio para olhar para as coisas da terra, mas nem por isso ele as transforma em astros.” 

Com as mortes recentes de Agustina Bessa-Luís, Vasco Pulido Valente, José Cutileiro e Maria Velho da Costa, os muitos e incontidos (e incontinentes) testemunhos que visitaram a nossa comunicação social fizeram precisamente isto: pegaram num telescópio e tentaram, com ele, fazer de cada um dos vultos desaparecidos um astro de primeira grandeza, emitindo uma fortíssima luz própria e até ofuscante. 

Mas, como dizia o escritor francês, não há maneira de o telescópio conseguir fazer esse milagre. Os testemunhos que choveram sobre o vulto apreciável das duas romancistas, do diplomata e escritor e do historiador e cronista caracterizaram-se pelo excesso ditirâmbico, pela ejaculação incontida de adjectivos pesadíssimos, em suma, por uma falta de controle tão desastrada, que se caiu, por vezes, no puro dislate. 

Agustina Bessa-Luis foi uma escritora de uma incontinência assustadora, mas que beneficiou de uma aceitação crítica muito grande e de uma abada de prémios invulgar (catorze, se me não engano). Duvido porém que tenha tido muitos leitores, pelo menos, daqueles que levam um livro de uma ponta à outra, dadas as características pouco apelativas da sua ficção: histórias mal contadas, aforismos disparatados aos baldes, personagens e conflitos mal definidos, “nuvens negras de condenáveis delírios supostamente filosóficos (Casais Monteiro, no Suplemento Literário de A Folha de São Paulo, de 05.03.1966), etc. João Gaspar Simões falava, a propósito do romance A Muralha, em “delírio de improvisação”. 

E é este incontido “delírio” que faz, do livro que Agustina dedicou a Florbela Espanca, o mais clamoroso desastre de que até hoje tive conhecimento, em termos de biografia e de análise de uma obra. Não admira, pois, que o exigente Jorge de Sena tenha observado, com bom humor, que, em matéria de leitura dos livros de Agustina, ainda tinha conseguido chegar a Os Incuráveis, mas já não aguentara saltar A Muralha… Como aguentar a pé firme o arbitrário, a atrabiliário, o disparatado de aforismos como este: “o soneto é a composição perfeita do sentimento”, ou este: “Deus criou primeiro o mundo e depois a Natureza” ou ainda este, alusivo a Florbela Espanca: “Todas as suas experiências são conduzidas à abstracção, e é por isso que os seus sonetos conhecem gradualmente o sucesso”? (Já em tempos observei que muitos dos aforismos de Agustina seguem este modelo congeminado por mim: “A minha gravata é azul e é por isso que os barcos flutuam nos oceanos”). 

Pois, apesar destas reservas, que são de monta, um homem inteligente e ponderado, como Francisco Assis, não resistiu à histérica onda aclamatória e veio dizer, de Agustina, esta coisa surpreendente e momentosa: “Talvez fosse a nossa melhor escritora, mas foi decerto uma das nossas maiores pensadoras. Neste plano foi tão desmedidamente grande que levaremos muito tempo até entendê-la em toda a sua plenitude.” Isto é simplesmente extraordinário e faz-me suspeitar que Francisco Assis andou a utilizar um telescópio de invulgar potência. Grande e desmedida pensadora, a Agustina? Pensadora, a Agustina? Que pensamento? Será o destrambelhado pensamento aforístico que ela nos serve, abundantemente, por todo o lado? 

Diante desta incontinência admirativa, lembro-me da frustração de André Gide, quando, em 1924, lhe pediram um artigo para um número de uma revista consagrado a celebrar a glória de Anatole France. Embora com reservas, Gide admirava o autor de Les Dieux Ont Soif, mas, em face dos desvairados elogios da Condessa de Noailles ao criador de “Crainquebille”, sentiu-se inibido, anotando no seu Journal: “Aquilo não é crítica, mesmo laudatória, é puro desmaio. Um tal excesso, uma tal intemperança, uma tal inflação das palavras, dos sentimentos e dos pensamentos, desvaloriza tudo o que se pudesse dizer a seguir, de razoável e de sensato".

Foi este excesso, esta intemperança ejaculatória que assistiu ao desaparecimento dos quatro vultos citados. Diante de tal orgia – eu diria mesmo: orgasmo – fica-se de facto paralisado e não apetece contribuir com um testemunho mais sereno. 

Quanto a Vasco Pulido Valente, o mínimo que fizeram foi chamar-lhe “génio” e “gigante”. VPV era um notável prosador, dono de uma escrita escorreita, limpidamente clássica, que dava prazer ler. E era um cronista de forte presença assertiva, embora de curva humoral caprichosa, que o fez debitar um punhado bem avantajado de dislates, ao lado de percepções agudamente inteligentes e bem informadas. Como historiador, é óbvio que deixou uma obra limitada que, de modo nenhum, o coloca a par dos maiores historiadores de Portugal. Personagem controversa mas, ainda assim, assinalável? Sem dúvida. Génio e gigante da nossa cultura? Haja senso!

A José Cutileiro, cantaram vastos e abundantes louvores (a inteligência lusíada teria atingido, com ele, o seu pináculo!), louvores a tudo e mais alguma coisa, incluindo a sua alegada deliciosa escrita, tão ágil, tão espirituosa, tão perfeita. Ora, se alguma qualidade o inteligente José Cutileiro não tinha era saber escrever. Os seus obituários semanais, no Expresso, causavam-me calos na cabeça, de tão difíceis de ler que eram: períodos longuíssimos, intermináveis, com subordinadas atropelando-se mutuamente ou encavalitando-se sucessivamente umas nas outras, produzindo uma prosa “gauche”, feiosa, coxa, impenetrável, cacofónica. Uma falta de elegância e de agilidade chocante, que, no entanto, achou maneira de provocar delíquios orgásmicos em alguns afiambrados cronistas da nossa praça. Há sempre um telescópio à mão, para quem gosta de transformar o chumbo em oiro.

Maria Velho da Costa mereceu também alguns louros de antologia. Falou-se, por exemplo, nesta coisa transcendente, embora possa parecer debitada por uma pitonisa embriagada: o “poder fundador da fala”, ou, melhor ainda, esta coisa de profundidade abismal: “a língua viva, carne em recuo” Dir-se-ia que, nesta escritora, a linguagem é intransitiva, isto é, não veicula nada, ou antes, veicula-se a si própria. Isto, pelo menos, é o que entrevejo, com alguma dificuldade, porque me sinto todo enredado naquele portentoso “poder fundador da fala” e naquela perturbante “língua viva, carne em recuo”! 

Não faz tudo isto, afinal, remeter-nos para aquele simplório personagem imaginado pelo Raul Solnado, o qual gostava apenas de “dizer coisas”? Gide tinha razão: tão errado era fazer a Anatole France a destravada e revoltante desfeita que lhe fizeram os surrealistas, como errados eram os encómios desvairados da Condessa de Noailles. 

Os excessos, tanto os afirmativos, como os negativos, fazem normalmente má pontaria. A incontinência admirativa com que as elites intelectuais lusíadas costumam saudar a saída de cena dos vultos mais assertivos da nossa cultura é um sintoma infalível de provincianismo. 

Fernando Pessoa diagnosticou-o e ele ainda por cá anda. Alguém disse que “não há êxtase na admiração”. Eu diria, antes, que o êxtase corrompe a admiração.

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