Não ouvi as declarações do governante a que se refere a historiadora e professora Raquel Varela, num texto que hoje publicou online com o título Por uma escola humanizada, mas confio no que diz, até porque estou inteiramente a par das recomendações supranacionais que circulam a nível global para a "Educação do Futuro" e, em particular, do "New Normal", que constitui a sua última e mais rematada versão. Estou também a par da sedutora pressão que as grandes empresas de tecnologia fazem junto dos poderes políticos, de escolas e de professores para que o ensino presencial seja substituído por inenarráveis configurações tecnológicas. E conheço o discurso (lamentavelmente) legitimador de muitos académicos.
Mas, até certo ponto, o futuro é o que quisermos que seja: Raquel Varela e outros cumprem o seu papel ao explicar a corrida que, cegamente, estamos a fazer para uma nova era de barbárie. Outros terão de se envolver, sindicatos, directores, professores, pais, académicos... E, de entre estes, destaco os directores e professores pela responsabilidade profissional que lhes toca na educação formal e da qual têm de ter plena consciência.
"Costa anunciou ontem um pacote de transição digital nas escolas. Este era o momento para anunciar redução alunos por turma, melhoria dos salários de professores e funcionários. Retorno a aulas de grande curiosidade e valor cientifico, num turno, presenciais, e deixar muitas horas livres para brincadeira e socialização, noutro turno.
Em vez disso vai-se colar as crianças a um ecran. Este foi o momento excepcional em que aprendemos neste experimento mundial obrigados pelas medidas da pandemia que o «ensino» online não funciona – em vez disso prego a fundo rumo ao desastre.
Os professores, até agora, empenhados e descontentes, ou reagem impedindo isto ou vão descobrir que com o ensino em casa não se livram da escola de que não gostavam (...).
Para o país, se esta “transição” avançar, imposta sem qualquer discussão democrática, vai ser um retrocesso civilizacional. Esperamos a lista de empresas que vão vender estes pacotes ao Estado e respectivos mediadores de interesses.
Já que vendem o último pedaço de Estado social – a educação – ao mercado, acabando com um serviço que estava fora da alçada do mercado – que nos digam de forma transparente quem vai ficar com o dinheiro dos nossos impostos, enquanto transformam os nossos filhos em autómatos, obsesos, e (ainda mais) desfuncionais do ponto de vista relacional.
Quem acha que isto é um problema de pais, alunos e professores, que pensam na qualidade do trabalho e na felicidades das pessoas (e esse deve ser o objectivo), desengane-se. Não seremos 4 milhões os afectados, mas 10 milhões. Esta força de trabalho sairá da escola sem qualquer capacidade de pensar a totalidade, autonomia ou complexidades de raciocínio, saberão carregar o polegar num ecran (...).
Assumi há muito com confiança o meu papel de “velho do Restelo” neste campo. Tenho anos, já décadas, de trabalho cientifico nesta matéria. Sou contra qualquer aparelho na escola, acho que os telemóveis deviam ser proibidos, até no recreio, que quadros interactivos, e mesmo o famoso power point, só servem para dispersar.
Acho que uma escola seria apaixonante para os alunos e professores se tivesse aulas magistrais clássicas, de manhã, dadas por professores de excelência cientifica muitíssimo bem pagos, e um amplo espaço verde e de convívio livre onde o desporto, os trabalhos manuais diversos (construir coisas com as mãos) e o lazer fossem pelo menos metade do dia. Isto que assistimos é tudo o contrário do que defendo – a “transição digital” é, como já tantos no campo da filosofia alertaram, a barbárie tecnológica."
4 comentários:
A barbárie já aí está. Há um par de anos tive uma polémica com um senhor engenheiro que sustentava que a noção de entropia só se aplicava a motores térmicos como as máquinas a vapor ou os motores de combustão interna. Ignorava a lei da entropia universal formulada em meados do século XIX pelo físico Rudolf Clausius. A universidade que o formou formou um técnico, não um cientista. Nem tinha, estritamente falando, obrigação de formar um cientista. Mas o que é um técnico cientificamente iletrado senão um técnico de usar e deitar fora? E o que é um sistema "educativo" que produz trabalhadores para usar e deitar fora?
Entre os deslumbrados pela transição digital na educação, já há muitos que vão ao ponto de defender que, na escola do século XXI, os "antigos" e variados conhecimentos de física, biologia, filosofia, latim, grego, etc, devem ser substituídos por um ensino unificado de "utilização de aparelhagem informática". O novo admirável mundo novo, que é necessário descobrir, cabe todo num pequeno écran facilmente explorável no ato simples de mexer um único dedo.
No tempo dos livros, que encerravam conhecimento, a grande maioria das pessoas precisavam de professores que as ajudassem a aprender. No tempo dos écrans interativos, onde se pode ver tudo, sem a ajuda dos professores de carne e osso, a maioria dos alunos pouco vai aprender.
Um webinário a que assisti esta semana.
https://www.youtube.com/watch?v=IsUbquKAT9s
Agradeço aos Leitores os comentários, sublinhando que todos os que são levados a aprender ou que se propõem aprender o que é escolar, necessitam de professores. As aprendizagens escolares, sendo "aprendizagens secundárias", pela sua complexidade e dificuldade, não podem ser conseguidas apenas pela vontade e acção dos aprendizes. Isto é assim, independentemente dos recursos usados. O professor pode usar "velhos" ou "novos" recursos, mas os recursos são isso mesmo: recursos.
Cordialmente, MHDamião
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