Na sequência do texto Portas do Inferno deste mundo em que vivemos, o leitor Rogério Marques enviou-nos a ligação da RTP Play que dá acesso (por tempo limitado) ao conjunto de documentários em causa, com legendagem em português: aqui. Muito obrigada pela atenção.
sábado, 31 de agosto de 2019
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
O desporto devia ser benevolente com os camionistas de matérias perigosas
Texto que nos foi enviado pelo leitor Fernando Tenreiro (in Público).
A greve deixou claro que os motoristas de transportes de matérias perigosas são os criadores de valor económico que os governos, os empresários e organizações de classe manietaram durante décadas. O desporto tem uma situação semelhante pelas perdas do valor económico criado pelo seu capital humano na produção desportiva. Nada de novo se se considerar que entre os deuses gregos Crónus destacava-se por comer os seus filhos logo que nasciam.
Os camionistas de matérias perigosas
A população será contrária à greve dos camionistas de matérias perigosas por falta de literacia económica e cultura democrática.
Os condutores de camiões de transporte de matérias perigosas são profissionais cuja importância é perceptível para quem tem uma carta de condução e a usa responsavelmente.
As mortes e os feridos directos e indirectos, a destruição da propriedade dos causadores dos acidentes e de terceiros provocados com quaisquer camiões são um custo inaceitável. Um sinistro com um camião que transporta matérias perigosas pode ter consequências privadas e públicas elevadas. Para além das possíveis mortes, que não têm um preço, alguns dos feridos mais graves poderão ter sequelas ao longo da vida cujo custo será muito grande para o próprio, famílias, amigos e sociedade.
Obter a carta de condução destes veículos exige requisitos especiais. A qualificação para lidar com essas competências específicas exigem investimentos ao longo do tempo o que restringe a oferta de bons condutores sobre a procura das empresas, aumentando o salário que os motoristas auferem. Por esse motivo o seu nível de remuneração acaba por ser superior a outras profissões em que as exigências de formação e o seu custo são menores e a oferta de trabalho é maior face à respectiva procura.
A comunicação social demonstrou que a escassez de oferta é uma realidade quando referem que o salário total dos motoristas chega a montantes que são várias vezes a remuneração de parte significativa dos trabalhadores portugueses.
A greve sugeriu haver falhas relacionadas com a distribuição do valor económico gerado pelos seus motoristas. Não menos importante é o arrastamento ao longo de décadas das iniquidades da redistribuição do valor económico criado o que contribuiu para a gravidade da actual crise que, não tendo sido contidas no âmbito das negociações entre as partes envolvidas, levarão a que a população e restante economia venham a ser lesadas pela não resolução atempada das iniquidades sofridas.
Os praticantes desportivos e os técnicos, dirigentes e voluntários no desporto
No desporto há igualmente quem beneficie de rendas extraordinárias obtidas na produção associativa. O desporto tem 2 vertentes humanas: a primeira vertente é a matéria-prima da actividade desportiva e são as pessoas que a praticam e transformam o seu capital humano para elevarem os níveis bem-estar relacionados com a produtividade pessoal, desportiva e profissional; a segunda vertente são os factores de produção humanos das organizações, como os técnicos, dirigentes e voluntários, entre outros.
Na primeira vertente, a não prática regular e a má prática de uma actividade desportiva contribuem para o sedentarismo e têm consequências negativas para a vida dos indivíduos como a obesidade e outras doenças. A falta de um estilo de vida activo através do desporto tem custos de milhares de milhões de euros ao longo da vida da população pela sua falta de produtividade e na menor qualidade da sua saúde, por exemplo. É gravíssimo que mais de 50% da população portuguesa não tenha estilos de vida activos através da prática desportiva.
Relacionada com a primeira vertente estão os erros de política desportiva que são incapazes de valorizar o valor da vida da juventude nos casos graves que acontecem com as claques desportivas, nas praxes académicas, na formação militar, nos acidentes que acontecem no mar, praias, rios e zonas ribeirinhas em todo o país e durante todo o ano, etc.
A segunda vertente, relacionada com a qualidade dos técnicos, dirigentes e voluntários, condiciona a qualidade da produção, ou seja, a qualidade do valor desportivo que beneficia a vida do praticante.
Os fracassos no mercado de produção de actividades desportivas geram a diminuição do valor da vida e pode acarretar a perda de anos de vida dos cidadãos. O velho Modelo de Desporto Português, que se encontra em vigor, impede a criação de valor humano desportivo quer através da falta de incentivo à participação desportiva regular, quer no insuficiente ou mau financiamento dos seus factores de produção técnicos, dirigentes e voluntários.
Em particular, a base da formação de populações desportivamente activas está no investimento na prática dos sectores carenciados da população que abrange cerca de 40% dos portugueses e dos seus clubes produtores de desporto.
O mito grego de Crónus
Crónus é o Deus da mitologia grega que comia os filhos assim que nasciam. A mulher Rhea escondeu o nascimento do filho Zeus que obrigou o pai a regurgitar todos os irmãos. Este mito ilustra a desigualdade de uma sociedade onde a distribuição da riqueza favorece uns poucos à custa da maioria.
A greve dos camionistas de matérias perigosas alerta para um padrão de desigualdade de bem-estar de outras profissões como os enfermeiros, médicos, jovens doutorados, jornalistas, operadores de call centers, de supermercados, bombeiros, para citar algumas.
A sociedade portuguesa é das mais desiguais a nível europeu em que as condições de apropriação da riqueza gerada contam com a exiguidade da actuação do Estado. Sectorialmente, o velho Modelo de Desporto Português celebra Crónus por ser um instrumento de desigualdade entre as necessidades de criação de capital humano desportivo da população e os comportamentos rentistas de alguns parceiros.
O desporto deveria actuar para além das obrigações de curto prazo impostas por certos parceiros sociais e políticos e promover a valorização do capital humano desportivo sem restrições e numa perspectiva de longo prazo.
Alertados pela greve dos motoristas de matérias perigosas, a reforma do Modelo de Desporto Português deveria combater no desporto o comportamento do Crónus nacional.
A greve deixou claro que os motoristas de transportes de matérias perigosas são os criadores de valor económico que os governos, os empresários e organizações de classe manietaram durante décadas. O desporto tem uma situação semelhante pelas perdas do valor económico criado pelo seu capital humano na produção desportiva. Nada de novo se se considerar que entre os deuses gregos Crónus destacava-se por comer os seus filhos logo que nasciam.
Os camionistas de matérias perigosas
A população será contrária à greve dos camionistas de matérias perigosas por falta de literacia económica e cultura democrática.
Os condutores de camiões de transporte de matérias perigosas são profissionais cuja importância é perceptível para quem tem uma carta de condução e a usa responsavelmente.
As mortes e os feridos directos e indirectos, a destruição da propriedade dos causadores dos acidentes e de terceiros provocados com quaisquer camiões são um custo inaceitável. Um sinistro com um camião que transporta matérias perigosas pode ter consequências privadas e públicas elevadas. Para além das possíveis mortes, que não têm um preço, alguns dos feridos mais graves poderão ter sequelas ao longo da vida cujo custo será muito grande para o próprio, famílias, amigos e sociedade.
Obter a carta de condução destes veículos exige requisitos especiais. A qualificação para lidar com essas competências específicas exigem investimentos ao longo do tempo o que restringe a oferta de bons condutores sobre a procura das empresas, aumentando o salário que os motoristas auferem. Por esse motivo o seu nível de remuneração acaba por ser superior a outras profissões em que as exigências de formação e o seu custo são menores e a oferta de trabalho é maior face à respectiva procura.
A comunicação social demonstrou que a escassez de oferta é uma realidade quando referem que o salário total dos motoristas chega a montantes que são várias vezes a remuneração de parte significativa dos trabalhadores portugueses.
A greve sugeriu haver falhas relacionadas com a distribuição do valor económico gerado pelos seus motoristas. Não menos importante é o arrastamento ao longo de décadas das iniquidades da redistribuição do valor económico criado o que contribuiu para a gravidade da actual crise que, não tendo sido contidas no âmbito das negociações entre as partes envolvidas, levarão a que a população e restante economia venham a ser lesadas pela não resolução atempada das iniquidades sofridas.
Os praticantes desportivos e os técnicos, dirigentes e voluntários no desporto
No desporto há igualmente quem beneficie de rendas extraordinárias obtidas na produção associativa. O desporto tem 2 vertentes humanas: a primeira vertente é a matéria-prima da actividade desportiva e são as pessoas que a praticam e transformam o seu capital humano para elevarem os níveis bem-estar relacionados com a produtividade pessoal, desportiva e profissional; a segunda vertente são os factores de produção humanos das organizações, como os técnicos, dirigentes e voluntários, entre outros.
Na primeira vertente, a não prática regular e a má prática de uma actividade desportiva contribuem para o sedentarismo e têm consequências negativas para a vida dos indivíduos como a obesidade e outras doenças. A falta de um estilo de vida activo através do desporto tem custos de milhares de milhões de euros ao longo da vida da população pela sua falta de produtividade e na menor qualidade da sua saúde, por exemplo. É gravíssimo que mais de 50% da população portuguesa não tenha estilos de vida activos através da prática desportiva.
Relacionada com a primeira vertente estão os erros de política desportiva que são incapazes de valorizar o valor da vida da juventude nos casos graves que acontecem com as claques desportivas, nas praxes académicas, na formação militar, nos acidentes que acontecem no mar, praias, rios e zonas ribeirinhas em todo o país e durante todo o ano, etc.
A segunda vertente, relacionada com a qualidade dos técnicos, dirigentes e voluntários, condiciona a qualidade da produção, ou seja, a qualidade do valor desportivo que beneficia a vida do praticante.
Os fracassos no mercado de produção de actividades desportivas geram a diminuição do valor da vida e pode acarretar a perda de anos de vida dos cidadãos. O velho Modelo de Desporto Português, que se encontra em vigor, impede a criação de valor humano desportivo quer através da falta de incentivo à participação desportiva regular, quer no insuficiente ou mau financiamento dos seus factores de produção técnicos, dirigentes e voluntários.
Em particular, a base da formação de populações desportivamente activas está no investimento na prática dos sectores carenciados da população que abrange cerca de 40% dos portugueses e dos seus clubes produtores de desporto.
O mito grego de Crónus
Crónus é o Deus da mitologia grega que comia os filhos assim que nasciam. A mulher Rhea escondeu o nascimento do filho Zeus que obrigou o pai a regurgitar todos os irmãos. Este mito ilustra a desigualdade de uma sociedade onde a distribuição da riqueza favorece uns poucos à custa da maioria.
A greve dos camionistas de matérias perigosas alerta para um padrão de desigualdade de bem-estar de outras profissões como os enfermeiros, médicos, jovens doutorados, jornalistas, operadores de call centers, de supermercados, bombeiros, para citar algumas.
A sociedade portuguesa é das mais desiguais a nível europeu em que as condições de apropriação da riqueza gerada contam com a exiguidade da actuação do Estado. Sectorialmente, o velho Modelo de Desporto Português celebra Crónus por ser um instrumento de desigualdade entre as necessidades de criação de capital humano desportivo da população e os comportamentos rentistas de alguns parceiros.
O desporto deveria actuar para além das obrigações de curto prazo impostas por certos parceiros sociais e políticos e promover a valorização do capital humano desportivo sem restrições e numa perspectiva de longo prazo.
Alertados pela greve dos motoristas de matérias perigosas, a reforma do Modelo de Desporto Português deveria combater no desporto o comportamento do Crónus nacional.
Fernando Tenreiro
20Ago2019
fjstenreiro@gmail.com
Os alunos, se um dia precisarem, têm a "internet"
Quem tem responsabilidades profissionais na educação escolar (professor, investigador, director escolar, técnico de educação, etc.) deveria perceber que certos slogans, destinados a reorientá-la, são expressões da perversa ligação entre interesses (macro) empresariais e políticos (por esta ordem).
Um dos slogans que mais desviam a educação da sua essência é que todo o conhecimento está no google, na internet, de modo que não é preciso ensiná-lo na escola, sobretudo se o aluno não estiver interessado nele.
Eis mais um exemplo que se junta a outros de que tenho deixado nota neste blogue (aqui e aqui).
Um dos slogans que mais desviam a educação da sua essência é que todo o conhecimento está no google, na internet, de modo que não é preciso ensiná-lo na escola, sobretudo se o aluno não estiver interessado nele.
Eis mais um exemplo que se junta a outros de que tenho deixado nota neste blogue (aqui e aqui).
Vamos deixar que cada criança aprenda aquilo para que tem mais apetência? Não corremos o risco de ter crianças que são especialistas numa área e sabem muito pouco sobre outras? Sim, mas um músico não tem de saber a lei de Boyle-Mariotte [relaciona a pressão e o volume de um gás], não precisa disso para nada. E, se um dia precisar, tem a internet. O que ele precisa é de aprofundar o conhecimento que tem na área da música para se realizar. Mas nós concluímos todo o currículo, como disse há pouco, coisa que não acontece nas escolas tradicionais.José Pacheco, Observador de 26 de Agosto de 2019 (aqui).
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
O BAIRRO DA TABELA PERIÓDICA
A acção divide-se entre uma sala de aula (de química, pois claro!) e uma reunião de condomínio da tabela periódica - numa analogia entre os elementos da tabela e os blocos de um bairro habitacional - onde os intérpretes personificam elementos químicos, cujas características, inevitavelmente, se cruzam com as propriedades dos elementos que representam. Em ambos os espaços, divertida e construtivamente, fala-se de história, canta-se ópera, explora-se a química e debate-se a atualidade.
No ano em que se comemora o 150.º aniversário da criação da Tabela Periódica - proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como Ano Internacional da Tabela Periódica - a marionet foi convidada pela Sociedade Portuguesa de Química e pelo Professor Manuel João Monte, autor do livro “O Bairro da Tabela Periódica”, para levar a cena um espectáculo de teatro baseado nesta obra.
Encenação Mário Montenegro Interpretação Diana Narciso, Filipe Eusébio, Mafalda Canhola, Miguel Lança, Nuno Geraldo, Pedro Lamas, Tânia Cardoso
Espectáculo integrado no Programa oficial de comemorações do Ano Internacional da Tabela Periódica, apresentada em 1869 por Dmitri Mendeleiev
Escolas — a partir do 9.º ano Entrada gratuita escolas — mediante reserva
Informações bilheteira@tagv.uc.pt
PROF.ª ELISA FERREIRA
Indicada por Portugal, para integrar a Comissão Europeia, a Profª. Elisa Ferreira, em finais dos anos 90 e começos do novo milénio, teve papel de relevo na defesa e valorização do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire, na antiga Pedreira do Galinha.
Recordo, com saudade, o tempo em que, com ela, trabalhámos para salvar esta importante jazida.
Senhora prestigiada em Portugal e na Europa, com largo currículo no Parlamento Europeu, tem toda a minha gratidão, por tudo o que, enquanto Ministra do Ambiente, desenvolveu em prol do nosso Património Natural.
Ao tempo desta grande Senhora como Ministra do Ambiente e como todo o seu interesse e apoio, foi organizado um grupo de trabalho coordenado pela Arqtª. Maria João Botelho, então directora do Parque Natural das Serras d'Aire e Candeeiros (PNSAC), o Eng.º. Carlos Caxarias, em representação da Direcção Geral de Minas, o Dr. José Manuel Alho, da Quercus, o industrial Rui Galinha, o vereador David Catarino, hoje presidente da Câmara Municipal de Ourém, o vereador Pedro Ferreira, da Câmara Municipal de Torres Novas e uma representação do Museu Nacional de História Natural chefiada por mim. A este entusiasmante e frutuoso trabalho seguiu-se a classificação da jazida como Monumento Natural (Dec. Reg. 12/96 de 22 de Outubro) e a entrega do sítio à administração do PNSAC.
Posteriormente à divulgação deste projecto, em Janeiro de 1997, foi criado pelo Instituto de Conservação da Natureza, por diligência da então Presidente Profª Teresa Andresen, um grupo de trabalho visando o “Programa de Intervenção no Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire”, coordenado pelo Dr. José Manuel Alho, de que fiz parte e no qual pudemos contar com a valiosa participação do Arqtº. Martins Barata.
Os trabalhos prosseguiram a bom ritmo, havendo sempre, na altura, enquanto durou a equipa ministerial liderada pela Profª Elisa Ferreira, boa vontade na disponibilidade financeira para executar algumas das propostas iniciais e outras surgidas no seio deste grupo de trabalho.
Desde a sua abertura ao público e até 2002, houve financiamento para inovações importantes, com destaque para o “painel do tempo”, uma pintura mural com 25 m de comprimento, da autoria de Martins Barata, anexa ao Jardim Jurássico, e o “Aramossaurus”, uma enorme estrutura metálica, estilizando um gigantesco saurópode em tamanho natural, do tipo daqueles que deixaram ali os seus rastos há 175 milhões de anos, concebida pelo mesmo arquitecto.
A. Galopim de Carvalho
Descer na Lua com as mãos na Terra
Artigo do JL de 28 de Agosto de 2019 (número com destaque para o centenário de Fernando Namora, a literatura de Cabo Verde, fotos de minas abandonadas e o regresso da coluna de Carlos Reis) a propósito dos cinquenta anos da descida na Lua e da relação desse feito notável com a literatura e outros feitos igualmente épicos que se repercutem no mundo actual. [corrigi algumas gralhas da minha responsabilidade]
A 20 de Julho de 1969, Miguel Torga escreveu no Diário: “O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante.” Mas logo de seguida, Torga reflete sobre o seu entusiasmo com o feito e a tristeza perante as “monótonas e desconsoladas aventuras que restam à humanidade” que, em vez de “arredondarem a fraternidade”, alargam a solidão, completando o que havia escrito em Dezembro de 1968: “O homem tem pela primeira vez a grandeza do universo cósmico.”
Referi alguns aspectos da relação entre a ciência e a literatura, a propósito da ida à Lua, em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), mas uma evocação mais completa foi feita por David Seed no artigo Moon on the mind: two millenia of lunar literature da revista "Nature" de Julho de 2019. Já em 1943, Agostinho da Silva, numa publicação de divulgação cultural, "Viagem à Lua", editada por Helena Briosa e Mota, em Páginas Esquecidas (Quetzal, 2019), analisou a ciência de algumas ficções sobre a ida à Lua. Mas ainda mais interessante é a discussão do que para Agostinho é uma certeza – que o homem irá chegar à Lua - envolvendo o leitor na análise do que se sabe sobre a Lua e sobre os problemas dessa viagem, mais de 25 anos antes desta ter ocorrido!
O primeiro passo na Lua foi dado, como é sabido, por Neil Armstrong às 2 horas e 56 minutos (hora de Greenwich) do dia 21 de Julho. Na manhã seguinte, os jornais fizeram edições especiais com imagens de capa dos astronautas na Lua, passando quase despercebida, também na primeira página de alguns jornais, uma pequena notícia sobre o primeiro transplante realizado em Portugal - em Coimbra, a equipa de Linhares Furtado fez nessa mesma noite o transplante de um rim. Será que podemos comparar os dois feitos, aparentemente tão díspares? Será que a literatura dá atenção suficiente e compreende o que representa, em termos científicos e técnicos, a possibilidade de realização de transplantes, para além das muitas distopias que nos questionam – e bem - como Nunca de deixes de Kazuo Ishiguro?
A odisseia que foi (e continua a ser) o desenvolvimento das técnicas de transplante não envolve os meios financeiros e humanos da ida à Lua, mas é, em termos científicos, um feito com mais novidade científica. De facto, a ida à Lua é um resultado tecnológico que congregou, de forma fascinante e enorme complexidade, ciência e tecnologia já existentes, enquanto que o sucesso dos primeiros transplantes envolveu algo novo e desconhecido: o controlo químico da imunidade. Para além da perícia e excelência cirúrgica, os transplantes tornaram-se possíveis devido à sintese, por Gertrude Elion, no final dos anos 1950, da primeira molécula imunossupressora eficaz - a azatiotropina. É a invenção desta molécula que permitirá a Roy Calne nos anos 1960 iniciar um programa de transplantes que se generalizou a todo o planeta e está em contínuo desenvolvimento científico. Para além disso, a possibilidade de realização transplantes envolveu uma grande quantidade de descobertas e desenvolvimentos prévios como a anestesia, a assepsia, os grupos sanguíneos e transfusões de sangue e antibióticos, entre outros feitos da química medicinal e da medicina. Curiosamente, Miguel Torga no Diário refere o “milagre da ciência moderna” que são os antibióticos, mas não encontrei referências a imunossupressores. Muitos feitos médicos de base química, são quase invisíveis, mesmo para médicos, e, obviamente, também para a literatura.
No dia 5 Julho de 1963, depois de ter salvo um doente com muito esforço, Torga compara a dignidade das actividade humanas que se fazem todos só dias de forma competente, como salvar um doente, ou apertar bem um parafuso, com os feitos ainda por realizar. Para estes últimos escolhe a ida à Lua, referindo com melancolia: “Lá chegaremos, na mesma tristeza com que pisámos pela primeira vez as terras da Patagônia.” Essa tristeza é, para mim, a condição humana que a literatura ajuda a dar sentido, humanizando a ida à Lua, dando grandiosidade às coisas comuns, ou mostrando que os desenvolvimentos científicos e técnicos quase não mudam a natureza humana.
No Poema do Homem Novo, António Gedeão começa por enumerar alguns dos maravilhosos aspectos científicos e tecnológicos que envolvem o passeio na Lua de Neil Armstrong, concluindo de forma crua que o “Homem Novo” fez exactamente o que faria o “Homem Velho:” espetou a bandeira da sua pátria na Lua! É revelador que o fato espacial de Neil Armstrong seja um catálogo dos polímeros (plásticos) sintéticos disponíveis na altura – não, não foi a NASA que inventou o teflon ou qualquer dos polímeros usados no fato – e as suas várias camadas tenham sido cosidas por costureiras de uma fábrica especializada em sutiãs e cintas. Seis camadas de poliamidas, algumas aluminadas, uma de policloreto de vinilo, uma de elastano, duas de poliacrilonitrilo, nove de poliésteres, algumas com tecido de fibra de vidro, e duas de politetrafluoroetileno, com nomes comerciais, nylon, vinyl, spandex, nomex, neopreno, mylar, dacron, kapton e teflon, para além do capacete de policarbonato e das luvas com silicone. O sucesso da aventura da ida do homem à Lua envolveu mais de 400 mil pessoas, muitas delas engenheiros e operários nas muitas companhias que contribuíram para o projecto. Não é, por isso, estranho que muitas companhias tenham feito anúncios em que de forma directa, ou indirecta, ligavam os seus produtos à ida à Lua.
A ida à Lua foi um feito notável, mas os objectos e processos que nos rodeiam, ligados ou não à ida à Lua, têm histórias que podem ser igualmente épicas. Reflectindo com base no conhecido poema de Sophia, a civilização em que estamos é errada, talvez não tanto porque o pensamento se desligou da mão, uma vez que os arados são desde há muitos anos demasiado complexos, mas porque o pensamento não sabe qual o poder e os limites do alcance da mão nem se apercebe da real complexidade dos arados.
Frankenstein 200.0
Recupero um ensaio breve publicado no JL em 2018 a propósito dos duzentos anos do Frankenstein de Mery Shelley
Imagine-se a comissão de ética de uma universidade a analisar um projecto a submeter por uma equipa multidisciplinar de cientistas de vários países e empresas de biotecnologia a financiamento europeu: criar um ser humano a partir de tecidos e órgãos cultivados em laboratório ou colhidos em cadáveres. Um cenário equivalente é proposto na revista Science de Janeiro de 2018 para evocar os duzentos anos de Frankenstein de Mary Shelley: Victor Frankenstein propõe ao comité de ética da Universidade de Ingolstadt usar um “mecanismo de animação electroquímica” numa montagem de “peças anatómicas” e “restaurar a vida” assegurando que seguirá as melhores práticas éticas em relação à criatura obtida. Para além das dúvidas científicas sobre a viabilidade destes projectos, as propostas seriam muito provavelmente rejeitadas devido aos problemas éticos que levantam. Em Frankenstein o projecto é realizado em segredo e somos convidados a reflectir sobre as consequências deste ter sido realizado.
Ao longo dos últimos duzentos anos, os detalhes do processo de animação da criatura têm sido imaginados, a partir dos indícios presentes no texto e da ciência da época, como sendo de natureza eléctrica e química. Humphrey Davy, químico e poeta, protótipo do cientista do Romantismo, autor de trabalhos pioneiros de electroquímica, é citado de forma quase literal pela voz do professor de química Waldman, “com as mãos sujas e debruçados sobre os seus microscópios e cadinhos, [os químicos] fazem milagres; penetraram nos segredos da Natureza, sobem aos céus; descobriram a circulação do sangue e a natureza do ar que respiramos. Adquiriram poderes quase ilimitados; comandam o raio do céu, simulam os terramotos e até zombam do mundo invisível servindo-se das suas sombras“. Também a influência de Percy Shelley, amante e futuro marido de Mary, com o seu fascínio pela alquimia, química e electricidade, assim como os ecos das demonstrações com electricidade e cadáveres de Aldini, são relevantes para a formação desta imagem. O fascínio pela electricidade, vista como uma panaceia, mantém-se até ao século XX, mas já está presente no final do século XVIII. A ideia de que a electricidade poderia ser usada para ressuscitar pessoas “aparentemente mortas”, que conduziu ao desfibrilador actual, já aparece, embora de forma tímida, por exemplo, num texto do químico, farmacêutico e médico português, Manuel Henriques de Paiva, publicado em 1790, Método de restituir a vida às pessoas aparentemente mortas por afogamento ou asfixia.
Embora Victor Frankenstein refira a passagem por cemitérios, morgues e matadouros, quase nada no texto de Frankenstein se opõe a uma visão actualizada, obviamente anacrónica mas plausível, dos processos usados para animar a criatura. É certo que no livro não encontramos o trabalho de equipa da ciência actual, nem a participação de empresas, nem o financiamento público, ou a submissão prévia a uma comissão de ética, pois a narrativa segue os padrões da ciência romântica e a imagem do cientista solitário. Mas as possibilidades actuais de transplante de corpo (ainda em discussão), o uso de imunossupressores, a fecundação in vitro, a genética, a modificação genética, a edição de genes e a terapia genética, a clonagem, a biotecnologia, o crescimento de tecidos e órgãos in vitro, por exemplo, não são excluídos pelo texto. O facto de não “desvendar” o processo de animação da vida, um segredo que só Victor Frankenstein possuía e ainda hoje não conhecemos, faz com que um livro escrito antes da síntese da primeira molécula orgânica a partir de matéria inorgânica, do desenvolvimento da assepsia, da anestesia e do coma induzido, da identificação dos microorganismos e dos vírus, do estabelecimento da estrutura tridimensional das moléculas, em particular dos aminoácidos e das proteínas, da descoberta do ADN e dos genes, entre tantas outras coisas desconhecidas no tempo de Mary Shelley, continue relevante para a discussão dos problemas éticos e científicos actuais.
Frankenstein é muito mais do que a primeira obra de ficção científica no sentido contemporâneo ou um reflexo do Romantismo e do deslumbramento e temor perante a ciência. É um livro com múltiplas leituras que propõe dilemas éticos mais do que problemas técnicos e científicos. No final, o que acaba por ser mais importante são as questões morais que o livro coloca. Podemos ou deveremos fazê-lo? Se o fizermos como deveremos agir? De acordo com isso, vários autores têm referido Frankenstein como uma história a ser lida por todos os cientistas, como parte da sua formação.
O professor Waldman, ecoando Davy, diz a Victor que “para ser um cientista e não apenas um experimentador, deve estudar todos os ramos da ciência”. Abel Salazar, mais tarde, dirá que “um médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”. A formação humana é fundamental, mas Frankenstein vai mais longe e interroga-nos sobre os limites da ciência e as falhas do escrutínio científico e ético realizados pelos pares e sociedade.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
PORTAS DO INFERNO DESTE MUNDO EM QUE VIVEMOS
Steven Pinker, psicólogo e linguista, publicou, não há muito tempo, um livro com o título O iluminismo agora. Em defesa da razão, ciência, humanismo e progresso (traduzido em Portugal pela Editorial Presença). Nele defende, tal como em trabalhos anteriores e em conferências que tem feito em diversos países, incluindo o nosso, que este mundo em que vivemos é o melhor dos mundos. Que nunca a humanidade teve um mundo tão bom, tão justo. Usa indicadores de desenvolvimento reconhecidos e os números que apresenta para cada um deles comprovam o que diz. A sua tese, fundamentada em informação credível, permite-lhe afirmar que o cepticismo, o desencanto, o pessimismo que possamos ter deriva da ênfase que damos aos acontecimentos negativos. E isso em muito se deve ao jornalismo que, agora, nos dá acesso ao que é global. Em entrevista ao jornal Expresso, publicada em Junho passado, dizia o seguinte:
"... as pessoas pensam que vivemos numa época excecionalmente violenta, que a pobreza está a aumentar, que a iliteracia está a aumentar, e estão erradas, erradas, erradas. Isto não é otimismo, é aquilo que Hans Rosling chama ‘factfulness’. Ele inventou a palavra, que significa ter consciência dos factos”.Confiando nos dados apresentados por este professor de Harvard, há qualquer coisa que me incomoda na sua interpretação: entendo que, de alguma forma, pode desviar-nos dos grandes e pequenos problemas sociais (sempre de raiz, sobretudo, ética) que nos são mais próximos ou mais distantes. Remetem para uma tranquilidade que pode ser perigosa.
Porque acha que a perceção pública é aquela que é? Em parte tem que ver com a natureza do jornalismo. Ele foca-se em eventos, o que gera um preconceito a favor daquilo que é negativo. Porque muitas vezes as coisas boas consistem em não acontecer nada. Um país estar em paz, ou ser democrático, ou não ter sido atacado por terroristas. Ou as crianças lá crescerem com saúde. Os eventos tendem a consistir em coisas que correm mal: guerras, epidemias, etc. A perspetiva do mundo através do jornalismo é necessariamente diferente da perspetiva a partir de dados e tendências. Jornalistas já me confirmaram que têm a noção de que os assuntos sérios consistem em reportar o que está mal. Corrupção, fracassos, catástrofes, ameaças... investigação com a divulgação da ciência."
Por isso mesmo, vi e revi com grande interesse o debate realizado em Portugal - Ética, valores e política -, pouco dias antes da citada entrevista, entre Pinker e Michael Sandel. Os argumentos deste filósofo confirmaram a interpretação que havia feito e superaram-na. Há, de facto, problemas no mundo, muitos desses problemas são graves. Não podemos descansar sobre as conquistas feitas até aqui pois a regressão está sempre à espreita.
Neste Agosto está a passar na RTP3 uma séria de reportagens - Às portas do inferno -, que tem tudo a ver com o que acima disse.
Uma equipa de jornalismo dá a conhecer oito lugares onde, neste século XXI, os direitos humanos são (e hão-de continuar a ser por muito tempo) uma miragem: Rússia, Colômbia, Perú, Detroit - EUA, Nápoles, Honduras, México e Amazónia. Vacilamos, necessariamente, entre a leitura de base estatística de Pinker e a leitura de base crítica de Sandel.
São lugares que já conhecíamos, ao menos da comunicação social, devido aos dramas pelos quais as pessoas que os habitam passam. Há, porém, na abordagem de Sonia López e de Noemi Rodondo, as faces da equipa, um cuidado, uma delicadeza que empurram as reportagens para fora do que é comum.
Subtilmente, tanto nas imagens como nas conversas, percebe-se o sentido da Dignidade, quer de quem pertence a esses lugares quer de quem os visita. Sobressai o sentido de Pessoa, de se ser Pessoa. É esse sentido que, mesmo na maior miséria, na maior tragédia, não pode ser abandonado.
Isso percebe-se bem nas palavras de Sonia López (ver aqui).
¿Cómo son las puertas del infierno? En el caso de lo que hemos hecho Noemí Redondo y yo, se trata de un programa de reportajes documentales sobre situaciones que vive la gente en otros lugares del mundo; situaciones que para nosotros pueden ser normales como ser homosexual, mujer, niño, activista medioambiental o taxista, según en qué lugares estés puede convertirse en una situación de alto riesgo (...).
¿Periodismo de denuncia el suyo? De denuncia o, simplemente, periodismo de contar historias que al final es lo que nos gusta a los que nos dedicamos al periodismo…
Pero historias que de bonitas tienen bien poco, son muy duras. A veces puedes contar historias superbonitas, es muy agradable, y otras veces son más crueles y más duras (...).
Colombia ha disminuido su nivel de riesgo, pero si hablamos de México y de la situación de la mujer… La situación de la mujer en este país es muy cruel y dura. Personalmente, de los programas que he grabado es el que más me gusta, pero la dureza es terrible. Sientes que hay una injusticia brutal, hay un machismo tan metido en la sociedad que resulta inconsciente.
¿Se asume por parte de la sociedad? Decir que se asume es lo más duro, no toda la sociedad mexicana lo asume, pero sí una buena parte (...). Es peligroso que la gente no se escandalice por esa violencia hacia la mujer que hay en México.
Tiene que ser un infierno para las familias de las mujeres desaparecidas y asesinadas. En cualquier caso sería un infierno, pero en el caso de México no es un infierno respaldado por la sociedad. La gente se está acostumbrando en México a que la mujer sea utilizada y maltratada, no quiero generalizar y que se piense que en todo México se vive así, pero las cifras son escandalosas y duras: mueren seis mujeres al día en todo el país, cada cuatro horas es violada una mujer.
¿Sintió miedo al hacer alguno de estos reportajes? Miedo, no. Estoy muy acostumbrada a ir a lugares de riesgo, lo que tienes que tener es más precaución según a los sitios a donde vayas. No es lo mismo grabar en México que en otros sitios. Te involucras tanto con los testimonios, con las personas con las que hablas, con las familias de las víctimas, que piensas que pasar miedo al lado de los casos que estás viendo es una tontería. El auténtico peligro lo tienen ellos, no tú, que estás unos días y te vas. (...)
¿Qué país es el que más le ha impresionado de todos los reportajes que ha hecho en su vida profesional? Es complicado, cada uno te impresiona por una cosa u otra (...) me impresionó mucho Colombia como lugar atractivo para ir de vacaciones. Tiene unos paisajes increíbles, sobre todo por la zona del Caribe. Sin embargo, ahora he estado en Colombia haciendo este reportaje de los niños y ves otra realidad.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Jorge de Sena - o "urso mal lambido"
Novo "post" do académico e ensaísta Eugénio Lisboa (publicado inicialmente no Jornal de Letras):
No dia 5 de Junho de 1978, encontrava-me eu na embaixada de Portugal em Londres, onde acabara de chegar, para tomar posse, poucos dias antes, quando me deram a notícia do falecimento de Jorge de Sena, na véspera, em Santa Barbara, na Califórnia.
Tive um choque e uma sensação aguda de uma grande injustiça acabada de cometer-se. Não tinha sabido que o escritor estava doente, mais, não imaginava facilmente Jorge de Sena doente. Com, naquela altura, apenas 58 anos, conhecera-o, pessoalmente, seis anos antes, em Lourenço Marques (Moçambique), onde ele fora para, a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, proferir algumas conferências.
Ficara profundamente impressionado com a vitalidade ágil do escritor, com a sua conversa aliciante, vigorosa e mesmo sedutora, com a fluência fácil com que debitava a sua nunca árida erudição. Jorge de Sena era uma verdadeira força da natureza e as forças da natureza não se extinguem assim.
Por essa altura, uma certa aura de glória começara já a bafejar o escritor. O autor de Fidelidade era dono, ainda relativamente novo, de uma obra imensa e profunda. Dissemos já algures que “uma obra grande e profunda é sempre o resultado de uma longa e nunca saciada obsessão.” E citámos, a propósito, um grande poeta francês – Valéry – que observara ser “a glória […] uma espécie de doença que nós contraímos por irmos para a cama com o nosso pensamento.”
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, crítico, historiador e epistológrafo compulsivo, Sena entregara-se, sem se poupar, à construção de uma obra imponente. Nem sempre fora reconhecido na justa medida do seu valor e do seu empenho.
Em Portugal, nunca recebera um prémio literário e, depois do 25 de Abril, nenhuma universidade portuguesa se dignara oferecer-lhe um lugar nem nenhuma instituição cultural lhe abrira as portas. Humilhado, ofendido, mas não resignado, claramente despeitado - e com razão - – a sua correspondência com os amigos eloquentemente registava a ferida que o roía.
Urso mal lambido, como lhe chamou, certeiramente, Eduardo Lourenço, vingava-se da mesquinhez, produzindo uma obra vasta e de grande qualidade. Nisto, lembrava o romancista inglês D. H. Lawrence, que desabafava, nestes termos: “Eu gosto de escrever, quando me sinto despeitado; é como dar um bom espirro.”
Fosse como fosse, mesmo sem prémios nem lugares institucionais, relutantemente, avaramente, a glória fora-se-lhe chegando: torna-se impossível negar a força da evidência. E a sua obra aí estava a impor-se como uma grande e incontornável evidência. E fora, precisamente nesse momento, quando o renitente reconhecimento da sua grandeza se começava a impor, que a morte viera, traiçoeiramente, procurá-lo. Não era justo e era profundamente doloroso para os seus próximos e amigos.
Jorge de Sena saíra de Portugal, em 1959, rumo ao Brasil, para o começo de um exílio que não ia ter fim. Não que ele assim o desejasse. Sonhou sempre regressar, se não a Portugal, ao menos, à Europa. Mas foi, com o tempo, aprendendo que não há nunca regresso possível. Num poema comovente do livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1967 - já com oito anos de exílio distribuído pelo Brasil e Estados Unidos – pondera:
Jorge de Sena chamou um dia ao seu falecido amigo Adolfo Casais Monteiro “um cidadão do mundo em língua portuguesa”. Se alguém o foi – e pela medida grande – foi-o, indubitavelmente, Jorge de Sena. Não sei, até que ponto, a sua obra é hoje ainda lida e meditada com a atenção que merece. Numa entrevista dada à Vida Mundial, de 25.08.1972, Jorge de Sena dizia:
Se possível, amado.
Jorge de Sena |
Tive um choque e uma sensação aguda de uma grande injustiça acabada de cometer-se. Não tinha sabido que o escritor estava doente, mais, não imaginava facilmente Jorge de Sena doente. Com, naquela altura, apenas 58 anos, conhecera-o, pessoalmente, seis anos antes, em Lourenço Marques (Moçambique), onde ele fora para, a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, proferir algumas conferências.
Ficara profundamente impressionado com a vitalidade ágil do escritor, com a sua conversa aliciante, vigorosa e mesmo sedutora, com a fluência fácil com que debitava a sua nunca árida erudição. Jorge de Sena era uma verdadeira força da natureza e as forças da natureza não se extinguem assim.
Por essa altura, uma certa aura de glória começara já a bafejar o escritor. O autor de Fidelidade era dono, ainda relativamente novo, de uma obra imensa e profunda. Dissemos já algures que “uma obra grande e profunda é sempre o resultado de uma longa e nunca saciada obsessão.” E citámos, a propósito, um grande poeta francês – Valéry – que observara ser “a glória […] uma espécie de doença que nós contraímos por irmos para a cama com o nosso pensamento.”
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, crítico, historiador e epistológrafo compulsivo, Sena entregara-se, sem se poupar, à construção de uma obra imponente. Nem sempre fora reconhecido na justa medida do seu valor e do seu empenho.
Em Portugal, nunca recebera um prémio literário e, depois do 25 de Abril, nenhuma universidade portuguesa se dignara oferecer-lhe um lugar nem nenhuma instituição cultural lhe abrira as portas. Humilhado, ofendido, mas não resignado, claramente despeitado - e com razão - – a sua correspondência com os amigos eloquentemente registava a ferida que o roía.
Urso mal lambido, como lhe chamou, certeiramente, Eduardo Lourenço, vingava-se da mesquinhez, produzindo uma obra vasta e de grande qualidade. Nisto, lembrava o romancista inglês D. H. Lawrence, que desabafava, nestes termos: “Eu gosto de escrever, quando me sinto despeitado; é como dar um bom espirro.”
Fosse como fosse, mesmo sem prémios nem lugares institucionais, relutantemente, avaramente, a glória fora-se-lhe chegando: torna-se impossível negar a força da evidência. E a sua obra aí estava a impor-se como uma grande e incontornável evidência. E fora, precisamente nesse momento, quando o renitente reconhecimento da sua grandeza se começava a impor, que a morte viera, traiçoeiramente, procurá-lo. Não era justo e era profundamente doloroso para os seus próximos e amigos.
Jorge de Sena saíra de Portugal, em 1959, rumo ao Brasil, para o começo de um exílio que não ia ter fim. Não que ele assim o desejasse. Sonhou sempre regressar, se não a Portugal, ao menos, à Europa. Mas foi, com o tempo, aprendendo que não há nunca regresso possível. Num poema comovente do livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1967 - já com oito anos de exílio distribuído pelo Brasil e Estados Unidos – pondera:
“É que os lugares acabam. Ou ainda antes / de serem destruídos, as pessoas somem, / e não mais voltam onde parecia / que elas ou outras voltariam sempre / por toda a eternidade. Mas não voltam, / desviadas por razões ou por razão nenhuma.”Sabia, pois, que, mesmo que regressasse, um dia, já não regressaria àquilo que existira antes do exílio. Mas o belo poema de 1961, “Glosa de Guido Cavalcanti”, preconiza claramente a certeza de um nunca regressar:
“Porque não espero de jamais voltar / à terra em que nasci (…) / […] / porque não espero e morrerei / no exílio sempre, mas fiel ao mundo.”Dezanove anos durará esse exílio, que só terminará com a sua morte, em 1978. Anos de dura e lúcida aprendizagem, como ele testemunhou numa admirável entrevista dada à revista O Tempo e o Modo, em 1968:
“No meu caso pessoal, não creio que nove anos de vida no estrangeiro, iniciados quando eu ia fazer quarenta anos de idade, tivessem alterado fundamentalmente os meus interesses ou a minha «educação sociocultural». Nunca fui de entre Melgaço e Vila Real de Santo António, eu, um estrangeirado notório, exactamente como vários antecessores meus, dos grandes, na história literária portuguesa. Mas sem dúvida que a experiência de viver no Brasil (…), e a de viver nos Estados Unidos, lá entre brasileiros, aqui entre americanos (…), me abriu os olhos para algumas duras realidades do mundo contemporâneo, cuja visão raro encontro mesmo nas entrelinhas das publicações portuguesas. Aprendi, por exemplo, que a crueldade e a injustiça são terrivelmente universais, e que todas as formas de governo são extremamente imperfeitas, e que a mesma mesquinhez e a mesma estupidez subsistem em toda a parte. Isto não me tornou, de modo algum, céptico e conformista, em relação às minhas ideias de sempre, mas deu-me uma sabedoria e uma amarga prudência nas generalizações e nas particularizações.”Jorge de Sena, de quem se assinala este ano o centenário do nascimento, viveu sempre um exílio desassossegado, tirando o maior partido cultural possível dos países onde foi forçado a viver, mas sem afastar nunca o espírito de um Portugal que o obcecava, o irritava, mas com que profundamente se comprometia. Sempre sedento de um reconhecimento que entendia só avaramente lhe ser concedido e que, por isso, quase indiscretamente, reivindicava. Na já referida entrevista a O Tempo e o Modo, notava, com vigor e algum acinte:
“Não sou [um dos meus mais seguros admiradores]. A única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu o não fizesse, ninguém o faria. E se eu sou agudamente sensível a todas as formas de injustiça, haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo? Poucos escritores portugueses de relativo mérito deverão tão pouco à crítica como eu. De todos os sectores, o silêncio ou o amesquinhamento foram de regra durante quase trinta anos. Onde está a bibliografia a meu respeito durante trinta anos?”Depois da sua morte, os inéditos e dispersos, que abundantemente deixara, incluindo a sua vasta correspondência, foram piedosamente recolhidos e publicados em livro pela sua viúva, Mécia de Sena, que a essa tarefa votou uma colossal energia e um amoroso cuidado. Além de lhe reeditar os livros que entretanto se tinham esgotado.
Jorge de Sena chamou um dia ao seu falecido amigo Adolfo Casais Monteiro “um cidadão do mundo em língua portuguesa”. Se alguém o foi – e pela medida grande – foi-o, indubitavelmente, Jorge de Sena. Não sei, até que ponto, a sua obra é hoje ainda lida e meditada com a atenção que merece. Numa entrevista dada à Vida Mundial, de 25.08.1972, Jorge de Sena dizia:
“Não sei e acho que ninguém sabe exactamente «quem» lê as coisas em Portugal.”Eu não sei quem lê hoje o autor de O Físico Prodigioso e de Sinais de Fogo. Fala-se agora muito – tornou-se moda – no Panteão Nacional e, a propósito de cada morto mais ou menos notório, acena-se-lhe com o Panteão. Jorge de Sena não fugiu a esse aceno. Mas eu acho que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores. É esse o Panteão que sinceramente desejo para o autor de Metamorfoses: que continue vivo e activo porque continua a ser lido e reeditado.
Se possível, amado.
Que sentido tem, afinal, o valor da privacidade na política educativa?
A 7 de Agosto do passado ano foi aprovada, na Assembleia da República, a Lei n.º 38/2018, que assegura o "direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa". O Artigo 12.º é dedicado "à educação e ensino". Deixando de lado o direito em causa, a minha atenção dirige-se para a privacidade, valor ético que tenho investigado.
O meu objectivo é verificar o seu destaque na mais recente legislação que o menciona. Mesmo correndo o risco de me desviar do sentido primeiro do normativo, "recorto" do artigo o que se refere a tal valor:
Poderia, pois, concluir que, finalmente, agora, por via do reconhecido "direito à autodeterminação e de identidade de género", a privacidade, que tantos atropelos tem sofrido no nosso sistema educativo (como noutros, é bem verdade), tivesse sido, finalmente reconhecida como direito fundamental, tal como se encontra estabelecido na Constituição da República Portuguesa (cf. Artigo 26.º - Outros direitos pessoais). Seria uma conclusão errada.
De facto, limitando-me ao 1.º Ciclo do Ensino Básico, e apenas ao Estudo do Meio, verifico, em paralelo que:
O meu objectivo é verificar o seu destaque na mais recente legislação que o menciona. Mesmo correndo o risco de me desviar do sentido primeiro do normativo, "recorto" do artigo o que se refere a tal valor:
1 - O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo (...): a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação (...); b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens (...); c) Condições para uma proteção adequada da identidade (...) contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela (...), privacidade (...); d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo (...) 2 - Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados (...).Passado um ano, a meio deste Agosto, foi publicado o Despacho n.º 7247/2019, emanado da Presidência do Conselho de Ministros e Educação - Gabinetes da Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade e do Secretário de Estado da Educação, que "estabelece as medidas administrativas para implementação do previsto no supra mencionado artigo 12.º. O texto é muito semelhante ao da Lei, incluindo no número de vezes que a expressão "privacidade" surge nos textos: exactamente, três em cada um deles.
Poderia, pois, concluir que, finalmente, agora, por via do reconhecido "direito à autodeterminação e de identidade de género", a privacidade, que tantos atropelos tem sofrido no nosso sistema educativo (como noutros, é bem verdade), tivesse sido, finalmente reconhecida como direito fundamental, tal como se encontra estabelecido na Constituição da República Portuguesa (cf. Artigo 26.º - Outros direitos pessoais). Seria uma conclusão errada.
De facto, limitando-me ao 1.º Ciclo do Ensino Básico, e apenas ao Estudo do Meio, verifico, em paralelo que:
- no antigo Programa (aqui) e nas recentes Aprendizagens Essenciais (aqui) nada se alterou: em ambos se determina a exploração da vida privada (e íntima) das crianças e das famílias;A conclusão a tirar só pode ser uma: a privacidade não tem apenas um só sentido para a tutela. E fica dúvida se será, efectivamente, encarada como valor ético.
- e, claro, os manuais escolares, mesmo os mais recentes, continuam a operacionalizar essas directivas;
- a mesma exploração está presente nas fichas/questionários de caracterização sócio-familiar, que, ao que apurei, continuam a ser passados no início dos anos lectivos.
segunda-feira, 26 de agosto de 2019
NOVIDADES DA GRADIVA
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PROFESSORES, OS PILARES DA SOCIEDADE
Novo texto de Galopim de Carvalho:
Quem não vir esta realidade ou é “cego” ou “tapa os olhos”.
Devo começar por afirmar que não estou aqui para agradar ou desagradar a quem quer que seja. Estou apenas a revelar a análise que faço de um problema nacional que sempre me preocupou.
Em fins de férias ou, melhor em vésperas de um novo ano lectivo, a meio de uma campanha eleitoral sem qualidade no conteúdo e na forma, desejo saudar os professores (sem esquecer os educadores) das nossas escolas e reafirmar que os considero os pilares da sociedade e, uma vez mais, dizer a governantes e governados que É NECESSÁRIO E URGENTE RESTITUIR-LHES A ATENÇÃO, O RESPEITO E A DIGNIDADE QUE A LIBERDADE E A DEMOCRACIA LHES RETIRARAM.
Volto a dizer hoje o que já disse muitas vezes que, à semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 45 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos, civismo e conhecimento.
Continuamos um povo marcado por um défice “de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação” (palavras do Primeiro Ministro, António Costa). Entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a Educação.
E, aqui, volto a afirmar, a ESCOLA FALHOU COMPLETAMENTE. Ao longo destes anos, verifiquei que:
- a preparação científica e pedagógica dos professores não tem sido devidamente testada, através de processos de avaliação a sério, criteriosamente regulados, por avaliadores devidamente credenciados.Em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto, o Primeiro Ministro, disse:
- como no antigamente, a par de bons, muito bons e excelentes professores, muitos deles desmotivados, há outros, francamente maus, instalados na confortável situação de emprego garantido até à reforma;
- os sindicatos, nivelando, por igual e por baixo, os bons e os maus professores, têm grande responsabilidade numa parte importante da degradação do nosso ensino público;
- as sucessivas tutelas parecem estar mais interessadas nas estatísticas do que na qualidade do ensino;
- os programas oficiais amarram os professores, não lhes dando tempo para, como alguém disse, “divagações desnecessárias”;
- os professores estão sobrecarregados com tarefas administrativas e outras de que deveriam estar rigorosamente libertos;
- muitos deles vivem longe das famílias ou perdem horas nos caminhos diários de ida e volta a casa e a contarem os tostões.
“De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.Palavras sábias, mas que não passaram disso. A verdade é que continuamos na mesma, cada vez com mais futebol e, agora, entretidos a tempo inteiro, dos pais aos filhos crianças, a dedilharem telemóveis.
A. Galopim de Carvalho
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
Porque o fazemos?
A Gradiva acaba de publicar "HOT. A Ciência debaixo dos lençóis" da italiana Alice Page. Transcrevemos o início do cap. 1 sem caixas de texto nem ilustrações:
Porque o fazemos?
"ESTOU COM SONO. AMANHÃ TENHO DE ACORDAR CEDO. DÓI‑ME A CABEÇA. CADA UM DE NÓS, QUANDO NÃO PODE OU NÃO QUER FAZÊ‑LO, TEM A SUA PRÓPRIA LISTA DE MOTIVOS RACIONAIS E FISIOLÓGICOS DA QUAL PESCA UM PARA PODER DIZER QUE NÃO. MAS SE, PELO CONTRÁRIO, VOS PARASSEM NO MEIO DA RUA E PERGUNTASSEM POR QUE RAZÃO NÓS, SERES HUMANOS, NA INTIMIDADE DOS NOSSOS QUARTOS, NA CAMA, NOS BANCOS DESCONJUNTADOS DE UM AUTOMÓVEL OU NO MEIO DE UMA PRAIA DESERTA, SOMOS ARREBATADOS PARA O SEXO E O FAZEMOS LOGO ALI, DARIAM SEM DÚVIDA UMA RESPOSTA BEM DIFERENTE DA QUE VAI AQUI ABAIXO. E, MUITO PROVAVELMENTE, MAIS SEXY. MAS PODERIAM DEMONSTRÁ‑LO CIENTIFICAMENTE?
Porque os genes querem Agora que já terá pensado um pouco no assunto, talvez lhe tenha passado pela cabeça que, se elaborámos esta estratégia tão agradável para estarmos juntos, é para nos reproduzirmos e garantirmos a sobrevivência da espécie. E pronto, eis‑nos perante o caso mais clássico de incompreensão de toda a teoria da evolução. Sim, é um conceito errado — nenhum organismo se reproduz apenas para garantir a sobrevivência da espécie. Quem, por seu lado, se dedica ao estudo da evolução vai direito ao ponto: a razão pela qual, tal como a quase totalidade dos mamíferos — ou melhor, dos vertebrados —, o ser humano encontra o tempo e o desejo de copular é porque se trata do sistema mais eficiente para passar os próprios genes às gerações futuras, recombinando de forma particular as duas metades do património dos pais.
O contributo genético que homem e mulher disponibilizam para gerar a prole é repartida a 50 por cento entre os cromossomas de cada um, ou seja, 23 dos 46 cromossomas totais, encerrados, respectivamente, no núcleo do espermatozóide e no óvulo — os chamados gâmetas. Somente pela reprodução sexuada os gâmetas entram em contacto uns com os outros e têm oportunidade de fundir os próprios núcleos numa célula completamente nova, chamada zigoto. Desta célula, por meio de um mecanismo de multiplicação — a mitose — irá desenvolver‑se um indivíduo independente, dotado de um conjunto de cromossomas completo e nunca idêntico ao pai e à mãe, como cada um de nós.
A montante desta cascata de eventos está a meiose, o processo de divisão que, «rasgando» ao meio o conjunto cromossómico de uma célula parental (diplóide), leva à formação dos gâmetas. Estes acabam por possuir um conjunto cromossómico reduzido a metade (são por isso chamados haplóides), mas em combinações sempre novas, abrindo caminho à variabilidade genética que está subjacente à selecção natural e à evolução. E quando eles se encontram, dando origem à fertilização, surge ainda outra combinação de cromossomas. Através desta alternância entre meiose e fusão de gâmetas, as anteriores combinações de genes desfazem‑se e dão lugar, no fluxo das gerações, a novas combinações, que se reflectem em características sempre diferentes de indivíduo para indivíduo e assim são «testadas».
Sexo, quanto me custas
Durante as férias na praia já lhe aconteceu seguramente ver, deitada numa pedra ou num fundo de areia, uma estrela‑do‑mar. Ou em cestas, nos lugares do mercado, as esponjas naturais, muito suaves, com os seus mil poros. Sabia que algumas destas estrelas são capazes de se regenerar completamente, nem que seja de apenas um braço? E que aquelas esponjas, em determinadas circunstâncias, se multiplicam a partir de pequenos rebentos que se libertam da sua superfície?
Se o nosso olhar nos permitisse então observar de perto, como fazemos com o microscópio, as formas de vida mais pequenas, como as bactérias, perceberíamos que imensos organismos podem reproduzir‑se sem acasalamento. Entre estes, encontram‑se muitas plantas e alguns animais, como, por exemplo, a planária, um pequeno verme plano que, se cortado ao meio, pode regenerar‑se, dando origem a dois novos indivíduos distintos, sendo um o espelho do outro.
É evidente que na Natureza não é estritamente necessário acasalar para produzir novos indivíduos da sua própria espécie e colonizar novos ambientes. Ainda por cima, fazendo um balanço meramente económico, a reprodução assexuada é muito menos dispendiosa do que a sexuada. Do ponto de vista do tempo, é claramente mais rápida, já que o processo de formação de gâmetas não é necessário. Quanto aos recursos, não requer o aparato complicado no qual assenta o caminho da fertilização, como, por exemplo, os machos, que de facto em algumas espécies nem sequer existem. Além disso, este tipo de reprodução pode ser considerado mais seguro: envolvendo processos mais simples a cargo do genoma, deveria ser menos susceptível a erros.
Mas se é tão dispendioso, e se há uma alternativa, por que razão segue a esmagadora maioria dos organismos a via sexuada? Trará na verdade benefícios tão importantes? Como referimos, a reprodução não sexual é um fenómeno conservador: gera filhos geneticamente idênticos aos pais. A reprodução sexuada, que determina a mistura ao acaso dos genomas dos dois pais, pelo contrário, introduz novas características, isto é, mudanças potenciais nas espécies. Isto significa que, se uma criatura assexuada tem genes bem adaptados a um ambiente preciso, os seus filhos (no mesmo ambiente) sobreviverão bem. Mas quando o ambiente muda, o que por norma acontece de forma imprevisível, os organismos sexuados, graças precisamente às novas características, terão maiores hipóteses de sobrevivência, ou seja, uma maior capacidade de adaptação a novas condições.
Em suma, a reprodução permite‑nos formar uma combinação ideal de genes, ainda que, é certo, ela seja inevitavelmente recombinada na geração seguinte. A vantagem particular da recombinação está, acima de tudo, na eliminação de mutações deletérias e na formação de novas e diferentes combinações que permitam resistir cada vez melhor à capacidade de os parasitas e doenças de evoluírem mais rapidamente do que seus hospedeiros.
Ainda que não exista por enquanto uma resposta universalmente aceite no campo do debate científico (e, na verdade, nem sequer saibamos exactamente quando ela surgiu entre os seres vivos), a hipótese de que a via sexual seja a mais difundida precisamente porque aumenta a variabilidade genética e, portanto, a velocidade de adaptação das populações permanece, em suma, do ponto de vista evolutivo, a mais creditada. Fazer sexo, na prática, não seria simplesmente uma maneira de nos reproduzirmos, mas antes a estratégia que desenvolvemos para abarbatarmos o bilhete de entrada no próximo estádio de evolução.
As 1001 formas do desejo
Mas ainda não respondemos ao porquê de gostarmos de fazer isto, ou seja, qual a razão por que o desejo sexual é gerado, ou melhor, qual a razão evolutiva pela qual o desejo sexual foi escolhido. Uma explicação comummente aceite é que este será o resultado da selecção em ambos os sexos para aumentar a confiança de paternidade nos machos da nossa espécie (isto é, a ideia de ser realmente o pai de uma putativa criança), e que isto aconteça graças a um contacto físico prolongado entre macho e fêmea ligado, fundamentalmente, à impossibilidade de o macho determinar o momento da ovulação, isto é, o momento certo da concepção.
Sobre o mecanismo que depois, em cada um de nós, gera desejo sexual, o discurso torna‑se (se possível) ainda mais complicado. Os mais desinibidos já o terão exclamado, muitos outros o confirmarão agora: seguramente que, na grande maioria dos casos, não é a intenção de procriar. Com todo o respeito pela recombinação dos genes. De outra forma não se explicaria a existência de contraceptivos, tal como de sexo fora da idade fértil. Ou de todas as práticas e posições (sim, mais tarde vamos descrevê‑las em pormenor) que em nada estão relacionadas com a concepção e que, no entanto, fazem parte integrante da esfera íntima.
O facto é que, se é verdade que é necessário para a reprodução, o sexo é também uma componente fundamental de situações nas quais a reprodução é o último dos nossos pensamentos e em que o que se busca é exclusivamente o prazer em si mesmo.
Uma das hipóteses avançadas é que somos levados a fazê‑lo precisamente, e acima de tudo, porque gera prazer. Uma ideia que à primeira vista não pareceria descabida, mas que mesmo assim não é exaustiva: o sexo não é sempre, e automaticamente, agradável. E pensemos na masturbação: se é mesmo só o prazer que desejamos, não podemos alcançá‑lo também sozinhos? Seria até muito mais fácil. Porquê preocuparmo‑nos em encontrar um parceiro ou uma parceira?
Uma das teorias mais interessantes formuladas por cientistas para explicar a nossa necessidade é que, além da necessidade de resolver uma tensão física, o desejo de amalgamar o nosso corpo com o de outra pessoa faz parte de outro muito mais amplo: o de estabelecer vínculos e pôr em movimento dinâmicas interpessoais. E, com efeito, pensando bem, mesmo enquanto procuramos o prazer com a masturbação dificilmente fantasiamos com prados de flores ou céus azuis, mas antes, mais provavelmente, com o contacto com outra pessoa. Segundo alguns estudiosos, o que nos leva acima de tudo a fazer sexo será, em suma, a busca de uma ligação com os outros, e, portanto, um efeito do contexto e do espírito sociais próprios do ser humano.
Na tentativa de procurar respostas no terreno, uma intrépida dupla de investigadores da Universidade de Austin, no Texas, conduziu há alguns anos um inquérito numa grande amostra, constituída por estudantes da instituição e voluntários, perguntando‑lhes os motivos principais pelos quais faziam ou tinham feito sexo. A lista, depois publicada na revista Archives of Sexual Behavior, foi, no mínimo, interminável — um sinal de que, mesmo apenas entre os mecanismos psicológicos, as respostas são na verdade muito menos óbvias do que o esperado. Do generoso «queria satisfazer o meu parceiro», ao espiritual «Queria sentir‑me mais perto de Deus», passando pelo pérfido «Queria vingar‑me do meu parceiro por ele me ter mentido» até ao honesto «Estava bêbado», os cientistas recolheram neste estudo até 237 razões diferentes, num total de 444 inquiridos. Analisadas mais de perto, podem ser agrupadas de acordo com quatro tendências principais, cada uma com declinações internas:
·· Razões físicas, como a necessidade de reduzir o stress («É como fazer um bom exercício»), proporcionar prazer («É excitante »), experiência («Fiquei curioso») e atracção física pelo parceiro («A pessoa com quem o fiz dançava bem»).
·· Um objectivo preciso a alcançar, relativo ao plano prático («Queria ter um bebé»), estatuto social («Queria ser popular ») ou vingança («Queria passar uma doença venérea a alguém»).
·· Emoções como o amor, o estabelecer de um relacionamento («Queria sentir‑me ligado») e gratidão («Queria agradecer»).
·· Insegurança, ou seja, questões relacionadas com a auto‑estima («Queria ser objecto de atenções»), um sentido do dever ou pressões («A outra pessoa continuava a insistir»), o medo de ser abandonado («Queria impedir o meu parceiro de me deixar»).
Quais as mais populares? Interrogando mais de 1500 candidatos para obter uma lista completa, foi possível elaborar uma verdadeira classificação das razões mais frequentes, divididas entre homens e mulheres. Pode consultá‑las abaixo. (...)"
UMA CONVERSA SOBRE O SAL
A palavra sal foi-nos deixada pelos latinos ("sal,
salis"), que tanto a empregavam para designar o produto material extraído,
por evaporação, da água do mar, como para aludir, em sentido figurado, à
vivacidade, à finura cáustica, ao espírito picante, ao bom gosto, à
inteligência. E foi assim, com estes dois sentidos, que o sal entrou na nossa
linguagem quotidiana, da menos à mais erudita.
Salada, no feminino é um prato de vegetais em cujo tempero entra o sal, mas no masculino, salado, significa salgado, do mesmo modo que salão é terreno salgadiço, salgadio ou salino. Salário, já o dissemos, foi ração de sal e é hoje significado de remuneração. Salé é carne salgada e saleiro tanto é o recipiente onde se guarda o sal, com o qual salpresamos ou salpicamos os alimentos no prato, como é o homem que vende sal ou o que o produz, isto é o salineiro ou marnoto.
Salada, no feminino é um prato de vegetais em cujo tempero entra o sal, mas no masculino, salado, significa salgado, do mesmo modo que salão é terreno salgadiço, salgadio ou salino. Salário, já o dissemos, foi ração de sal e é hoje significado de remuneração. Salé é carne salgada e saleiro tanto é o recipiente onde se guarda o sal, com o qual salpresamos ou salpicamos os alimentos no prato, como é o homem que vende sal ou o que o produz, isto é o salineiro ou marnoto.
Mas saleira é o barco de fundo chato, do Vouga, que transporta o produto do seu trabalho. Salga é o acto de salgar, que o que os nossos pais faziam aos toucinhos e outras carnes, após a matança do porco, e às sardinhas que acomodavam em barricas para abastecer as populações do interior. Salgadinhos, comemo-los como aperitivos ou fazem o almoço frugal de muitos e salganhada ou salmonada é a falta de arrumo, é confusão. Salgados são as terras baixas, alagadiças invadidas por águas cuja salinidade ou salugem as torna salgadiças, sendo nestas baixas que, preferencialmente, se instala a salicultura ou salicicultura. Salicáceas são as plantas de uma família botânica, salicórnia é o nome vulgar de uma delas e salinómetro é o aparelho que mede o teor de sal. Salícula ou salífero é o terreno que produz sal. Salmoura é água mais ou menos saturada de sal, como a que conserva o atum e salmoeira, a vasilha.
É ainda a água salgada que percorre o pipeline de Matacães até à Póvoa de Santa Iria, e salmurdo é sinónimo de sonso ou matreiro. Salobra ou salmaça diz-se da água mais ou menos contaminada com sal. Salsa, como adjectivo, é o mesmo que salgada; como substantivo é a erva que usamos como tempero de muitas confecções culinárias, mas é também sinónimo de molho. E, para terminar, salsicha e salpicão são nomes de enchidos temperados com sal.
Tal não aconteceu com "halós" a palavra dos gregos sinónima de sal. A passagem deste povo pela península, muito anterior à dos romanos, não teve nem a duração nem a importância da ocupação romana. Apenas no jargão científico e tecnológico dispomos de vocábulos construídos com base neste outro étimo. Diz-se que um solo é halomórfico quando salgado, que um organismo é halofílico quando suporta bem a presença de sal e dá-se o nome de halófitas às plantas desse conjunto. Chama-se halite ao sal-gema, halogenetos aos minerais salinos e haloquinese à deformação tectónica induzida pela presença de rochas salinas no seio das sequências afectadas. Hiper-halino, hipo-halino, termo-halino, euri-halinos, esteno-halinos, etc., são mais alguns desses termos, nestes casos usados em oceanografia.
Para os químicos, o sal é um composto resultante da interacção de um ácido com uma base, como, por exemplo, a do ácido clorídrico com a soda cáustica,
HCl+Na(OH)→NaCl+H2O
ou da acção de um ácido sobre um metal, exemplificada pela reacção do mesmo ácido sobre o estanho,
2HCl+Sn→SnCl2+H2↑
ou da acção de um ácido sobre um metal, exemplificada pela reacção do mesmo ácido sobre o estanho,
2HCl+Sn→SnCl2+H2↑
Cloretos, sulfatos, brometos, iodetos, carbonatos, fosfatos,
etc. são sais. Porém, todos eles necessitam de um qualificativo que os distinga
dos restantes.
Sal amargo ou sal de Epson – cloreto de magnésio
Sal de Bertholet – clorato de potássio
Sal de Fischer – cobaltonitrito de potássio
Sal de Glasser – sulfato de potássio
Sal de Glauber – sulfato de sódio
Sal de la Hiquerra – sulfato de magnésio
Sal de la Rochelle – tartarato de sódio e potássio
Sal de Vichy – bicarbonato de sódio.
Sal de Bertholet – clorato de potássio
Sal de Fischer – cobaltonitrito de potássio
Sal de Glasser – sulfato de potássio
Sal de Glauber – sulfato de sódio
Sal de la Hiquerra – sulfato de magnésio
Sal de la Rochelle – tartarato de sódio e potássio
Sal de Vichy – bicarbonato de sódio.
Só o cloreto de sódio dispensa
esse cuidado. Basta-lhe a palavra sal dita ou escrita isoladamente.
A. Galopim de Carvalho
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA GEOLOGIA NAS NOSSAS ESCOLAS
Se há matérias que têm características passíveis de serem ministradas numa política de regionalização do ensino e que muito conviria considerar, a Geologia satisfaz esta condição.
Portugal, de Norte a Sul e nas Ilhas, dispõe de uma variedade de terrenos que cobrem uma grande parte do tempo geológico, desde o Pré-câmbrico, com mil milhões de anos, aos tempos recentes.
No que se refere à diversidade litológica, o território nacional exibe uma variedade imensa de tipos de rochas, entre ígneas, metamórficas e sedimentares e, no que diz respeito aos minerais, o número de espécies aqui representadas é, igualmente, muito grande, e o número de minas espalhadas pelo território e hoje abandonadas ultrapassa a centena.
Temos, muito bem documentadas, as duas últimas grandes convulsões orogénicas.
A Orogenia Hercínica ou Varisca, que aqui edificou parte da vasta e imponente cadeia de montanhas de há mais de 300 Ma e hoje quase completamente arrasada pela erosão, e a Orogenia Alpina que, nas últimas dezenas de milhões de anos, entre outras manifestações, elevou o maciço da Serra da Estrela, à semelhança de uma tecla de piano que se levanta acima das outras, e dobrou o espectacular anticlinal tombado para Sul, representado pela serra da Arrábida.
Podemos mostrar aos nossos alunos muitas e variadas estruturas tectónicas, como dobras, falhas, cavalgamentos, carreamentos e uma excepcional discordância angular.
Temos, à nossa disposição, múltiplos aspectos de vulcanismo activo e adormecido (nos Açores) e extinto, de um passado recente (na Madeira, há 7 Ma, e Porto Santo, há 14 Ma) e antigo de cerca de 70 Ma, entre Lisboa e Mafra. Temos fósseis de todos os grandes grupos sistemáticos e de todas épocas.
Temos dinossáurios em quantidade e algumas das pistas com pegadas destes animais entre as mais importantes da Europa e do mundo.
Tudo isto para dizer que, no ensino da Geologia, para além de um conjunto de bases gerais consideradas essenciais e comuns a todas as escolas do país, as do ensino secundário, deveriam ministrar um complemento criteriosamente escolhido sobre a geologia da região onde se inserem.
Assim, e a título de exemplo, as escolas das regiões autónomas, aproveitando as condições especiais que a natureza lhes oferece, deveriam privilegiar o ensino da geologia própria das regiões vulcânicas, incluindo a geomorfologia, a petrografia, a mineralogia, a geotermia e a sismicidade (estas duas, nos Açores).
Do mesmo modo, o citado vulcanismo extinto, entre Lisboa e Mafra, o maciço subvulcânico de Sintra (possivelmente um lacólito), o mar tropical pouco profundo que aqui existiu, durante uma parte do período Cretácico, deveriam ser objecto de estudo dos alunos da “Grande Lisboa”. Os exemplos são muitos e cobrem todo o território.
O termalismo em Chaves, São Pedro do Sul e em muitas outras localidades, os vestígios de glaciações deixados nas serras da Estrela e do Gerês, o complexo metamórfico e os granitos da foz do Douro, os “grés” de Silves, os quartzitos da Livraria do Mondego e a discordância angular da Praia do Telheiro (Vila do Bispo) deveriam constar dos programas das escolas das redondezas.
Estes e muitos outros exemplos reforçam a ideia da possibilidade de uma adequada informação sobre a geologia regional a complementar um bem pensado programa de base comum a todas as escolas.
Portugal, de Norte a Sul e nas Ilhas, dispõe de uma variedade de terrenos que cobrem uma grande parte do tempo geológico, desde o Pré-câmbrico, com mil milhões de anos, aos tempos recentes.
No que se refere à diversidade litológica, o território nacional exibe uma variedade imensa de tipos de rochas, entre ígneas, metamórficas e sedimentares e, no que diz respeito aos minerais, o número de espécies aqui representadas é, igualmente, muito grande, e o número de minas espalhadas pelo território e hoje abandonadas ultrapassa a centena.
Temos, muito bem documentadas, as duas últimas grandes convulsões orogénicas.
A Orogenia Hercínica ou Varisca, que aqui edificou parte da vasta e imponente cadeia de montanhas de há mais de 300 Ma e hoje quase completamente arrasada pela erosão, e a Orogenia Alpina que, nas últimas dezenas de milhões de anos, entre outras manifestações, elevou o maciço da Serra da Estrela, à semelhança de uma tecla de piano que se levanta acima das outras, e dobrou o espectacular anticlinal tombado para Sul, representado pela serra da Arrábida.
Podemos mostrar aos nossos alunos muitas e variadas estruturas tectónicas, como dobras, falhas, cavalgamentos, carreamentos e uma excepcional discordância angular.
Temos, à nossa disposição, múltiplos aspectos de vulcanismo activo e adormecido (nos Açores) e extinto, de um passado recente (na Madeira, há 7 Ma, e Porto Santo, há 14 Ma) e antigo de cerca de 70 Ma, entre Lisboa e Mafra. Temos fósseis de todos os grandes grupos sistemáticos e de todas épocas.
Temos dinossáurios em quantidade e algumas das pistas com pegadas destes animais entre as mais importantes da Europa e do mundo.
Tudo isto para dizer que, no ensino da Geologia, para além de um conjunto de bases gerais consideradas essenciais e comuns a todas as escolas do país, as do ensino secundário, deveriam ministrar um complemento criteriosamente escolhido sobre a geologia da região onde se inserem.
Assim, e a título de exemplo, as escolas das regiões autónomas, aproveitando as condições especiais que a natureza lhes oferece, deveriam privilegiar o ensino da geologia própria das regiões vulcânicas, incluindo a geomorfologia, a petrografia, a mineralogia, a geotermia e a sismicidade (estas duas, nos Açores).
Do mesmo modo, o citado vulcanismo extinto, entre Lisboa e Mafra, o maciço subvulcânico de Sintra (possivelmente um lacólito), o mar tropical pouco profundo que aqui existiu, durante uma parte do período Cretácico, deveriam ser objecto de estudo dos alunos da “Grande Lisboa”. Os exemplos são muitos e cobrem todo o território.
O termalismo em Chaves, São Pedro do Sul e em muitas outras localidades, os vestígios de glaciações deixados nas serras da Estrela e do Gerês, o complexo metamórfico e os granitos da foz do Douro, os “grés” de Silves, os quartzitos da Livraria do Mondego e a discordância angular da Praia do Telheiro (Vila do Bispo) deveriam constar dos programas das escolas das redondezas.
Estes e muitos outros exemplos reforçam a ideia da possibilidade de uma adequada informação sobre a geologia regional a complementar um bem pensado programa de base comum a todas as escolas.
A. Galopim de Carvalho
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