segunda-feira, 28 de agosto de 2017

NOBEL PARA AS TRANSIÇÕES DE FASE


Minha crónica na última gazeta de Física, dedicada ao Nobel da Física de 2016:

O Prémio Nobel da Física de 2016 foi atribuído a três físicos teóricos britânicos, a trabalhar nos Estados Unidos:  David Thouless (metade do prémio) e Michael Kosterlitz e Duncan Haldane (que dividiram entre si a outra metade). Foram recompensados pela descoberta de novas fases da matéria. Essas fases, ditas topológicas, foram encontradas nos anos 70 e 80 do século passado em sistemas a duas dimensões – um filme -  ou a uma dimensão – um fio -  a temperaturas muito baixas. A questão era: como se ordena a matéria perto do zero absoluto nessas dimensões? A investigação teórica guiada pela curiosidade conduziu a fases estranhas, que não tardaram a ser confirmadas em laboratório.

São bem conhecidas as fases líquida, sólida e gasosa da água. Transições de fase são, neste caso, por exemplo a fusão do gelo e a vaporização da água líquida. Em transições como estas muda a organização dos constituintes: no gelo, as moléculas de água ocupam posições regulares numa rede, na água líquida as moléculas movem-se mais livremente, embatendo umas nas outras, e no vapor de água a liberdade molecular é ainda maior, quase não havendo choques. Partindo do conhecimento dos constituintes e das respectivas interacções, os físicos conseguem prever as mudanças de fase. Um outro exemplo bem conhecido de transições de fase ocorre num íman: uma barra ferromagnética perde o seu magnetismo a altas temperaturas uma vez que os spins de partículas constituintes deixam de estar alinhados. O mais interessante é que as transições de fase em sistemas muito diferentes, como a água e o ferro, têm semelhanças. E há outras transições de fase aparentadas. No início do século XX foram descobertos experimentalmente os supercondutores – materiais que não ofereciam resistência à passagem da corrente eléctrica a baixas temperaturas –e  os superfluidos – materiais que perdiam a viscosidade nessas condições. Percebeu-se depois que essas novas fases podiam ser explicadas pela mecânica quântica, que impera a baixas temperaturas.

Tudo isto se passa no normal espaço tridimensional. Ora Thouless, Kosterlitz e Haldane interrogaram-se se existiria magnetismo, ou superfluidez ou supercondutividade, em sistemas de baixa dimensão, perto do zero absoluto. Parecia que só a três dimensões seria possível haver ordem porque têm de existir suficientes átomos vizinhos para haver comportamento colectivo. Os trabalhos daqueles físicos, na altura ainda a trabalhar na Europa, permitiram concluir que afinal existiam fases ordenadas a duas e uma dimensão. Num sistema magnético (e algo semelhante se passa num supercondutor ou num superfluido), podem-se formar vórtices de spins, que desaparecem a uma certa temperatura.  Apesar de as leis quânticas serem conhecidas, o comportamento colectivo emergente perto do zero absoluto era inesperado.

Um exemplo espectacular de mudanças de fase topológicas foi encontrado na condução de electricidade em sistemas electrónicos a duas dimensões. Foi observado que a condutividade eléctrica dava certos saltos com a variação de temperatura (este é o efeito de Hall quântico, cuja identificação experimental proporcionou o Nobel da Física ao alemão Klaus von Klitzing em 1985). O efeito permite actualmente aos físicos medir constantes fundamentais da Física com grande precisão.

O Nobel da Física de 2016 mostra, uma vez mais, o enorme poder da Física. De posse de leis fundamentais, os físicos conseguiram prever estruturas novas. Na altura, ninguém pensou em aplicações. Décadas volvidas, as fases topológicas são hoje uma possibilidade na construção de computadores quânticos. A Física é uma permanente caixinha de surpresas.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

É de louvar a divulgação.
Reedito o comentário que deixei aqui, a 04.10.2016:

Quanto tempo mais vai ser preciso até que, em geral, se perceba o fascínio da ciência e se aposte fortemente na divulgação científica junto das crianças e jovens?! Voltamos a estar, de novo, e de um modo avançado, na Era dos Descobrimentos, do que nos rodeia e, ainda mais "mágico", do que somos capazes. O "comportamento" da matéria é do mais fascinante e surpreendente que há. Tudo em redor parece refletir-nos um estatuto de observadores cujo privilégio consiste, justamente, em observar; e tanto maior será o privilégio quanto melhor o fizermos.

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