Nota minha para a "História do Futuro" do Padre António Vieira, na nova edição que acaba de sair no Círculo de Leitores:
O
Padre António Vieira inclui nesta sua obra os “matemáticos” Tycho Brahe (1546-1601)
e Johannes Kepler (1571-1630), respectivamente dinamarquês e alemão, na
categoria dos “profetas”. Eram os dois astrónomos famosos no seu tempo: o
primeiro faleceu sete anos antes de Vieira nascer e o segundo quando este tinha 22
anos. Foi com base nas observações do seu mestre Tycho que Kepler formulou as três
leis dos movimentos planetários que haveriam de servir de base à lei da gravitação
universal de Isaac Newton (1643-1727). De facto, os astrónomos adquiriram nessa
altura, baseados na matemática, a capacidade de efectuar previsões mais exactas
das posições dos planetas.
No
entanto, observaram-se acontecimentos inesperados no céu que resistiam à
matematização: a passagem de cometas, astros com órbitas muito alongadas do
sistema solar e só temporariamente visíveis da Terra, e a explosão de estrelas muito
pesadas, num processo terminal das suas vidas, que Tycho confundiu com o
aparecimento de estrelas (daí ter-lhe chamado “novas”; hoje chamamos-lhe
supernovas). A passagem de cometas foi abundante na época: por exemplo, em 1607
Kepler viu o cometa Halley, que não tinha então esse nome. E, apesar de serem
eventos muito raros (apenas um em cada século na nossa Galáxia), Tycho e Kepler
tiveram a sorte de observarem duas “novas”, uma cada um: Tycho viu, a olho nu,
uma em 1572 (desnominada hoje SN 1572), na constelação da Cassiopeia, e Kepler
viu, também à vista desarmada, outra em 1604 (a SN 1604), no Ofiúco. Os dois
escreveram dois livros com o mesmo título, De
Stella Nova, respectivamente em 1573 e em 1606.
Tycho
e Kepler viveram o tempo em que a astrologia dava lugar à astronomia,
coexistindo as duas num processo lento de transição. De facto, Kepler fornecia ao
imperador Rudolfo II previsões de vários tipos. Tanto os cometas como as “novas”
serviram para arredar a ideia aristotélica de imutabilidade dos céus, numa
ruptura que significava um enorme avanço científico. Mas, na antiga tradição astrológica,
eles eram também vistos como presságios de acontecimentos. Tanto uns como
outros foram interpretados como sinais de Deus. Tal foi particularmente
evidente no caso da “nova” de Kepler. Como em 1603 tinha começado um novo
“trígono ígneo”, um período de 800 anos iniciado por uma conjugação de Júpiter
e Saturno (outros tinham começado com o nascimento de Cristo e com a coroação
de Carlos Magno no dia de Natal de 800 em Roma), a “nova” do ano seguinte não
pôde deixar de ser associada a esse evento nos céus. Especulava-se, porém,
sobre qual seria a grande novidade no mundo.
Vieira
foi autor de um discurso místico, obviamente não científico, mas que se
procurou apoiar em modernos dados da ciência. Em vários dos seus escritos fala
dos cometas, procurando interpretar o seu significado. E, neste trecho da História do Futuro, fala das duas “novas”,
a de Tycho e a de Kepler. Não tem dúvidas de que elas trazem notícias de Deus:
“Que costuma Deus por sinais falar e avisar aos homens. E porquê? Porque quer
que se conheça que são efeitos de sua providência, e não acasos.” Sobre o
sentido desses sinais, Vieira não se coibiu de especular, invocando para legitimar
as suas teses os escritos dos “matemáticos”. Ele conhecia bem os livros de
Tycho e Kepler sobre as novas estrelas. Quanto à primeira, cita o astrónomo
dinamarquês: “Tico chama a estrela da Cassiopeia o maior milagre da natureza,
que sucedeu desde o princípio do mundo, nada inferior ao parar o sol em tempo
de Josué “ Quanto à segunda, que teve maior luminosidade do que a anterior, afirma
que “não houve semelhante coisa no céu depois da criação do mundo”. E não hesita
em associá-la à Restauração de Portugal, que havia de ser sede do Quinto
Império. Num dos seus sermões salientou que o rei D. João IV tinha nascido no
ano da estrela de Kepler, acrescentando:
"E
significava mais alguma coisa a mesma estrela nova? Duas coisas, e duas novidades
as maiores que nunca viu, e há muitos anos espera ver o mundo. A primeira, que
na cristandade se levantaria uma nova monarquia, que dominaria e seria senhora
de todo o universo. A segunda, que esta monarquia e o seu monarca seria o que
destruísse e extinguisse a seita e império maometano. Assim o diz expressamente
o já alegado Képlero, matemático famoso deste século, que, com a mesma estrela diante
dos olhos, observando todos os movimentos seus, e dos outros astros, compôs
dela um eruditíssimo livro, no qual, descendo a declaração e juízo de seus
efeitos, ou influidos, o primeiro é este: [latim] Quer dizer: que desde o ano de
1604, em que aquela estrela apareceu no céu, começava a nascer e se levantar na
terra uma nova república, a qual crescendo com a idade, viria a formar a seu
tempo um império universal, debaixo de cuja obediência todos os reinos do
mundo, que ao presente tumultuavam ferozmente em guerras, deporiam as armas, e
ele seria o jugo que os amansasse, e o freio que os contivesse em paz" (in Sermões, vol. XV, Lello, pp. 74-75).
A mesma leitura da obra de Kepler é
apresentada no seu “Discurso em que se prova a vinda
do senhor Rei D. Sebastião” (in Obras inéditas. Lisboa, eds. J.-M.C. Seabra
e T. Q. Antunes, 1856, tomo I, pp. 224-225). Como conciliar o profetismo político-religioso
de Vieira, que busca fundamento nos astros, com a recusa da astrologia judiciária,
emanada do concílio de Trento? A doutrina católica, então clarificada, impossibilitava
os juízos feitos nos horóscopos sobre o futuro de indivíduos, mas não impedia
profecias a respeito da Natureza, de regiões ou de países. Contudo, como mostra
o processo que lhe levantou a Inquisição, o padre jesuíta, obcecado com a
decifração do futuro, movia-se, teologicamente, num terreno perigoso.
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