segunda-feira, 23 de junho de 2014

Prefácio à edição portuguesa do livro "A Partícula no Fim do Universo"


Prefácio à edição portuguesa do livro "A Partícula no Fim do Universo" de Sean Carroll, que muito em breve vai sair na Gradiva, intitula-se "Portugal e a Física numa descoberta dedicada ao Futuro da Ciência em Portugal". São seus autores José Mariano Gago, Amélia Maio e João Varela (agradecemos à editora a gentil cedência do texto em pré-publicação):

 Este livro conta a história de uma descoberta científica extraordinária. Trata‑se, contudo, de um episódio apenas, e apenas num dos domínios das ciências físicas, embora de tanta importância que dele continua a brotar uma renovada visão do nosso mundo material, das suas origens e do seu devir.

 Data do século XIX  a descoberta de que a electricidade e o magnetismo são manifestações de um mesmo fenómeno, a que chamamos electromagnético. Essa compreensão nova traduziu‑se em equações e, portanto, na capacidade de prever fenómenos, inventar e desenvolver técnicas novas, desde a produção e transporte de energia eléctrica às telecomunicações e a toda a química moderna. No século XX, a descoberta da radioactividade natural e dos raios cósmicos e a progressiva descoberta e compreensão dos constituintes fundamentais da matéria e das interacções entre eles desenvolveram‑se apenas a partir do quadro conceptual completamente inovador que a teoria da relatividade e a mecânica quântica vieram proporcionar. 

Nos anos 60 do século XX entendeu‑se que a «unificação » da electricidade e do magnetismo num mesmo quadro interpretativo era possivelmente um modelo mais geral no qual cabia a «unificação», talvez, de todas as outras interacções conhecidas. Depois de muitas tentativas, um passo nesse sentido foi a construção de um modelo  coerente do campo electromagnético e das interacções «fracas » (que se manifestam, por exemplo, no decaimento radioactivo). Esse modelo previa a existência de novas partículas (W e Z, entretanto descobertas efectivamente no CERN, Organização Europeia de Física de Partículas) e obrigava ainda à incorporação nas equações de um «campo» ainda desconhecido a que deveria corresponder uma partícula observável. 

O livro trata, pois, da história dessa partícula imaginada, a que hoje se chama (por razões nele explicadas) o «bosão de Higgs», e da sua efectiva descoberta ao fim de um esforço experimental mundial sem precedentes na ciência.

 Ao longo de mais de vinte anos, milhares de físicos e de engenheiros, milhares de estudantes, centenas de instituições e países de todo o mundo juntaram‑se na invenção e desenvolvimento de novas tecnologias, na operação do acelerador e colisionador de partículas mais eficaz e potente alguma vez construído, de detectores impressionantes, e de métodos inteiramente novos de extrair, seleccionar, partilhar e interpretar gigantescos volumes de dados experimentais adquiridos. 

O CERN, organização científica intergovernamental europeia criada em 1954 sob a égide da UNESCO e hoje de âmbito mundial, surge‑nos como um dos melhores exemplos de sucesso de uma Europa como a desejaríamos: aberta e apostada no conhecimento. 

Em 1990 foram apresentadas propostas de experiências capazes de revelar, ou de infirmar, a existência do «bosão de Higgs» no novo colisionador de protões do CERN (designado por LHC). Foi o início de um longo percurso seguido por cientistas do LIP (Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, criado em 1986,  no seguimento da adesão de Portugal ao CERN) que desde o início se associaram às experiências ATLAS e CMS, no LHC. No total, cerca de dez mil cientistas do mundo inteiro trabalharam para estas experiências, na maioria europeus (incluindo portugueses, bem entendido), mas também americanos e russos em grande número, e japoneses, chineses, canadianos, iranianos, indianos, turcos, israelitas ou palestinianos, cientistas de mais de duas centenas de nacionalidades e de todos os continentes, sem reservas ou restrições geopolíticas. Tiveram de ser reinventadas novas formas de organização e de funcionamento. O CERN constituiu‑se, mais ainda do que no passado, numa verdadeira organização científica mundial capaz de promover os valores da cooperação pacífica. 

Foi preciso inventar ímanes supercondutores capazes de fornecer um campo magnético suficientemente forte para manter em trajectória circular os protões ao longo dos 27 kms de perímetro do LHC. Foi necessário projectar e construir o maior sistema de criogenia jamais imaginado capaz de manter os milhares de ímanes no túnel do LHC a uma temperatura vizinha do zero absoluto com hélio superfluido. 

Foi necessário inventar novos materiais: por exemplo, o cristal de tungstanato de chumbo para detectar electrões e fotões energéticos, constituído a 98 por cento de metais pesados, mas transparente. Foi preciso desenvolver novos fotodíodos para a detecção das emissões de luz de baixíssima intensidade geradas nestes cristais. Para detecção de partículas ionizantes foi preciso desenvolver fibras ópticas cintilantes e WLS (deslocadoras do comprimento de onda) flexíveis e resistentes à radiação. 

Tornou‑se necessário inventar uma tecnologia de microchip capaz de suportar doses enormes de radiação no seio  dos detectores, muitas ordens de grandeza acima da radiação a que os circuitos nos satélites estão sujeitos, por exemplo. 

Foi ainda preciso projectar e construir sistemas electrónicos novos, instalados em centenas de armários com milhares de módulos e interconectados por dezenas de milhares de ligações ópticas, para fazer a leitura de dados das colisões todos os 25 bilionésimos de segundo. 

Foi indispensável construir detectores únicos e excepcionais: ATLAS, com a altura de um prédio de dez andares e o comprimento de meio campo de futebol; CMS, com o peso da torre Eiffel, integrando dezenas de milhões de sensores posicionados com precisão micrométrica. 

Inventou‑se um novo conceito de computação, o GRID, capaz de federar computadores em centenas de centros de cálculo de instituições científicas em todo o planeta de modo a poderem processar os dados recolhidos. 

O que motivou esta comunidade de cientistas a lançar‑se com entusiasmo num desafio científico e tecnológico de tão excessiva complexidade? Para além do orgulho próprio de um grupo de físicos e engenheiros capaz de realizações tecnológicas «impossíveis», esta comunidade moveu‑se pela convicção profunda de que o LHC iria trazer algo de muito importante para a ciência. Nos seus anos de universidade, muitos dedicaram muitas horas a tentar compreender os mistérios quânticos e a estudar o legado de Einstein. Maravilharam‑se com o percurso da física de partículas no século XX. São apaixonados da física que dedicaram muito das suas vidas a estas experiências porque sabem que há segredos da natureza a que o LHC pode dar acesso. O mesmo se passa, naturalmente em todas as ciências e em todo o progresso científico. O sucesso de um longo esforço em física pertence também à comunidade científica no seu conjunto, porque representa um progresso dos valores da ciência, e diz respeito à sociedade toda, que encoraja e apoia o desenvolvimento científico e acredita nos seus cientistas. 

Através do LIP, Portugal participa no programa experimental no LHC desde o seu início, em 1992. O LIP congrega o esforço nacional de física experimental de partículas, instrumentação associada e aplicações directas à investigação biomédica ou à pesquisa espacial. São associados do LIP as Universidades de Coimbra, Lisboa e Minho e o IST (Instituto Superior Técnico), além da ANIMEE (Associação Nacional de Indústrias de Material Eléctrico e Electrónico) e da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). São também membros do LIP professores de outras instituições de ensino superior nacionais e estrangeiras, politécnicas e universitárias. 

Consequência directa da adesão de Portugal ao CERN em 1985 e da internacionalização científica do país, a participação nacional no LHC nos últimos vinte anos é um dos casos de sucesso da ciência em Portugal. A contribuição portuguesa, traduzida em resultados científicos e em posições de liderança a vários níveis das colaborações CMS e ATLAS, está acima da média. O LIP foi responsável pela construção de componentes significativas dos detectores, e tem a enorme responsabilidade de as manter em funcionamento. Alguns dos seus cientistas integraram directamente as equipas que analisaram os dados e revelaram a existência do bosão de Higgs. Várias indústrias nacionais forneceram componentes e serviços para o LHC e para os seus detectores, adquirindo competências e mercados novos. Centenas de jovens engenheiros integrados nos projectos tiveram oportunidades únicas de formação e várias dezenas de novos doutorados em física são hoje capazes de liderar projectos tecnológicos complexos, como exigido na indústria moderna.

Esta é também uma ocasião para prestar homenagem à centena e meia de físicos, engenheiros e estudantes de investigação portugueses que nos últimos vinte anos, de alguma forma ou nalgum período, colaboraram no esforço nacional para este imenso empreendimento. Deve‑se a estes actores anónimos, do LIP e de outras instituições científicas e instituições de ensino superior, contribuirmos de forma visível e reconhecida para esta aventura científica extraordinária. 

O LHC realizou as primeiras colisões à energia de 7 TeV em Março de 2010, mas só em 2011 reuniu um volume significativo de dados. Em 2012 a energia do acelerador subiu para 8 TeV. Uma vez os detectores afinados, o desafio para os experimentalistas em CMS e ATLAS consistiu então na análise de gigantescos volumes de dados correspondentes a algumas dezenas de biliões de interacções registadas. Objectivo: encontrar as poucas centenas de colisões em que possivelmente tivessem sido criados bosões de Higgs. 

O «Modelo‑Padrão » prevê que o Higgs se desintegre, dando origem a outras partículas. As pesquisas de eventos com dois fotões ou dois bosões ZZ ou WW eram as mais promissoras. Entre Março e Junho de 2012 as experiências tinham acumulado uma estatística equivalente à que tinha sido conseguida em 2011. Depois da campanha de 2011 sabíamos que, a existir, o Higgs teria massa entre 114 e 127 GeV. De forma a evitar qualquer possibilidade de enviesar os resultados, em 2012 a optimização das análises foi feita com dados simulados ou com dados reais em zonas de controlo, sem poder ver ou antecipar o resultado nesta região de massa, um procedimento designado por blinding. O dia 15 de Junho foi um dia de emoção na experiência CMS. Os resultados finais dos eventos com dois fotões ou quatro leptões foram revelados de manhã por jovens investigadores, e entre eles investigadores do LIP, que tinham passado a noite anterior a correr as análises e a refazer os gráficos sem aquele procedimento. Foi para nós o momento da «descoberta». O entusiasmo e empenho dos jovens investigadores de ATLAS foram idênticos, e simultâneos, na aventura da descoberta do Higgs a decair em dois fotões ou em ZZ ou WW, processo para o qual jovens investigadores portugueses de ATLAS contribuíram directamente.

 A conferência internacional da física de partículas (ICHEP) começaria a 4 de Julho em Melbourne, na Austrália. De comum acordo entre as colaborações ATLAS e CMS, a direcção do CERN e os organizadores da conferência ICHEP foi decidido que os resultados seriam apresentados pela primeira vez num seminário no CERN, tal como é tradição neste laboratório para todos os seus resultados, retransmitido para ICHEP à hora da sessão de abertura da conferência. O seminário a 4 de Julho de 2012 começou às 9h00 em Genebra (8h00 de Lisboa) quando eram 18h00 em Melbourne. 


A descoberta do bosão de Higgs foi um marco científico muito importante. Mas foi também «apenas» mais um marco numa longa trajectória. A pesquisa das propriedades do Higgs continua. Muitas das perguntas que a física colocava há trinta anos continuam sem resposta e as motivações para o prosseguimento do programa experimental do LHC permanecem abertas. Os esforços e resultados das ciências físicas nas últimas duas décadas, nas áreas interdependentes das partículas, astrofísica e cosmologia, deram‑nos novos conhecimentos mas simultaneamente adensaram os mistérios. Sabemos mais, mas também conseguimos hoje identificar muito mais perguntas para as quais não temos resposta. 

Continuamos sem saber se há simetrias adicionais na Natureza por revelar ou se o espaço‑tempo tem mais dimensões do que as que se conhecem, embora ambas as possibilidades conduzam a explicações plausíveis para dificuldades teóricas que parecem sugerir uma «nova física» para além do «Modelo‑Padrão » actual. 

À matéria escura necessária para compreender a rotação das galáxias juntou‑se a energia escura para justificar a expansão acelerada do universo observada nas medidas de supernovas. Sabemos que, em conjunto, representam talvez 96 por cento do Universo, mas ignoramos o que sejam. 

A tabela das três famílias de constituintes elementares da matéria completou‑se com o quark top descoberto no Tevatron (nos Estados Unidos) em 1995, mas continuamos sem perceber a razão de ser destas três famílias. 

O LHC vai certamente ajudar a compreender alguns destes mistérios. A observação do bosão de Higgs marca o início de um programa sistemático de pesquisas de nova física na fronteira do conhecimento actual. 

Outros avanços científicos neste domínio virão certamente de outras iniciativas corajosas, como a construção de grandes telescópios, sondas em satélites, observatórios de raios cósmicos ou de matéria escura, ou ainda de aceleradores e detectores inovadores. 

Esta é, contudo, apenas uma parte da aventura actual do conhecimento humano a que chamamos Ciência e para a qual todas as áreas científicas, todos os domínios, todo o conhecimento, contribuem. 

Nas últimas décadas, Portugal venceu finalmente o essencial do seu secular atraso científico. O seu destino como país depende hoje, de forma decisiva, do progresso cultural e científico que alcançar e da vontade de aprender da sociedade inteira.

 Possa esta pequena história de um sucesso científico da humanidade inspirar os mais novos a quererem aprender mais e a sociedade a defender o futuro da ciência em Portugal.

 José Mariano Gago, Professor do IST e presidente do LIP

Amélia Maio, Professora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CFNUL) e responsável do LIP pela participação portuguesa na experiência ATLAS

João Varela, Professor do IST e responsável do LIP pela participação portuguesa na experiência CMS (e porta‑voz adjunto de toda a experiência CMS em 2012‑13)

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