quinta-feira, 7 de outubro de 2021

LUIS QUINTAIS E O ÂNGULO MORTO


Minha recensão no I de hoje:

O ângulo morto é um conceito da óptica, com aplicação aos espelhos retrovisores dos veículos automóveis. Alguns espelhos não permitem ver para alguns ângulos de visão, designadamente para objectos imediatamente adjacentes ao observador. Actualmente já há espelho retrovisores com sistemas que anulam ou mitigam o ângulo morto, permitindo ver quaisquer pessoas, bicicletas ou automóveis que circulem mesmo ao nosso lado. A legislação tem vindo a limitar os ângulos mortos.

Mas, tomada agora a expressão como metáfora, todos nós temos ângulos mortos na nossa vida. Há coisas que se passam mesmo ao lado e cuja percepção nos escapa. A poesia costuma ter um olhar mais profundo do que o olhar físico, pelo que é natural que veja os ângulos que são mortos de acordo com as leis da óptica. O uso da metáfora é curioso, embora não seja inteiramente original. Por exemplo, num número da revista Colóquio Letras, Pierre Schioentjes, professor de Literatura na Universidade de Gent, Bélgica, falava da «mudança climática na literatura francesa» como um «ângulo morto da resistência ecológica». E muita outra gente tem usado metáforas vindas da física ou de outras ciências. Recebi um dia uma chamada de uma professora de Literatura que me queria perguntar sobre a legitimidade do uso da expressão «ângulo crítico», que surge na descrição da refracção, num seu ensaio de crítica literária. Respondi-lhe que achava o uso perfeitamente legítimo uma vez que as palavras não têm donos. O uso literário de termos usados originalmente na ciência ou na tecnologia permite alargar o seu domínio semântico. Do mesmo modo, os físicos e  outros cientistas «roubam» termos da literatura: basta dar o exemplo da palavra «quark», sem um  significado óbvio, que foi tomado pelo físico norte-americano Murray Gell-Mann, que se interessava por linguística, para designar uma partícula, de um trecho do romance  Finnegans Wake de James Joyce: «Three quarks for Muster Mark!»

Ângulo Morto é o 14.º livro do poeta e antropólogo Luís Quintais. Quase toda a sua poesia está reunida no livro Arrancar Penas a um Canto de Cisne. Poesia, 2015-1995 (Assírio & Alvim, 2015), uma obra que recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores «Teixeira de Pascoaes», em consórcio com a Câmara Municipal de Amarante. O livro reúne, por ordem cronológica reversa, os livros O Vidro (Assírio e Alvim, 2014, Prémios Fundação Inês de Castro e António Ramos Rosa), Depois da Música (Tinta da China, 2013), Riscava a Palavra Dor no Quadro Negro (Cotovia, 2010), Mais Espesso que a Água (idem, 2008), Canto Onde (idem, 2006), Duelo (idem, 2004, Prémios de Poesia do Pen Clube português e da Fundação Luís Miguel Nava), Angst (Cotovia, 2002), Verso Antigo (idem, 2001), Umbria (Pedra Formosa, 1999), Lamento (Cotovia, 1999)  e  Imprecisa Melancolia (Barcelona: Lúmen, 1995, Prémio da Aula de Poesia de Barcelona). Depois dessa grande recolha de poesia (862 páginas), Quintais publicou na Assírio & Alvim: A Noite Imóvel (2017, Prémios Oceanos e Casino da Póvoa) e Ágon (2018). Vê-se pela sucessão de prémios que a sua obra, que tem saído com uma cadência impressionante, tem encontrado excelente acolhimento. Nas edições internacionais, além da publicação em Espanha em edição bilingue do livro de estreia, publicou no Brasil as  antologias Poesia Revisitada (1995-2010) (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2011) e Portugal, 0, 3 (idem: Oficina Raquel, 2008). É curioso que eu tenha encontrado toda esta informação numa página Wikipédia em galego. Há uma versão em alemão, mas não em português nem noutras línguas.

Luís Quintais nasceu em Luena (ex-Vila Luso nos tempos coloniais), capital da província do Moxico, bem no interior de Angola. Viveu até aos 27 anos em Lisboa, tendo-se formado em Antropologia no ISCTE. Hoje trabalha na área da antropologia social na Universidade de Coimbra, sendo professor no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia e investigador do Centro de Estudos Sociais. Os seus temas de eleição são a psiquiatria forense a as relações entre arte, ciência e técnica (escreveu sobre a obra do escultor Rui Chafes e sobre a bioarte). Quintais é ainda autor de um interessante livrinho sobre Cultura e Cognição (Angelus Novus, 2009).

A suas produção poética faz um uso muito criativo da linguagem. Na introdução a Arrancar Penas a um Canto de Cisne. Poesia Quintais escreveu: «O que me interessa está sempre a jusante, no delta do rio,  não na nascente. As palavras que se reúnem sob o sortilégio desse jogo de linguagem que é a poesia servem uma ideia de ordem, disse. São a régua e o esquadro da experiência que não pode ser metrificada, que não é mensurável. Talvez seja este  o sentido flutuante da poesia.» Sendo cientista social, Quintais sabe bem que a poesia serve para dizer aquilo que a ciência não consegue dizer. Pedro Eiras, poeta e professor de Literatura da Universidade do Porto, no posfácio à poesia reunida, intitulado  «Inventar a Antiguidade de som mais antigo», começou por citar a referida frase de Quintais comentando: «Esta é a experiência radical da poesia de Luís Quintais – a invenção de uma linguagem e de um uso para a linguagem, invenção de uma linguagem que inventa um mundo. Invenção de leitura: como ler? Como jogar o jogo de ler o texto, se ele inventou as regras da sua leitura e as escreve numa linguagem que ainda não decifrámos?»

O matemático britânico de origem polaca Jacob Bronowski fez uma apologia da poesia, numa entrevista que deu ao filósofo norte-americano George Defere, publicada na revista The American Scholar (1974) e republicada, em tradução portuguesa, no volume A Responsabilidade do Cientista e Outros Escritos (Dom Quixote, 1992), que reúne  textos de Bronowski editados por António Nunes dos Santos et al. Diz Bronowski: “A poesia é um tema maravilhoso que deveríamos considerar sempre que falamos de ideias científicas, porque nos relembra que se pode comunicar uma verdade de indubitável valor intelectual sem necessidade de ser complementada por qualquer sistema de equações.”

Poder-se-á pensar que a ciência estará, portanto, nos antípodas da poesia. Mas Bronowski, que de matemático passou a crítico literário  (o seu primeiro livro foi sobre os românticos ingleses), chamou a atenção para a profunda relação entre ciência e poesia noutro texto do mesmo livro (no capítulo «Ciência e Valores Humanos»):

«Quando Coleridge tenta definir a beleza, regressava sempre a um único pensamento profundo: a beleza, disse, é a ‘unidade na variedade’. A ciência não é nada mais do que a procura da descoberta da unidade na desordenada variedade da natureza – ou, mais exatamente, na variedade da nossa experiência. A poesia, a pintura, as artes, são a mesma procura, na frase de Coleridge, da unidade na variedade. Cada um, à sua própria maneira, procura as semelhanças sob a variedade da experiência humana. O que vem a ser uma imagem poética senão a apreensão e a exploração de uma semelhança escondida, o manter juntas duas partes de uma comparação que vão dar mais profundidade uma à outra?»

Não me atrevo a fazer uma critica literária de um livro de poesia tão denso como o último livro de  Quintais. Além do mais, recordo-me uma reacção violenta do autor a uma crítica do biólogo, poeta e ensaísta José Mário Silva no Expresso: «Dá-me quatro estrelas. Melhor seria que não desse nenhuma. Que as metesse pelo cu acima!». Prefiro, em vez de comentar, deixar falar a poesia. O livro Ângulo morto tem três partes, «Muro», «Iceberg» e «Mesa». Escolhi o poema «Rosalind Franklin (1920-1958)», de «Mesa», porque versa um tema de ciência – a obra da cientista britânica Rosalind Franklin, que foi pioneira o uso de raios X para estudar moléculas biológicas, técnica que se revelou essencial para a descoberta da estrutura do ADN por Watson e Crick em 1953, mas que infelizmente morreu cedo de cancro, sem que o seu trabalho pudesse ser premiado pela Academia Sueca:

«Gostaria ela de cristais,/ grafite, elipses?/ Depois de reconhecemos/ a sombra que a arrastou/ para o esquecimento incompleto,/ memorializado por má consciência,/ gostamos intensamente/ de cristais, grafite, elipses.// A virtude que há no sacrifício em nome da ciência/ nada nos diz. Afinal tudo/ é crença e revisitação./ Tudo é dura contenda/ com o sem-sentido que nos espreita./ Rosalind perseguia/ cristais, grafite, elipses// como quem persegue/ a elegância de um vaso etrusco/ uma luz de fim de tarde/ esmagando a praia de há mil anos,/ um sonho que, sem complacência,/ se desfaz após o acordar,// Sufocamos depressa as linhas de uma biografia,/ a imagem inteira da natureza/ que o caderno de ocasião/ poderá conter ainda./ Morremos jovens/ Antigo é o mundo na sua beleza/ indiferente e amoral/que nos traz cristais, grafite e elipses.»

Há aqui uma metáfora que associa as observações de cristais efectuadas por Rosalind com a «elegância de um vaso etrusco». Parafraseando Fernando Pessoa, ou melhor Álvaro de Campos: «Os cristais são tão belos como um vaso etrusco. O que há é pouca gente para dar por isso.»

Uma palavra final de elogio à Assírio & Alvim. A qualidade das suas edições de poesia é inquestionável: depois de A Matéria Escura e Outros Poemas, de Jorge Sousa Braga, já publicou na colecção “Poesia inédita portuguesa”  Inferno, de Pedro Eiras, Cães de Chuva, de Daniel Jonas. Voltar, de Luís Filipe Castro Mendes, Coração Lento, de Frederico Pedreira, e Purgatório, de Pedro Eiras.


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