domingo, 30 de abril de 2017

"Mentimos aos alunos sobre o seu verdadeiro nível"

Augustin d'Humières é um professeur francês de latim e grego com uma reflexão continuada sobre a escola. Em recente entrevista (aqui), a que a jornalista deu o título Mentimos aos alunos sobre o seu verdadeiro nível, explica o sentido do seu novo livro Um pequeno funcionário.

"Augustin d’ Humières é um militante da igualdade republicana. Este professor de 40 anos bate-se todos os dias por essa igualdade. Desde 1995 ensina grego e latim no liceu Jean-Vilar em Meaux (Seine-et-Marne) num bairro difícil. 

À custa de exigência, ele consegue a adesão dos seus alunos, que, por sua vez, vão aos colégios dos arredores defender a causa das línguas clássicas. Contou esta aventura no seu livro anterior (Homero e Shakespeare nos subúrbios ed. Grasset, Paris, 2009). 

Nesta nova obra ao mesmo tempo enraivecida e cheia de humor (Um pequeno funcionário, ed. Grasset, Paris, 2017), descreve a indigência cultural da maior parte dos estudantes liceais, a quem a escola faz, contudo, acreditar que estão aptos a ter êxito nos seus estudos superiores e a encontrar um emprego. 

Neste naufrágio, ele aponta a irresponsabilidade dos sindicatos e da hierarquia da educação nacional, e toda a negação institucional que envolve o colapso dos resultados escolares. Para ele, existe uma ligação entre esta falha e a eclosão do djihadismo. Tal análise feita ao bisturi, viva e divertida, devia servir de meditação a todos os candidatos à eleição presidencial. 
Julga de modo severo o nível de muitos dos alunos que saem do liceu... Os alunos aprendem aquilo que nós lhes dizemos que aprendam, e muitos seguem muito docilmente as recomendações que nós lhes damos. Hoje uma grande maioria dos alunos com o ensino liceal completo é capaz de redigir duas páginas num francês correcto? Tem um domínio adequado, pelo menos de uma só língua viva? Tem uma cultura histórica e científica mínima? Muitos estudos sérios demonstram que não é o caso. E isto não é ser “derrotista”, isto não significa necessariamente que se pensa que “antigamente era melhor”. É apenas uma constatação. Discute-se muitas vezes sobre os “150 000 abandonos”, os que deixam a escola sem formação nem diploma, mas que é feito daqueles que se empenham, daqueles que acreditam na escola, daqueles que obtêm o bac? Sou examinador no bac de francês há 20 anos e estou, portanto, muito bem colocado para ver o que os alunos retêm de 10 anos de estudo da língua francesa, dos seus autores, dos seus textos. Para uma boa parte deles, a resposta é: nada. E não são os alunos os principais responsáveis. Muitos aprendem conscienciosamente aquelas famosas “fichas”, que eles “vomitam” no dia do exame para as esquecer logo de seguida. Cada um pode fazer a experiência: peça a um jovem que acabou o liceu que cite um texto, um verso, uma palavra que o sensibilizou particularmente na sua escolaridade. Há uma diferença enorme entre aqueles que beneficiam de um ambiente familiar favorável, que lhes permite escolher, completar, aprofundar o que vêem na escola e aqueles que, por seu lado, nada têm. 
Fala de um taylorismo escolar: os liceus de elite, e os outros, com uma repartição bem definida de tarefas à saída... Este taylorismo escolar, experimentei-o bem de perto, passando de uma escolaridade no liceu Henri-IV para a minha profissão de professor num liceu da grande periferia. No liceu Henri-IV, no ano terminal de estudos literários, os alunos não se interrogavam se iam para as classes preparatórias, mas que preparatórias deviam escolher. Quando cheguei ao liceu Jean-Vilar de Meaux, para onde fui nomeado em 1995, tinha dois alunos numa classe inteira do ano terminal de estudos literários, que sabiam da existência das classes preparatórias. Há hoje liceus para quadros dirigentes e liceus para assalariados. Compreende-se melhor o pânico dos pais perante a escolha de um estabelecimento para os seus filhos. Esta repartição de tarefas está tacitamente interiorizada pelos alunos. Quando um dos meus alunos quer fazer estudos comerciais, diz-me timidamente que vai experimentar um diploma de técnico superior; a alguns quilómetros dali, um outro terá perfeitamente em mente preparatórios comerciais. Há aqueles a quem a família mostra o caminho a seguir, os que não têm nenhuma dificuldade em descodificar o sistema, e os outros, os que escolhem a sua orientação completamente sozinhos, no meio de esquemas de um Centro de Informação e de Orientação. E ai daqueles que querem ir para lá do objectivo profissional que lhes está reservado. Esses, os que se atrevem a querer ser médicos ou advogados, por exemplo, desde que não estejam num liceu previsto para isso, vão pagar um pesado tributo. Como lhes mentiram sobre o seu nível real, não é no liceu, mas nos bancos da universidade, quando já é muito tarde para colmatar as falhas, que descobrem a extensão daquilo que não aprenderam. Para esses, ou antes para essas, pois são muitas vezes as raparigas que acreditam de todo o coração na função emancipadora da escola, haverá uma longa lista de reorientações que acaba muitas vezes numa sucessão de pequenos trabalhos. São milhares estes alunos meritórios, cujas famílias depositaram uma confiança absoluta em nós. Deixámo-los cerrar os dentes sobre os seus sonhos e ambições. Não subestimemos a extensão desta imensa confusão e da raiva que gerou em numerosas famílias. 
Mas critica também a discriminação positiva, dada por algumas instituições, com um concurso menos difícil proposto aos alunos saídos dos liceus populares... Tenho muitas reservas sobre o próprio princípio de discriminação positiva. Os meus alunos merecem mais do que uma porta entreaberta. Comecemos antes por ser honestos com eles dizendo-lhes bastante cedo o nível de exigência a atingir, e o que há para aprender. Proponhamos regras de jogo equivalentes, e veremos que muitos não terão necessidade de uma porta entreaberta. Não me parece que se tenha recebido Lilian Thuram ou Hatem Ben Arfa nos seus centros de formação dizendo: “Sabes, é o pequeno que vem de Bondy, ele tem muito mérito, é preciso que treine à parte para atingir o nível!” O que nós fomos capazes de fazer no domínio do desporto, seremos então incapazes de o fazer no nosso sistema educativo? 
Como explicar as falhas na transmissão do saber no liceu? Penso que em larga medida o nosso sistema educativo está hoje pensado e organizado para não transmitir nada aos alunos, a não ser um saber volátil, de ostentação, absurdo. Com os programas, com a repartição dos horários de curso, com as orientações dadas aos alunos, com a parte destinada ao projecto e à experimentação, o sistema não pode transmitir grande coisa, a não ser para os professores que se afastam daquilo que se lhes pede que façam, o que é ainda o caso de muitos de nós. 
Estabelece uma relação entre o colapso do ensino e a eclosão do djihadismo? Não sou o único a estabelecer essa aproximação. A ideia do livro decorre de um forum de professores de uma escola de Aubervilliers que escreveram alguns dias após o ataque ao Charlie Hebdo: "Somos os pais de três assassinos” (…) acho pertinente perguntar porque é que tantos jovens franceses, educados na escola republicana são tão receptivos a discursos tão violentos, tão rudimentares, tão desesperados. O que foi que a escola lhes transmitiu para se defenderem face às redes terroristas de que se tornam presas? Uma língua? Uma igualdade de oportunidades? Textos? Palavras? Deixamo-los completamente desamparados, sobretudo aqueles que pertencem a famílias que não têm os meios para impedir a deriva dos seus filhos. Abandonámos o terreno que outros acabaram por ocupar. Repetimos, de uma forma ilusória, que somos um país laico. Mas o que há nesta laicidade que interdita, que relega para a esfera privada tudo o que é da ordem da crença filosófica, religiosa ou espiritual? Em torno de que conteúdo vamos construir um ideal comum, se tudo o que é essencial é relegado para a esfera privada? O que vão encontrar as novas gerações nesta laicidade? Uma concha vazia, longe do ideal que, não há assim tanto tempo, animava aqueles que lutaram para tornar o nosso país numa república laica. 
Considera que os professores caucionam este estado de coisas? Responsabilizar o professor que batalha sozinho na sua sala de aula, procurando, além disso, responder às exigências da nova reforma, não será a melhor coisa a fazer. Sou menos indulgente para com os sindicatos. Eles constituem um elo indispensável na cadeia, para produzir as mudanças, informar sobre as carreiras e promoções, defender as pessoas… Não é possível ter um lugar central na acção colectiva, na gestão de recursos humanos e demitir-se de toda a responsabilidade no equilíbrio do sistema. Contudo, as organizações sindicais nunca se questionam. Com alguma má-fé, criticam a acção do ministério, quando toda a gente sabe que os ministros têm grande cuidado para não os aborrecer. Os professores assistem a este jogo sem poder fazer grande coisa. 
O que propõe, então? Uma escola mais presente na vida do aluno, sobretudo nos meios onde não há outros serviços públicos nem ofertas culturais. Uma escola aberta de segunda a sábado das 8 horas às 19 horas. Não assegurada, bem entendido, somente por professores. Frequentemente, o tempo passado fora da escola é um tempo perdido, dedicado aos écrans e à desconcentração, é um tempo em que se aprofundam as desigualdades. É preciso que a escola se torne numa cidadela onde o aluno possa fazer o seu trabalho, encontrar adultos que o ajudem, ter uma oferta cultural de relevo. É o que nós fazemos em Meaux para os alunos do ensino básico, que são apoiados por professores aposentados e por futuros professores. É preciso uma articulação mais clara entre este projecto e a componente lectiva, destinada à transmissão de conhecimento, determinando as prioridades: dedicar mais tempo ao francês, à história, às ciências. Não é necessário aprender três línguas vivas, o mais importante é falar uma correctamente.Penso também ser necessário dar mais espaço à cultura e às artes. Qualquer subsídio público destinado à cultura deve ser acompanhado de uma contrapartida para a escola porque a urgência está lá. A escola não precisa de muito mais dinheiro, precisa de competências e de talentos. O desafio a este nível é enorme." 
Entrevista realizada por Caroline Brizard e publicada em 17 de abril de 2017. Tradução de Isaltina Martins e de Maria Helena Damião.

1 comentário:

Unknown disse...

"ele aponta a irresponsabilidade dos sindicatos e da hierarquia da educação nacional, e toda a negação institucional que envolve o colapso dos resultados escolares". Está a falar de França, mas a frase vai assentar perfeitamente à nossa realidade dentro de pouco tempo.

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