quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

ABSOLUTAMENTE PERNICIOSO

 Por Eugénio Lisboa

O texto que se segue foi publicado há muitos anos e constituiu um de vários com os quais quis avisar para os riscos que envolvia o futebol profissional e todo o desporto profissional. O aviso vinha de muito longe, dos gregos antigos, pelo menos, e era um aviso saudável. Infelizmente foi um aviso que caiu em saco roto e o resultado está à vista, na vergonhosa paisagem que agora se desvela, nos bastidores do Futebol Clube do Porto. Em vez de se aceitar decentemente a opinião divergente, oferece-se “porrada” a quem diverge, abusando obscenamente de uma impunidade que existiu tempo demais. Quando se vê o actual Ministro da Saúde como “padrinho” de Pinto da Costa, há que perguntar se ainda se pode descer mais, pela escadaria que leva ao inferno. Achei que valia a pena repescá-lo no momento que passa. Será por certo aquilo a que Montherlant chamava “serviço inútil”.
Não há muito tempo, publiquei dois artigos relacionados com o futebol. Entre outras coisas, afirmava – é uma convicção que tenho há largos anos – ser o desporto profissional uma fonte inevitável de corrupção e outras formas de degradação moral. Assim como as utopias levam direitinho à opressão totalitária, o profissionalismo, no desporto, obriga a uma “machine infernale” de financiamentos megalómanos que só param ou na bancarrota ou na cadeia (ou nas duas, simultaneamente). 
 
Dizia Oscar Wilde, no seu leito de morte, que estava a morrer além dos seus meios (completamente destituído, dava-se ao luxo de beber uma garrafa de champanhe). Os clubes de futebol profissional nascem, vivem e morrem além dos seus meios. Como chegam cedo a não ter com que pagar jogadores e treinadores milionários, acaba por se instalar um conluio torpe e inevitável entre os clubes, os dinheiros públicos e a construção civil. O caso de Felgueiras configura um alegado financiamento clandestino de um clube de futebol com dinheiros públicos não votados para esse fim. É, como já se sugeriu, apenas a ponta de um monstruoso iceberg.

O mais grave é a emergência de uma cultura futebolística, com os seus tenores convictos e tonitruantes, que não hesitam em ameaçar, impunes, os poderes públicos que se atrevem a investigá-los. O futebol passa a ser o assunto, o tema, que a tudo se sobrepõe. Dizia o “football manager” britânico Bill Shanky que “o futebol não é assunto de vida ou de morte – é muito mais importante do que isso.” De facto, ouvindo-se as orgias verbais dos Valentim Loureiro, dos Pinto da Costa e atentando-se na atenção obscena que ao futebol profissional dão a imprensa, as televisões (incluindo a pública) e os representantes acreditados do governo (dos governos), fica-se com a certeza de que o futebol tem muito mais importância do que um mero assunto de vida ou de morte.
 
O verdadeiro espírito do desporto não rima com este concerto grotesco de bravatas, de gritaria, de agressões públicas, de trafulhices com impostos, de dinheiros, dinheiros, dinheiros… O desporto é esforço desinteressado e elegante, é exemplo de autodomínio e beleza. O grande “sage” Samuel Johnson desculpava-se por não jogar cartas, nestes termos: “É muito útil na vida: origina afabilidade e ajuda a consolidar a sociedade.” Note-se que não passava pela cabeça do grande sábio que as cartas pudessem ser um modo de ganhar dinheiro. Tratava-se, isso sim, de gerar bondade e uma sociedade mais bem consolidada e solidária. 
 
O desporto, tal como os grandes filósofos gregos o viam, também não tinha que ver com ganhos materiais. Perguntaram um dia a George Mallory por que é que ele tinha querido trepar o Monte Everest. Respondeu, com aquela “formidável infância” de Caeiro: “Porque ele estava ali.” Eis o verdadeiro desporto: vou bater um record, porque o desafio está ali à minha frente. Vou ver se um esforço de disciplina e concentração consegue que eu faça um pouco mais do que o meu antecessor ou do que o meu actual competidor. O desporto – o verdadeiro, o limpo - é isto. Não é: vou bater este record, a ver se me pagam mais e me isentam dos impostos sobre aquilo que irei ganhar. 
 
O futebol deve ser muita coisa: esforço coordenado e disciplinado de uma equipa, com elegância e arte, para se obter um efeito bonito e um resultado gratificante – e encorajar os outros a jogarem também. Mas o futebol profissional, infelizmente, não é nada disto. “O futebol, segundo me parecia,” observava Orwell, “não é realmente jogado pelo prazer de chutar a bola de um lado para o outro, mas é antes uma espécie de combate.” De combate e de profissão milionária.
 
Quando escrevi os dois artigos que acima refiro, ainda alguns escândalos não tinham estalado: Felgueiras, Pimenta Machado… Nem era preciso. Era fácil de antever que o futebol profissional, nos termos em que tem estado a desenvolver-se, só podia ter fundações de lodo. A aritmética não vive de milagres. A megalomania tem custos. Acreditar em milagres de Dona Branca dá sempre com os burrinhos na água.

O desporto é energia e uso controlado – se possível, artístico – dessa energia. “A energia é Eterno Deleite”, dizia o poeta William Blake. O verdadeiro desportista não procura gratificação para além da satisfação que lhe dá um trabalho bem feito, um esforço bem orientado, um elegante resultado conseguido: “A gratificação para uma coisa feita é termo-la feito”, dizia o filósofo americano Ralph Waldo Emerson. 
 
Nada disto tem que ver com o futebol que para aí se promove, degradando moralmente crianças e adolescentes, num ambiente de bravata balofa, de gritaria oca, de competição mal compreendida. Se o Estado quer gastar dinheiro com o desporto – e deve fazê-lo! – não é a financiar, clandestina ou descaradamente, clubes de desporto profissional, nem a construir estádios megalómanos e desnecessários, desbaratando insensatamente o dinheiro dos contribuintes. É, isso sim, a construir boas estruturas gimnodesportivas, nas escolas e universidades. Não é a isentar de impostos metade do salário milionário de indivíduos que nunca entenderam a sério o que seja o espírito do desporto. 
 
Vem-se muitas vezes com a falácia de que o desporto internacional ajuda o entendimento entre os povos… O que se tem visto dá pouca cobertura a isto: “É o desporto internacional”, observava o romancista E. M. Forster, “que tem atirado com o mundo pela ladeira abaixo. Iniciado por atletas tontos, que pensavam que iria promover ‘compreensão’, é hoje sustentado pelo desejo de prestígio político e pelos interesses ligados à bilheteira. É absolutamente pernicioso.” É realmente esta mistura de política com futebol profissional, com o medo concomitante que os políticos têm da influência dos barões da bola e do imenso público que os segue, que tem ajudado a envenenar e a prostituir o verdadeiro desporto – aquele que tem sido desprezado, que se não protege, que se não acarinha, porque não dá votos. Uma juventude sem desporto por ela praticado desinteressadamente é uma juventude sem saúde. Retirar fundos a este desporto para os dar àquele é roubar os pobres para dar aos que nem chegam a ser ricos – porque são apenas corruptos: que gastam milionariamente o que não têm (e quem paga?)

O petardo lançado para o relvado, no jogo entre o Benfica e o Vitória de Guimarães e a bárbara agressão de jogadores do Porto, no prélio com o Sporting são o resultado previsível de uma cultura futebolística com características sonoras e comportamentais do mais obsceno e desprezível fascismo. O Sr. Secretário de Estado dos Desportos faz o voto pio de que cenas destas se não repitam… É óbvio que vão repetir-se, em pior. Deitou as culpas aos dirigentes desportivos e ao discurso aquecido dos media. Mas esqueceu-se de que estes são apenas parte de toda uma cultura que desencadeou uma reacção em cadeia, que pode e deve levar ao seu próprio aniquilamento. 
 
Por mim, só desejo que a explosão venha depressa – e engula estes jogadores, estes treinadores, estes dirigentes desportivos, estes governantes que pactuam com tudo isto, e, já agora, estes comentaristas desportivos que de tudo falam menos de desporto e do seu espírito verdadeiro. 
 
Eugénio Lisboa

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