domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Nós, professores, já não lemos. Nem sequer estudamos."

O artigo que aqui traduzimos, assinado por Diego Garrocho, não traz nada de novo, mas o que traz é importante, fundamental, precisa de ser repetido até à exaustão. O colapso da Universidade, que está em curso e de modo acelerado, é o colapso da civilização, tal como a conhecemos. É também o reflexo desse mesmo colapso. Maria Helena Damião e Isaltina Martins

"Nós, professores, já não lemos. Nem sequer estudamos. Estamos demasiado ocupados em escrever e em explicar o que supostamente deveríamos ter lido, mas as horas de enriquecimento cultural e de reflexão foram praticamente desterradas do trabalho universitário (...).

A culpa não é dos professores que simplesmente adaptam os seus esforços para sobreviver num contexto absurdamente darwiniano, mas dos gestores de ciência que desde há alguns anos decidiram não só destruir as humanidades, mas também minar as condições vitais e materiais que as tornaram possíveis.

Deitemos um olhar ao jargão que compõe a política científica e poderemos perceber a dimensão do suicídio cultural e civilizacional em que nos encontramos. Se um investigador, por exemplo um filólogo, quiser pedir um financiamento para um projecto, o primeiro obstáculo que encontra é um muro de palavras absurdas: sinergias, interdisciplinaridade, disrupção... (...) pressupostos que na sua origem parecem provir das ciências experimentais ou aplicadas, mas que, no entanto, traduzem mais a verborreia alucinada do fundador de uma 'startup'. Tudo são 'desafios', 'talentos' das 'sociedades inclusivas´ e outros títulos que demonstram preocupação, e que alternam, com tons contraditórios, entre o messiânico e o apocalíptico, ainda que coincidam sempre em tomar o futuro como ideologia.

Um bom investigador em humanidades deveria estudar (...) em paz porque o que deve, prioritariamente, é dominar a sua matéria. Isto significa que tem de contar com horas de silêncio e de retiro sem que se lhe seja exigido que pormenorize numa folha de excel qual é o resultado da sua leitura, em que medida a sua investigação será útil para deter as mudanças climáticas ou a xenofobia. Porque às vezes as formas mais cultivadas do espírito não geram um rendimento imediato para a agenda política (...)

Desde há demasiado tempo que temos querido converter a universidade num absurdo que conjuga os piores delírios do activismo simplório com os abusos da produção capitalista. A prestação de contas que, até certo ponto, é razoável, tornou-se na única prioridade, até converter-nos em peritos em prestar contas do que nunca aconteceu. A nossa obsessão pela eficácia acabou por nos condenar à pior ineficácia. Investimos milhões a criar redes de conhecimento internacional, congressos e publicações ao mesmo tempo que somos incapazes de conseguir o mais imprescindível: tempo. Tempo para o silêncio, o estudo e a leitura. Tudo o que não seja isso é fumaça."

5 comentários:

Rui Ferreira disse...

Clarividência!
"A prestação de contas que, até certo ponto, é razoável, tornou-se na única prioridade, até converter-nos em peritos em prestar contas do que nunca aconteceu."

Anónimo disse...

O vosso artigo sobre o colapso do ensino universitário, aplica-se, mutatis mutandis, aos ensinos secundário e infantil de Portugal. Senão como classificar um sistema de ensino construído no pressuposto de que não se deve ensinar, para que os alunos possam aprender, e depois se criem cursos de professores especialistas em necessidades educativas especiais, recrutados, na sua maioria, no professorado do 1.º ciclo, com a missão de apoiarem todos os alunos, desde as crianças dos jardins de infância, até aos moços do secundário, que sentem dificuldades de aprendizagem mesmo quando os professores nada lhes ensinam!
No meio desta gigantesca hipocrisia, alimentada por mais de 120 000 professores e educadores de infância, ainda há quem defenda que o sistema de ensino devia recrutar médicos, enfermeiros, animadores culturais e psicólogos aos milhares para conseguirmos entrar num rumo de melhoria de aprendizagens constante no espaço e no tempo!
É o descalabro!

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo
O artigo não é nosso, apenas o encontrámos e o demos a conhecer. Mas, sim, tem razão... o cenário das universidades não difere dos das outras escolas. Os professores que tenham a consciência da importância do estudo, da planificação das aulas, do acompanhamento dos seus alunos, vêem-se impedidos de o fazer pelas solicitações burocráticas sem qualquer sentido educativo e pedagógico que se lhe fazem.
Cordialmente,
MHDamião

Anónimo disse...

O mesmo se passa em quase todas as outras profissões!
“ os piores delírios do activismo simplório com os abusos da produção capitalista” - neste corre corre, o espaço e tempo para viver, amar e contemplar é secundário. A luxúria, a servidão e a soberba como farol.
Na realidade quanto mais liberdade o Homem agarra mais servo se torna.
Carneiro

tempus fugit à pressa disse...

nas escolas secundárias e primárias o efeito é maior até porque a falta de tempo para dedicar a outros assuntos além das aulas é também ele maior

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...