Na sequência do meu texto anterior.
Aos leitores que estejam interessados em perceber melhor como a "nova filantropia" se organiza para mudar a educação escolar, recomendo o livro ao lado identificado, assinado por Marina Avelar.
Obra de assinalável envergadura, inscreve-se numa linha muito consistente de investigação desenvolvida em alguns países da Europa e da América do Sul, cujo objectivo tem sido esclarecer a infiltração de entidades privadas nos sistemas de ensino públicos e as consequências que isso tem para as pessoas que nele estão integradas e para o funcionamento democrático das sociedades.
Em Portugal essa linha começa a ter expressão, mas ganhamos em nos informarmos da investigação realizada noutros contextos, até porque o modus operandi da infiltração a que me refiro é muito uniforme, não variando substancialmente de país para país.
Para se antever o conteúdo do livro, reproduzo abaixo extractos de uma entrevista dada pela autora no contexto da pandemia, que não perdeu actualidade.
"Essas fundações geralmente têm uma visão de educação voltada para habilidades práticas e trabalhos, do mercado de trabalho, pensando em desenvolvimento econômico, pensando em um tipo de pessoa que depois vai ser útil para o mercado de trabalho.
E essa perspectiva tem uma coisa bastante individualizante da habilidade, que é o aluno saber fazer a conta, mas também saber se portar, falar, empreender, ser criativo, mas não o criativo social, que questiona os problemas sociais, e sim o criativo da solução de mercado, que consegue abrir uma startup...
E, dentro disso, a tecnologia cabe muito bem porque ela é vista como uma opção geralmente mais em conta. A gente pensa em ter um financiamento bem estruturado, mais robusto, políticas de formação e valorização profissional (...) mas, de repente, do outro lado se fala em um aplicativo que vai melhorar a aprendizagem das crianças porque elas vão ter joguinhos. E isso se torna uma solução mais barata, que vai bem com a visão individualista e de austeridade que essas entidades têm de educação.
Internacionalmente, não só no Brasil, faz tempo que a filantropia como um todo tem gostado bastante de tecnologia (...). Você vê filantrópicas que têm seus investimentos (...) e que, por acaso, pode virar um mercado, pode ter os aplicativos que vendem, os computadores, os tablets...
Aqui no Brasil a gente teve, por exemplo, o caso [do programa] ‘um computador por aluno’, que foi uma solução dos anos 2000 que acharam que iria revolucionar a educação. ‘Vamos dar um computador para cada criança’. Teve empresas que ganharam muito dinheiro vendendo computador. No fim, as crianças usavam os computadores como quem usa um caderno, os professores usavam as lousas e os computadores para fazer anotações e não revolucionou nada porque se a gente não pensa a pedagogia (...) [a tecnologia] não cria muita coisa.
Um outro ponto sobre o qual eu queria falar é que (...) geralmente não cabe todo mundo na política pública. Geralmente, quando alguém ganha proeminência, alguém está perdendo espaço. O que tem acontecido, nos últimos anos, é que essas organizações têm ganhado espaço e quem tem perdido são as organizações de educadores, os sindicatos, os fóruns estaduais e municipais.
Antigamente, a gente via uma reportagem na Globo em que o especialista era o pesquisador, hoje em dia tem alguém de uma fundação.
Uma coisa que a própria Campanha Nacional pelo Direito à Educação tem falado bastante é que só os professores nos municípios, as escolas e secretarias poderiam estar pensando em soluções que também usariam tecnologia, mas que fossem algo decidido e acordado entre os profissionais da área para poder dar essa resposta.
E, lógico, também é preciso comentar que o próprio MEC está completamente ausente dessa discussão. E, nesse vácuo, as fundações têm entrado.
Mas você vê o silenciamento dos profissionais da área. O que se faz pelo professor é dar o plano de aula pronto (…).
Google, por exemplo, começou a ampliar a cobertura educacional, deixou os pacotes de graça. O próprio zoom, que era pago depois de 40 minutos de ligação, de repente passou a ser de graça, um monte de escola começou a usar o zoom. A Microsoft fez isso naquela época do ‘um computador por aluno’, a Intel pegou um pouco disso também... É uma criação de mercado e tem um tanto de marketing, de fidelização, a criança vê aquela marca desde sempre...
O mercado da educação é muito polpudo, tem muito dinheiro, principalmente estatal.
Quanto à relação entre, por exemplo, o Google e as fundações, eu acho que não tem competição. No Brasil essas fundações têm uma abordagem bastante cooperativa. Existe um trabalho demarcado: uma é mais voltada para o ensino médio, se é sobre competências socioemocionais é mais o Instituto Ayrton Senna, se é sobre desenvolvimento infantil, é outra... Eles não entram muito um no lugar do outro. E aí uma Google, até onde eu tenho percebido, consegue de uma maneira muito rápida entrar nesse mercado, ver os atores que já estão ali naquele país e abordá-los, fazer parcerias que não entram em competição.
Acho que foi em 2015, 2016, que a Fundação Lemann com a [Revista] Nova escola, fez parceria com a Google para ter uma plataforma com planos de aula. Então, a Google, quando chega aqui, não chega sozinha, mas com uma fundação influente. Um fortalece o outro".
Maria Helena Damião
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