Extracto de «O que é uma Lei Física?», recente reedição da Gradiva, tradução e prefácio de Carlos Fiolhais (sem notas nem figuras):
«É estranho que, nas raras ocasiões em que me pedem para tocar bongo em público, o apresentador nunca ache necessário referir que também trabalho em física teórica. Penso que, provavelmente, a razão se deve ao facto de respeitarmos mais as artes do que as ciências. Os artistas
do Renascimento diziam que a preocupação central do
homem devia ser o homem. Existem, contudo, outras coisas
interessantes no mundo. Os próprios artistas apreciam o
pôr do Sol, as ondas do mar e o movimento das estrelas
nos céus. Há, portanto, boas razões para falar, por vezes,
de outras coisas. Basta contemplá‑las para sentir um certo
prazer estético. Mas existe também um ritmo e um padrão
nos fenómenos naturais que não é evidente para toda a gente,
mas apenas aos olhos do cientista: a estes ritmos e a estes
padrões chamamos «leis físicas». Pretendo discutir nesta
série de palestras as características gerais das leis físicas,
colocando‑me num nível mais geral do que o estudo das
próprias leis. De facto, vou considerar a Natureza em resultado de uma análise pormenorizada, mas desejo analisar
principalmente os seus aspectos mais gerais.
Contudo, um tema tão geral tende a tornar‑se demasia‑
do filosófico. Para se ser considerado um filósofo profundo
é necessário tão‑só dizer generalidades compreensíveis
por toda a gente. Gostaria de ser bastante específico e de
ser compreendido de uma maneira honesta, e não de uma
maneira vaga. Assim, nesta primeira palestra vou tentar
apresentar, em vez de generalidades, um exemplo de uma
lei física, de modo a que fiquem com um exemplo, pelo menos, das coisas sobre as quais vou falar em geral. Posso
voltar mais tarde a utilizar este exemplo para descer ao
pormenor ou para tornar mais concreto algo que de outro
modo permaneceria demasiado abstracto. Como exemplo
particular de uma lei física escolhi a teoria da gravitação,
isto é, dos fenómenos da gravidade. Não sei por que razão
fiz esta escolha. De facto, tratou‑se de uma das primeiras
grandes leis a serem descobertas e tem uma história interessante. Podem dizer‑me: «Sim, mas então trata‑se de
algo antiquado. Preferia aprender alguma coisa da ciência
mais moderna.» Ciência mais recente talvez, mas não mais
moderna. A ciência moderna segue exactamente a mesma
tradição da descoberta da lei da gravitação. Poderia falar
apenas de
descobertas mais recentes. Não me sinto, porém,
mal a discutir a lei da gravitação, porque, ao descrever a sua
história e os seus métodos, o modo como foi descoberta,
a sua essência, estou a ser totalmente moderno.
Esta lei tem sido considerada «a maior generalização
alcançada pela mente humana». Podem adivinhar já, a
partir da minha introdução, que estou mais interessado
na maravilha de uma Natureza que obedece a uma lei tão
elegante e simples do que propriamente na mente humana. Deste modo, preocupar‑me‑ei, não tanto com o facto
de sermos tão inteligentes para a termos descoberto, mas mais com a inteligência que a Natureza tem de possuir
para lhe obedecer.
A lei da gravitação afirma que dois corpos exercem um
sobre o outro uma força que é inversamente proporcional
ao quadrado da distância entre eles e directamente proporcional ao produto das suas massas. Matematicamente,
podemos traduzir essa grande lei pela seguinte fórmula:
F = G m m' / r^2
A força é igual a uma determinada constante multiplicada pelo produto das duas massas e dividida pelo
quadrado da distância. Se acrescentar agora que um corpo
responde a uma dada força acelerando, ou melhor, que a
taxa de variação da velocidade é directamente proporcional à força e
inversamente proporcional à massa (a velocidade variará
tanto mais quanto menor for a massa), então disse tudo
o que é preciso dizer sobre a lei da gravitação. O resto é
uma consequência matemática destas duas coisas. Sei, no
entanto, que as pessoas que não dominam a matemática não conseguem
descortinar imediatamente todas as consequências destas
duas afirmações. Por isso, quero contar‑lhes sucintamente
a história dessa descoberta, quais são algumas das suas
consequências, qual foi o seu efeito na história da ciência,
que mistérios essa lei encerra, que aperfeiçoamentos Eins‑
tein lhe introduziu e qual a relação dessa lei com outras
leis da física.
A história é, resumidamente, a seguinte: os antigos começaram por observar o movimento aparente dos planetas
no céu e concluíram que todos, incluindo a Terra, giravam
à volta do Sol. Esta descoberta foi mais tarde efectuada
independentemente por Copérnico, depois de as pessoas
a terem já esquecido. A questão que então surgiu foi esta: como é exactamente o movimento dos planetas em torno
do Sol, isto é, qual é o seu tipo de órbita? Será que se movem ao longo de uma circunferência com o centro no Sol
ou ao longo de uma outra curva qualquer? Qual é a sua
velocidade? Etc. As respostas a estas perguntas não foram
imediatas. Depois de Copérnico houve grandes discussões
sobre se, de facto, os planetas, incluindo a Terra, andavam
à volta do Sol ou se era a Terra o centro do Universo, etc.
Nessa altura, um sujeito chamado Tycho Brahe arranjou
uma maneira de responder à questão. Pensou que talvez
fosse boa ideia observar o céu com muita atenção e registar
as posições exactas dos planetas. Talvez assim as teorias
concorrentes pudessem ser comparadas. É esta a chave da
ciência moderna. Foi este o início da verdadeira compreensão da Natureza — da ideia de observar as coisas, registar
os pormenores e esperar que, com base na informação as‑
sim recolhida, seja possível uma decisão em favor de uma
ou de outra interpretação teórica. Assim, Tycho, que era
rico e possuía uma ilha perto de Copenhaga, instalou nessa
ilha grandes círculos metálicos e observatórios especiais,
tendo registado, noite após noite, as posições dos planetas.
Só por meio de um trabalho árduo como este podemos
descobrir qualquer coisa.
Esses dados foram todos reunidos, tendo ido parar às
mãos de Kepler, que tentou analisar o tipo de movimento
dos planetas em torno do Sol por um método de tentativa
e erro. A certa altura, julgou que tinha sido bem‑sucedido; pensou que os planetas descreviam órbitas circulares
centradas no Sol. Mais tarde, Kepler reparou que um planeta, creio que Marte, estava deslocado de oito minutos
de arco e pensou que Tycho Brahe não podia ter efectuado
um erro desse tamanho e que a conclusão encontrada não
devia estar certa. Assim, em virtude da grande precisão das
experiências, foi capaz de avançar com uma nova tentativa, tendo acabado por descobrir três coisas. Em primeiro
lugar, descobriu que os planetas se moviam em elipses à
volta do Sol, ocupando o Sol um dos focos. Uma elipse é
uma curva que todos os artistas conhecem, pois trata‑se
de um círculo alongado. As crianças também a conhecem,
já que lhes foi ensinado que, se colocarem um anel numa
corda, com as duas pontas fixas, um lápis metido no anel
permitirá desenhar uma elipse (fig. 1).
Os pontos A e B são os focos. A órbita de um planeta
em torno do Sol é uma elipse com o Sol num dos focos.
Pode‑se perguntar em seguida: como é que o planeta se
move ao longo da elipse? Anda mais depressa quando está
perto do Sol? Ou anda mais depressa quando está longe?
Kepler também encontrou a resposta a esta questão (fig. 2).
Descobriu que, representando a posição de um planeta
em dois instantes, separados por um determinado intervalo
de tempo, digamos, três semanas, marcando a seguir noutro
sítio duas outras posições do planeta, separadas igualmente
por três semanas, e, finalmente, desenhando linhas (em
linguagem técnica, chamadas «raios vectores») do Sol
para o planeta, a área delimitada pela órbita do planeta e
pelos dois raios vectores separados por três semanas é a
mesma em qualquer parte da sua órbita. Assim, o planeta
tem de andar mais depressa quando está próximo do Sol
e mais devagar quando está afastado, de modo a que a área
varrida seja sempre a mesma.
Muitos anos mais tarde, Kepler descobriu uma terceira
lei, que não dizia apenas respeito ao movimento de um
planeta à volta do Sol, mas relacionava os vários planetas
uns com os outros. Segundo esta regra, o tempo que um
planeta demora a dar uma volta completa ao Sol está
relacionado com o tamanho da órbita; esse tempo varia
com a raiz quadrada do cubo do tamanho da órbita, entendendo‑se por tamanho da órbita o eixo maior da elipse.
Kepler tinha, portanto, descoberto três leis, que podem
resumir‑se, dizendo que a órbita é uma elipse, que áreas
iguais são varridas em intervalos de tempo iguais e que a duração de uma volta completa varia com a potência três
meios do tamanho da órbita, isto é, com a raiz quadrada
do cubo do eixo maior. Estas três leis de Kepler fornecem
uma descrição completa do movimento dos planetas em
torno do Sol.
A questão que se colocou a seguir foi: qual é a causa
do movimento dos planetas em torno do Sol? No tempo
de Kepler, algumas pessoas responderam a esta pergunta
dizendo que, escondido atrás de cada planeta, havia um
anjo, que, ao bater as asas, o empurrava ao longo da órbita. Como vamos ver, esta resposta não está muito longe
da realidade. A única diferença reside no facto de os anjos
estarem numa posição diferente e de as asas empurrarem
o planeta para dentro.
Entretanto, Galileu estudava as leis do movimento dos
objectos vulgares existentes na Terra. Ao estudar estas leis
e ao fazer um certo número de experiências para saber
como é o movimento de bolas em planos inclinados, a
oscilação dos pêndulos, etc., Galileu descobriu um grande
princípio, o chamado «princípio da inércia», que consiste
no seguinte: se nenhuma força actuar num objecto a mo‑
ver‑se em linha recta com uma determinada velocidade,
o objecto continuará a mover‑se eternamente na mesma
linha recta e à mesma velocidade. Por muito inacreditável
que tal possa parecer a alguém que já tenha tentado fazer
rolar indefinidamente uma bola, no caso ideal, em que não
há influências estranhas, tais como o atrito do solo, etc.,
esta continuaria eternamente a rolar com uma velocidade
constante.
O passo seguinte foi empreendido por Newton, que
considerou o caso em que o objecto não se move em linha
recta, concluindo ser então necessária uma força para
alterar a velocidade. Por exemplo, uma bola acelerará se
for empurrada na direcção em que já se move. Se se observa uma mudança de direcção, é porque foi exercida
uma força lateral, a qual pode ser medida como o produto
de dois factores: um é a taxa de variação de velocidade
com o tempo, chamada «aceleração»; o outro é um coe‑
ficiente chamado «massa», ou «coeficiente de inércia».
É fácil medir uma força. Por exemplo, se se fizer girar à
volta da mão uma pedra atada a um fio, verificar‑se‑á que
é necessário puxar o fio. A razão desse facto é que, embora a grandeza da velocidade não mude enquanto a pedra
dá a volta, muda a respectiva direcção; tem, portanto,
de existir uma força a puxar sempre para dentro, sendo
esta proporcional à massa. Se pegarmos em dois objectos diferentes e fizermos girar primeiro o mais pequeno
e depois o maior com a mesma velocidade em torno da
cabeça, concluiremos que a segunda força é maior do que
a primeira, sendo tanto maior quanto maior for a massa.
Esta é uma maneira de medir as massas: só se tem de ver
qual é a força necessária para mudar a velocidade. A partir
daqui, para dar um exemplo simples, Newton verificou que
não é necessária qualquer força, para fazer com que um
corpo se mova tangencialmente: se não houver qualquer
força, o corpo continuará em linha recta. Mas, de facto,
os planetas não se movem em linha recta; encontram‑se,
passado algum tempo, não nas posições onde estariam no
caso de não haver forças, mas mais próximos do Sol (fig. 3).
Por outras palavras, a sua velocidade, o seu movimento,
foram deflectidos para o Sol. Assim, tudo o que os anjos
têm de fazer é bater as asas sempre em direcção ao Sol.
(...)»