quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Nasceram há 100 anos e dizem-nos coisas em 2020

As estatístisticas mostram que em 1920 viviam neste planeta cerca de 1,91 milhares de milhões de pessoas (hoje vivem quase oito mil milhões) e que a população cresceu de 1920 para 1921 cerca de 17 milhões. Então, estimo que terão nascido nesse ano para aí uns 30 milhões de pessoas.

Na Grã-Bretanha, 1920 continua a ser o ano com a maior natalidade de sempre: quase 958 mil pessoas. Isso deve-se julgo eu, ao paradoxal aumento de natalidade que se seguiu à mortalidade devida à gripe de 1918-19 em conjunto com a desmobilização dos soldados participantes na primeira guerra. É preciso notar ainda que, em cerca de cem anos, a mortalidade infantil global desceu de cerca de 32% para menos de 4%.

É nesse contexto optimista, com aumento da população, diminuição lenta da mortalidade infantil e popularização (ainda que limitada) dos recursos disponíveis, como o automóvel, que nasceram as nossas heroínas centenárias. Já referi outros nomes, a propósito da literatura de ficção científica: Boris Vian, Isaac Asimov, Ray Bradbury e Frank Herbert. Têm também sido recordados outros nomes: Clarice Lispector, Mécia de Sena, Amália Rodrigues, Bernardo Santareno, Frederico Fellini, Cruzeiro Seixas e Rúben A., entre muitos outros.

Refiro-me a quatro mulheres cientistas: Rosalind Franklin (1920-1958), Elizabeth Cavert Miller (1920-1987), Marie Tharp (1920-2006) e Elaine Morgan (1920-2013). Acho relevante lembrá-las no ano em que o prémio Nobel da Química foi atríbuido a duas mulheres.

Duas foram casadas, duas nunca se casaram. Uma delas, Rosalind Franklin, morreu cedo e está envolvida em muitas histórias malcontadas, mal-entendidos e preconceitos. Poderia ter recebido o prémio Nobel pela descoberta da estrutura do DNA, mas morreu antes. Elisabeth, por outro lado, teve uma relação invulgarmente estável (ela e o marido são os únicos a ter uma biografia colectiva na National Academy dos Estados Unidos). Marie Tharp nunca se casou, mas teve uma relação intensa e conflituosa (dizem que platónica) com os seu chefe. Foi ela que fez o mapa do oceano que a tornou mais famosa do que o seu chefe. Elain foi casada e teve filhos ao mesmo tempo que desenvolveu teorias evolucionistas. Falar das suas vidas privadas será uma forma de machismo?

Julgo que talvez pudesse ser se falássemos das mulheres de hoje, mas tudo tem uma história. Falar da vida privada, dos casamentos e dos filhos das cientistas de hoje será com certeza, mas no tempo em que estas cientistas começaram a ser produtivas e relevante, talvez não seja. Todas, de uma maneira ou doutra sentiram ou referiram explicitamente os preconceitos de que as mulheres eram vítimas. Pelo menos Tharp encontrou um trabalho científico devido a boa parte dos homens ter ido para a guerra. Hoje não seria assim. Na minha opinião, o mais importante de 2020 não são as vacinas, porque isso já se sabia que iríamos conseguir. É sim, a ideia de igualdade e normalidade que conquistámos. Ainda há muito a fazer é certo (nas empresas químicas, por exemplo, os executivos de topo eram só 30% mulheres em 2018), mas vamos chegar lá. 

Entrevista a Eduardo Lourenço por José Eduardo Franco - 2.ª e última parte


(continuação da entrevista começada em 
https://dererummundi.blogspot.com/2020/12/entrevista-eduardo-lourenco-por-jose.html)

— Pensar Portugal, a Europa e o Ocidente: Passado, Presente e Futuro —

 “Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis. O caos cultural do Ocidente, neste momento, e inexpugnável. Até já a teoria divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa a ganhar adeptos.”

 JEF – E como é que é olha a integração de Portugal na União Europeia? 

EL – Portugal não tinha mais nenhuma hipótese, nem Portugal nem os outros países da Europa, da Europa dividida. O movimento globalizante intereuropeu foi tao forte que ninguém podia ficar de fora desse apelo das grandes nações para se reagruparem de forma a terem algum papel na nova configuração do mundo, desenhada depois da Segunda Guerra Mundial. O acontecimento mais importante na ordem política, e em todas as ordens, foi a nossa adesão oficial e a nossa entrada na Europa. 

JEF – Acha que foi o acontecimento mais importante destes últimos 30 anos? 

EL – Determina uma parte da nossa história enquanto país. Nós sempre estivemos na Europa. Mas estivemos na Europa a título em que cada nação está, em luta com as outras, dividida. Desta vez, entramos para um espaço que sempre aspiramos integrar, e depois consideramo-nos um pouco marginalizados pela marcha geral das nações mais evoluídas da Europa. Entramos realmente na Europa com benefícios imediatos; não foi a ideia utópica “vamos para a Europa, vamos para a Europa, e estamos encantados”. Não. Começamos a receber imediatamente benefício, uma ajuda que, de outro modo, seriam necessários anos e anos de trabalho nacional para que pudéssemos fazer o que fizemos em pouco anos, sobretudo no consulado do então primeiro-ministro Cavaco Silva e da presidência de Mário Soares. 

JEF – E qual é o seu projeto para a Europa? O senhor professor é federalista e pela união dos povos e nações? Qual é o seu ideal europeu? 

EL – Nenhuma das hipóteses, em termos práticos. A mais fácil de realizar seria um tipo de estado confederativo, uma grande Suíça na Europa. A hipótese federalista supõe sempre uma coisa federal e esta muito longe de ser o caso. A Europa vai-se fazendo, empiricamente, mas quanto mais voluntarismo se mete nessa cultura, mais ela naufraga. Colocam-se questões, começam a surgir todos os problemas, depois há aqui uma coisa que impede a Europa de se fazer, que é a reticência inglesa. A Inglaterra não quer que esta outra Europa continental realmente encontre a sua unidade. A Inglaterra ficaria sem protagonismo. 

JEF – Neste esforço de pensar Portugal e a Europa, e Portugal inscrito na cultura ocidental, há quem tenha mantido sempre a preocupação de que a Europa não perca o sentido das suas origens, das suas raízes greco-romanas e judaico-cristãs. 

EL – O que e ainda uma temática atual, suscitadora de polemica, mas não tanto quanto deveria suscitar, no que respeita a inscrição, no texto da falida Constituição, da referência a essas raízes da cultura europeia. Não querem impor a democracia, porque a democracia grega tinha escravos, não querem impor o Cristianismo, porque é uma religião, mas não é a única religião, não impõem o Islão, pois está à margem, e a Europa nunca se definiu em termos islâmicos. Em suma, não querem impor nada, e daqui a pouco a Europa não existe. 

JEF – Em seu entender, no quadro do tratado constitucional, seria importante inscrever o reconhecimento das linhas identitárias da Europa? 

EL – Sim, pelo menos para ter um referente cultural, para sabermos minimamente quais as nossas raízes culturais e mentais. Fala-se muito nos valores europeus, mas ninguém sabe defini-los, ninguém está de acordo sobre esses valores. Em última análise, a definição moderna de Europa, a partir da Revolução Francesa, como o continente dos Direitos Humanos, fica clara, na aparência, mas vasta demais. Não se pode apagar a fundamental herança da tradição humanista que vem dos tempos greco-romanos e da raiz judaico-cristã. 

JEF – Considera que uma das razões do malogro da Constituição Europeia foi essa tendência, essa corrente iconoclasta, que se impôs, no sentido de apagar uma memória segundo a qual era importante estar lá presente? Esse apagamento representará uma espécie de atentado à própria identidade europeia? 

EL – Sem uma ideia mínima do que foi a Europa, ou do que quer ser, não sei muito bem que Constituição será a sua. Deve haver o mínimo de inscrição axiológico- política que dei na os contornos dessa entidade histórico-mítica que é a Europa. 

JEF – Não considera que actualmente, nesta urgência de “Repensar a Europa”, há um défice de presença de sábios, de humanistas, e um excesso de tecnocratas frios e um pouco vazios de cultura? Isto não tem levado a esta indefinição europeia? 

EL – Há, sobretudo, uma hegemonia da perspetiva política, no sentido da urgência política, das soluções, como dizem os franceses, a là petite semaine. Não há realmente grandes pensadores europeus neste momento, ou, se há, não são ouvidos. A Europa está repleta de pensadores que meditaram, que têm belos livros sobre este continente e sobre esta união, mas não são eles que estão à frente da tecnocracia político-económica que domina a Europa em construção. A Europa precisava de uma paixão, e essa paixão não existe. 

JEF – Portanto, urge que se volte a recuperar a paixão pela Europa para que ela possa ter futuro e possa ter uma presença significa cativa e regeneradora no mundo... 

EL – O paradoxo é que a Europa não se faz, mas esse obstáculo interno que a Europa cria a si própria tem feito com que o nacionalismo, não sob a fórmula do século XIX, se tenha reavivado. O que está vivo neste momento e o desejo e a vontade de cada uma das componentes da Europa se afirmar na sua plenitude identitária. Há deficit de um pensamento europeu que seja globalizante, porque cada uma das nações parece querer representar por sua conta essa “inalcançável” Europa... 

JEF – É uma espécie de exorbitação, fora de época, de um nacionalismo que já passou.

 EL – Não se pode ignorar o facto de o lugar da Europa no mundo ter mudado. Antes, era a Europa que situava o mundo e agora e o mundo que situa a Europa. A nação imperial por excelência de um novo tipo é a América. A Europa, agora, tem os mesmos problemas que tinha no passado cada uma das suas nações que tendia a hegemonia. A Franca, que durante tantos anos foi uma espécie de referencia paradigmática para uma parte da Europa, e hoje uma quissanje de debuxei-me odre, não de primeira grandeza. 

JEF – Mas essas velhas nações imperiais parecem continuar a aspirar, têm saudades do tempo em que o foram... 

EL – Claro. Mas nenhuma nação e de primeira grandeza, provavelmente, nem os Estados Unidos o são agora. Só que cada nação quer, de algum modo, reivindicar essa grandeza perdida. 

JEF – Voltemos agora a outra questão, que é a questão do tempo da sabedoria, da idade da sabedoria, da velhice. Podemos dizer que o professor Eduardo Lourenço é um ancião, tem tornado a sua velhice fecunda, e, na sua idade, é realmente um exemplo de homem que continua a trabalhar, que continua a pensar. Como encara a velhice?

 EL – O problema é curioso. Tenho-me ocupado muito desta questão, a questão do tempo, mas sempre vivi como se o tempo não contasse, numa inconsciência absoluta. 

JEF – Considera que é inconsciente? 

EL – Absolutamente.

JEF – Mas no meio dessa inconsciência tem produzido muita consciência

EL – A inconsciência é a definição última da infância, sempre pressupondo que o tempo não existe. Sei que existe, que é mesmo a única coisa que existe, mas comporto-me como se o tempo realmente não existisse, porque e uma mascara como outra qualquer, a qual realmente não se pode fugir – ninguém foge. Nós estamos inscritos no tempo, nós ardemos no tempo, expressamos no tempo, nos consumimo-nos no tempo; mas nos não podemos objetivar essa coisa, porque isso somos nos mesmos. Nós somos como uma chama que arde e não podemos pôr a mão na própria chama. Portanto, partimos para outros lugares, para outro sítio. 

JEF – Mas deixe-me dizer isto, que é interessantíssimo: o senhor professor tem dito, em várias entrevistas, que tem vivido a sua vida de forma quase inconsciente, mas, entre os homens aqui em Portugal, os sábios, os pensadores, tem produzido fundamentalmente consciência sobre a nossa cultura. Como é que vê esta contradição?

 EL – Essa pode ser a leitura dos outros. Digo que sou inconsciente, mas trata- -se de uma inconsciência de que sou consciente. Mas isso pelo olhar dos outros e outra coisa, não e da minha responsabilidade. Isso é o olhar dos outros. Nos somos também o olhar dos outros, provavelmente, nos somos, nos começamos por ser o olhar dos outros. Nós nascemos no olhar. O primeiro olhar, quando se nasce, e o olhar materno, naturalmente, ou paterno, ou os dois juntos. Nós nascemos no olhar dos outros; quando chegamos ao nosso próprio olhar, já passou muito tempo, já passou o tempo mais importante. Quando nos acordamos para nos próprios, já tínhamos sido vistos, já estamos inscritos no olhar daqueles que nos cercam.

 JEF – Interessantíssimo. O olhar dos outros dei nê o nosso passado, sem dúvida. Ainda um tema que não coloquei à sua consideração: falando do tempo, do futuro de Portugal, agora está muito em voga a questão dos grandes portugueses, e sendo o senhor um grande português..

EL – Mas sou pequenino, sou minúsculo! 

JEF – Entre tantos portugueses, tantos pensadores, se tivesse de escolher figuras marcantes da cultura portuguesa, grandes portugueses que o marcaram, quem é que elegeria? 

EL – Acho que se tivesse de escolher um português, escolheria Alexandre Herculano. 

JEF – Alexandre Herculano? Porquê? 

EL – Porque Alexandre Herculano é o primeiro português de um Portugal novo, do primeiro Portugal que não efectua uma ruptura com o Portugal de sempre, com o Portugal antigo, de que ele vai ser o historiador, que ele e que vai criar; em última análise, criou o Portugal antigo, o discurso do Portugal antigo. E ao mesmo tempo é um homem que tem uma concepção daquilo que é o horizonte de inscrição nossa, quer dizer, o nosso cristianismo, já com uma componente inconciliável entre a exigência moderna de liberdade e a exigência, mais antiga, de uma ortodoxia, com menos lugar para essa exigência. 

JEF – É o homem de charneira, que faz a síntese entre o passado e o presente. 

EL – É um homem de charneira, e o que ele inaugurou não acabou ainda.

 JEF – Como é que dei me, em duas linhas, Portugal? Aliás, a sua obra, quase toda, gira em torno da tentativa de dei mir Portugal. 

EL – Portugal, como a Torre Triangular dos Barbelas, é um objecto sem termo de comparação. É algo de tão insólito que só se pode comparar a Torre da Barbela do meu amigo Ruben A. É isto: é um produto da História, é um produto de certo tipo de sociedade, embora tenha uma identidade tão densa, tão profunda, é uma espécie de uma ilha, como se vivesse como uma ilha. E os portugueses são ao mesmo tempo geograficamente isolados, são margens, sobretudo em relação a Europa. Mas, na verdade, os portugueses estão na margem e consideram ao mesmo tempo que estão no centro do mundo. Somos uma espécie de Robinson Crusoe. 

JEF – Só uma pergunta indiscreta: sente orgulho em ser português? 

EL – Sinto orgulho em ser português quando um olhar, por exemplo, um olhar do estrangeiro, um olhar diferente, põe em causa aquilo que nos somos, a nossa História, os nossos valores, a nossa cultura. Mas não um orgulho especial. Teria provavelmente o mesmo orgulho se fosse chinês. O chinês deve ter um orgulho de tal ordem que, para ele, outro país realmente não existe. Não faco ideia do que seja o orgulho chines, no presente, e no futuro também não se sabe. Tenho uma expressão muito ambígua de orgulho. Mas, se tivesse de escolher outra vez um lugar de nascimento, não escolheria outro.

 JEF – Outra pergunta importante que tenho de lhe fazer, agradecendo a sua paciência: editou um livro, famoso e muito interessante, intitulado As saias de Elvira, onde refle este sobre um tema interessante, que está a tornar-se fraturante na sociedade portuguesa, que é a questão do casamento. É uma das questões mais interessantes, retomando um artigo dos anos 60, de O Tempo e o Modo. Neste sentido, como é que olha o casamento? 

EL – O que penso do casamento está escrito nesse artigo. Na sociedade que é nossa, que nós herdamos, o casamento é a solução ao mesmo tempo humana e social mais coerente que se encontrou para perpetuar uma espécie, em termos que não são da simples natureza. E isso significa que o casamento é um artificio, é um artificio como toda a sociedade realmente é um artificio. E, nesse capítulo, é um desafia a todos os que embarcam realmente nessa aventura, porque a natureza está sempre contrariando. O casamento foi, sobretudo, digamos, uma instituição sobrenaturalizada pela sua inscrição na esfera religiosa, como uma obrigação de fidelidade, que é uma fidelidade de que a natureza não dá exemplos, ou raros. 

JEF – E foi de certo modo a insustentabilidade da possibilidade do casamento como instituição perene que deu origem à necessidade de ser transcendentalizada, para ser depois perpetuada.

 EL – Penso que o tipo de casamento que triunfou na sociedade ocidental, depois do Cristianismo, é um dos responsáveis pelo dinamismo e pelo dramatismo desta civilização ocidental; quer dizer, é uma solução que obriga a uma invenção permanente de si própria, justamente na medida em que ele não está inscrito na natureza: e um desafio o que se faz a si próprio. Por conseguinte, o casamento é sobretudo a realização desse diálogo, é a coisa mais dramática e mais sublime, quando ela de facto se proporciona. 

JEF – Abordemos agora a análise que faz, na sequência da reflexão que outros pensadores a nível mundial têm feito, sobre a identidade da cultura ocidental, a queda ou o crepúsculo dessa cultura hegemónica do Ocidente. O senhor professor tem um livro de título muito sugestivo, A morte de Colombo, e que também é um jogo de espelhos que analisa a relação da Europa com a América, nomeadamente a América Latina, e a evolução que essa mesma Ibero-América está a ter num movimento interior de uma certa negação do pai, de complexo de Édipo, de não reconhecimento ou de rejeição do legado identitário da cultura colonial europeia. Podemos falar um pouco dessa sua reflexão em curso? 

EL – Com prazer. O Ocidente esteve sempre em crise. A história do Ocidente e uma história de crise. A própria palavra Ocidente significa ca qualquer coisa que cai, como Hegel a glosou. A civilização segue o trajeto do Sol, desde o Oriente, palavra tao reveladora que a Maçonaria recuperou, que e donde vem a Verdade; donde vem o Sol, vem a Verdade. A Europa teria sido um ponto de transição onde o Sol se manteve durante muito tempo, e depois esse Sol também conheceu o seu ocaso. E uma metáfora de tipo cosmológico. A ideia de crepúsculo do Ocidente surge no famoso título do Oswald Spengler, um livro de 1923, sobre A queda do Ocidente. A “queda do Ocidente” e um discurso próprio de um europeu. É um alemão que, diante da catástrofe da guerra civil, da catástrofe que foi a Primeira Guerra Mundial, pensava que a Europa caminhava fatalmente para a sua extinção, num processo semelhante ao da queda do Império Romano, mas desta vez com uma queda mais rápida. Este é um diagnóstico de europeu. Esta refle exão, que aparece nas entrelinhas pelo menos, desse livrinho chamado A morte de Colombo, versa sobre uma morte diferente. O morrer do Ocidente é ser subalternizado, é perder o lugar cimeiro que foi o dele. Por exemplo, Fernando Pessoa considerava ainda que a Europa era o mundo inteiro. Todo o mundo é Europa para Fernando Pessoa. A Europa fora para todo o sítio e estava em todo o sítio. As marcas de modernidade em toda a parte tem selo europeu, e isto começou connosco, com a chegada de Francisco Xavier ao Japão. Em escassos 70 anos tudo mudou. Porem, esta morte de Colombo e a rejeição do nosso discurso sobre a História como actores, por excelência, dela, fundamentalmente, como criadores do mundo moderno, como inventores do mundo moderno no sentido próprio da palavra, como descobridores do Novo Mundo. Ora, essa descoberta do novo mundo é-nos negada pelos descobertos. Agora são os descobertos que dizem “vocês nunca nos descobriram”: isso é uma má leitura.

 JEF – Polémica essa suscitada pelas comemorações dos Descobrimentos... 

EL – As comemorações da nossa gesta imperial, ou eurocêntrica, de descobridores do mundo terminaram; para nós e para franceses, ingleses, holandeses, embora sejam menos comemorativos do que nós. No nosso caso, por detrás esta a gesta crista da evangelização. Agora dizem-nos: não só rejeitamos essa vossa pretensão de que precisamos de ser descobertos e evangelizados, mas também nos dizem que devemos enrolar as nossas bandeiras, lembrar a história em casa, mas sem a impor extramuros. Quando se celebrou, em 1892, o centenário da descoberta da América, a Espanha fez uma festa grandiosa, festa espanhola e, indiretamente, festa europeia. A Espanha estava a seis anos do fim desastroso do seu império em Cuba, as mãos da jovem América. Em 1898, a Espanha já tinha feito esse processo, que nós fizemos quase 100 anos depois. Nós tínhamos começado primeiro e acabamos depois. As comemorações colombinas foram memoráveis. Nessa altura ainda havia a força para exportar os ícones europeus para Cuba, para a América Latina. O século passado foi o século da descolonização das áfricas e da Ásia, por um lado, e, por outro, da afirmação do que já estava descolonizado. Assistiu-se a uma recuperação do próprio passado e a reivindicação de um discurso em relação a esse passado, um passado imposto, um passado imaginário, ou virtual, de uma dominação que já ninguém suportava. Não foi possível comemorar Cristóvão Colombo. Os Estados Unidos da América celebraram Colombo, que nem os descobriu, por terem há muito vencido a barreira do ressentimento e estarem sentados no antigo trono da Europa. Quanto as comemorações da descoberta do Brasil – até nós nos vimos na contingência de ter de ir lá impingir a caravela das Descobertas. A caravela naufragou com grande gáudio dos brasileiros, que acharam uma enorme graça aquilo. E tinha. Não fizeram de propósito, mas calhou assim. Não se comemorou coisa nenhuma. De qualquer modo, fomos lá, foi lá o presidente, todos a fazer de Potemkin. O discurso brasileiro autêntico, o discurso dos seus poetas, dos seus historiadores, não é um discurso comemoracionista; é um discurso de uma nova universalidade que evacua essa pretensão descobridora. É o fim da colonização, não só o fim pratico, que esse já foi há muito tempo, mas agora um fim muito mais importante, que é o fim cultural. 

JEF – Acha preocupante esse fim? Acha que é um descalabro? 

EL – Não é preocupante, é normal. A mitologia do pai descobridor e do filho colonizado acabou, mas é bom que se dê por isso. Não podem estar a fechar- -nos os olhos e nos a pensarmos que no-los estão a abrir.

 JEF – Considera essa rejeição a amputação de uma parte importante da cultura e da história da Ibero-América? 

EL – Eles não a podem amputar, porque os verdadeiros atores, a título póstumo, da descoberta europeia, são eles mesmos, “ibero-americanos”, herdeiros dos colonizadores, convertidos hoje em pais de si mesmos. Eles estão a preparar- se para substituir a Europa, por um lado, e substituir-se ao adversário e inimigo mais próximo que eles têm, que é o grande irmão do Norte. O que o Brasil quer é opor-se e pôr-se no lugar da América, e é compreensivo. Servem-se dos índios, dizem que pretendem defender a cultura indígena, mas isso é discurso de colonizador. As elites de origem colonial, os seus filhos, os seus netos e que fazem esse discurso. 

JEF – Que significa cá este processo de revolta, de rejeição, de evasão? Vivemos numa época de barbárie cultural? Procura-se uma nova identidade? 

EL – Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis. O caos cultural do Ocidente, neste momento, é inexpugnável. Até já a teoria divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa a ganhar adeptos. Isto podia ser uma espécie de folclore, mas é menos inocente do que parece, agora que a China aparece no horizonte como uma nova América... 

JEF – É o poder de atracção e de prestígio deste novo império emergente. Até começam a atribuir-lhe feitos que eram apanágio da Europa. 

EL – Inclusive as nossas Descobertas. Quando estive em Macau, conheci no Museu de Macau a história de um famoso almirante chinês que teria vindo da China até às costas de Africa, o que é perfeitamente plausível. Os chineses teriam sulcado quer o Pacifico, quer o Atlântico, quer o que é hoje a América. Embora não haja prova nenhuma disso, o facto de se aventar esta possibilidade significa que há uma tentativa de recomposição, de rejeição integral de toda a mitologia ocidental. Temos de nos habituar à ideia de que a nova versão da História não é a Palavra de Deus. 

JEF – Está em curso um processo de mudança dos grandes pivôs imperiais no xadrez mundial.

 EL – Completamente. E sempre a partir de um presente que se reescreve a História, e o presente hoje não é a Europa, ela perdeu o seu lugar, logo são outros que a escrevem. 

JEF – Considera, para terminar, que vivemos então numa era nova de relação da Europa com o mundo, dos países da Península Ibérica com a América Latina? Entrámos numa época que denominou de barbárie, que está a sobrepor-se à cultura civilizada? 

EL – Não, o problema é que o que está a acabar é a convicção, em que nós vivemos durante tantos séculos, de que só nós é que éramos civilizados. 

JEF – Mas isso é positivo. 

EL – Claro que é positivo. O que é negativo nisso é pensar que, de facto, o passado, tal como nos o fizemos, não existiu, ou que nós somos os bárbaros deles. O problema é que esta pretensão está, por assim dizer, na ordem das coisas. Muda de actores, mas não desaparece nunca. O bárbaro é, por definição, o Outro. 

JEF – Em suma, o grande perigo é o apagamento do passado.

 EL – Se por acaso a China recuperar todas as suas potencialidades, uma China tem atrás dela 4000 ou 5000 anos de história. Se algum dia for uma espécie de sucessora da América, evidentemente que vai reescrever a história do mundo de outra maneira. 

JEF – Fá-lo-á de acordo com a sua ótica, com o seu horizonte de compreensão próprio… 

EL – Eles nunca a poderão escrever como nós a escrevemos. Nós somos, culturalmente falando, herdeiros de gregos e romanos. Foram eles que inventaram a História. A consciência histórica e o acontecimento essencial da história do mundo. 

JEF – Então, a feitura da História é um instrumento de colonização cultural, usado pelos povos cultural e politicamente dominantes? 

EL – Nunca isso foi tao evidente como hoje. Todos os acontecimentos são escritos em americano, tudo é escrito em americano... Os nossos ídolos, os nossos jornais estão americanizados... Todos os dias há uma página na imprensa em que aparecem os ícones americanos. Mesmo quando se está no Brasil, esquece- se completamente que a Europa existe. Não há lá uma notícia capital sobre a Europa. E na América também não há nenhuma notícia sobre a Europa, excepto sobre alguma coisa que tenha a ver com ela. É como se fossem mundos aparte, hoje, na época da hiperglobalização. No século XIX, havia na América mais notícias sobre a Europa do que agora. A América, no século XIX, estava com os olhos postos em Paris e em Londres. A Europa era ainda o “tesouro do mundo”, tesouro cultural, e onde está o nosso tesouro. 

JEF – Senhor professor, uma palavra final sobre o futuro. 

EL – E quem tem uma palavra sobre o futuro? Como dizia Bergson, ninguém tem palavra sobre o futuro. Se eu tivesse uma palavra sobre o futuro, dizia-a. Qual e a filosofia do futuro? Se eu soubesse, escrevia-a já. O futuro é de uma imprevisibilidade total. Antigamente a profecia era mais verossímil, porque o tempo ainda era muito homogéneo. A maneira como se vivia no século XIV, ou XV, ou XVI, e como se vivia na minha infância, na Beira, não eram muito distantes. A aceleração brutal causada pela invenção científica mudou-nos o mundo. Eu já estou separado deste tempo, já estou hipermorto a vários títulos. Quando vejo o meu neto mergulhado na Playstation, não sei o que ele está a fazer. Ou não quero saber, o que é pior. Já estou navegando por conta de ninguém noutro lado. O do não-futuro.

 

A DESILUSÃO DE VIVER NUM PAÍS DE BARBÁRIE


 

“A não retroactividade das normas é o que distingue a civilização da barbárie” (Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros do Partido Socialista).

Neste dia soberano para fazer um balanço de fim de ano em que as eleições para a Presidência da República batem à porta e as eleições legislativa despontam no horizonte e, principalmente, num tempo em que a  ADSE alargou a inscrição a novos beneficiários, não por amor ao próximo mas para evitar a respectiva falência, evoco, uma vez mais e tantas quanto as necessárias, a retroactividade de uma lei que excluiu antigos familiares de beneficiários com pensões que não atingem, sequer, valores do ordenado mínimo nacional.

Sempre que reagi a este “status quo”,  em exposições endereçadas à ADSE e ao próprio Presidente da República escudaram-se estas entidades na supracitada norma rectroactiva. Salvaguardando  um possível lapso de memória que a minha idade possa justificar, em exposição feita à Provedoria da República nenhuma resposta oficial me foi dada a não ser breves contactos pessoais inconclusivos por mim levados a efeito.

Estas desculpas esfarrapadas chateiam-me mesmo - seja-me desculpado o calão – por terem-me por ignorante (ou mesmo burro que nem uma porta!) incapacitado, como tal,  de interpretar simples articulados legais, logo eu, habilitado com o exigente exame da antiga 4.ª classe do ensino primário, obrigado a engolir, na idade adulta, a xaropada do óleo de rícino da minha juventude, através de legislação semelhante à que o falecido António de Almeida Santos, presidente da Assembleia da República, criticou: ”A redacção de grande parte das leis, depois de 25 de Abril, chumbariam no antigo exame da 4.ª classe!”

Este o cerne da questão que o ex-presidente da ADSE  Carlos Liberato Baptista, talvez, por currículo profissional de me fazer corar de vergonha quando confrontado com o meu modesto percurso de vida, pelos vistos, não entendeu  ou não quis entender as exposições que lhe enviei e à sua sucessora Sofia Portela, quiçá, porque como sentencia a sabedoria popular: “O pior cego é aquele que não quer ver”!

Sejamos claros de uma vez por todas: conheço de ginjeira  a existência dessa legislação  que serve de argumento irredutível, qual inamovível Rochedo de Gibraltar aos próceres da ADSE para que tudo continue na mesma na pachorra de um povo preocupado em sobreviver o seu dia-a-dia com os olhos postos em reformas de aposentação que não acompanham os ordenados no activo e que "ipso facto", por vezes, mal chegam para despesas mensais de "vil e apagada tristeza". Ou seja, mesmo que em “redutio ad absurdum”, aceitando a validade dessa legislação, renego em tê-la como vaca idolatrada de hindus.   

Sendo mais explícito, numa altura em que certas medidas foram  alteradas, sem rei nem roque,  pela ADSE como no “Jogo do Rapa” (tira, põe, deixa e rapa!), tirando a uns para dar a outros, não seria altura de rever uma legislação dormindo, desde 1983, o sono dos (in)justos, pelo impacto negativo que poderá ter em termos eleitorais, mesmo tendo em conta, como favas contadas, a reeleição do Partido Socialista, ainda que em perda de gás, segundo recentes sondagens?

Saúdo, portanto, a democratização trazida pela Net em não ter a opinião pública escravizada aos próceres que a controlam, ainda que criticando o exagero de prosas virulentas de comentários em desbragados ataques pessoais, porque, como escreveu António Sérgio: “Contestar a ideia de um certo homem, ou defendida por um certo homem, não é insultar esse mesmo homem: sabe-se isto no mundo inteiro e só se desconhece neste país”.

Foi um grande avanço das novas tecnologias terem  facultado armas pessoais de defesa a todos os cidadãos que,sem mordaça que a democracia não consente de antigos coronéis do “lápis azul” do Estado Novo, publicam comentários na Net embora que, por vezes, atentem contra a moral pública ou os bons costumes. Isto sem entrar em polémica sobre o que  é (ou deve ser) a moral pública e os bons costumes que, sei-o bem, vão mudando com as épocas e conceitos  evolutivos das sociedades em que se inserem!

Assim, estarei sempre na  linha da frente ao combate contra a expulsão de antigos familiares de beneficiários da ADSE, “quer tenham descontado ou não doze anos  para a Segurança Social”, tratando, igualmente situações diferentes. Aliás, princípio contestado pelo falecido Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Rui Alarcão, que passo a citar: “O principio da igualdade, que está na Constituição, significa que o que é igual dever ser tratado igualmente e o que é desigual deve ser tratado desigualmente”. Ou, como escreveu Baudelaire, “apenas é igual  a outro quem prova sê-lo”! 

Para além disso, neste caso, prevaleceu a retroactividade da lei, princípio que não merece consenso entre os próprios juristas e políticos. Haja em vista as judiciosas palavras em epígrafe do actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que correm o risco de serem tomadas como música celestial, “pour épater le burgeois”, por dizerem uma coisa em teoria e significarem outra na prática!

Fiel, portanto, a um princípio, que me tem orientado numa luta estrénua contra todas as formas de injustiça, um meu “post” aqui publicado, tinha o título: “Falarei sobre a ADSE até que a Voz me Doa” (03/04/2018). 
Alea jacta est! O que pensa o leitor da recente expulsão de familiares de beneficiários da ADSE? Muito ganharia esta querela – porque, como diz a “vox populi” quem cala consente por demissão de um dever de cidadania - com comentários de quem nela descortina defeitos, como sejam, aqueles que a meu exemplo em assunção pública  nela vejo e fundamento imperfeições para, como dizia, um ministro espanhol, voltando-se para o seu secretário. “Senhor Rodriguez veja se a lei está redigida com a devida confusão”! Mas mais que debitar meras opiniões há que exigir que todas as injustiças sejam tomadas em linha de conta em próxima eleições porque as injustiças que hoje se cometem contra uns amanhã  serão cometidas contra outros.

 Pense nisso e medite o leitor que tem no voto uma arma sem se deixar levar  atrás de políticos que, segundo Kruschev, “são o mesmo  em qualquer parte : prometem construir pontes, mesmo quando não há rios”. E que me conste este político  defensor da coexistência pacífica entre a URSS e os Estados Unidos  não é um perigoso fascista!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente"

Reproduzimos um artigo do botânico Jorge Paiva, saído há dois dias no jornal Público. Cada palavra que nele consta devia ser profundamente interiorizada por aqueles que já o leram e que o lerão. Sobretudo se são professores, directores escolares, políticos com responsabilidade (efectivamente) educativa. Na verdade, "constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente e com civismo" também (e sobretudo) na escola.


É por total falta de civismo que continuamos com elevado número diário de infectados pelo betacoronovírus SARS-CoV-2. Aliás, este nosso atraso cívico é milenar, como já o menciona Estrabão, geógrafo e filósofo grego (ca. 73-24 a.C.), ao referir que os iberos não conheciam o pão de trigo, nem vinho:
Os habitantes das montanhas, durante duas partes do ano, utilizam bolotas, depois de as terem secado e triturado; logo as moem e as transformam em pão… E utilizam também cerveja, mas têm falta de vinho… Todos eles vestem de negro, a maior parte com saios, e é com eles que se deitam sobre camas de folhagem.” (Geografia, Livro III, capítulo 3, 7, tradução de J. Deserto e S. Pereira, 2016).
A maioria das pessoas não entende, nem quer, individualmente, sujeitar-se às alterações de convivência a que estavam habituadas e julgam, egocentricamente, que o vírus só infecta os outros e nunca elas próprias. Por isso, continuam a conviver e a divertirem-se agrupadas, sem máscaras e, muitas vezes, em recintos fechados, sem as mínimas condições higiénicas.

Por outro lado, não há cuidado nenhum com o lixo sólido, pois, não só não o seleccionam, como até o lançam para o chão das artérias urbanas, caminhos e estradas. Há dias, no percurso que faço a pé para ir comprar jornais (cerca de 500 metros), vi espalhadas no piso das ruas que percorri cerca de uma dúzia de máscaras. Este lixo sólido arremessado para o chão é arrastado pelas águas pluviais, indo para as bacias hidrográficas dos rios, acabando por ir parar aos oceanos. 

Por exemplo, o plástico como flutua, é aglomerado por correntes marinhas, acumulando-se em ilhas flutuantes de plástico. Neste momento existem cinco grandes ilhas oceânicas de plástico: uma no Oceano Índico, duas no Atlântico (uma a Sul e outra a Norte) e duas no Pacífico (uma a Sul e outra a Norte, tendo esta última uma superfície correspondente a cerca de 18 vezes a superfície de Portugal Continental; isto é, cerca de sete vezes a superfície Reino Unido).

As máscaras e luvas lançadas para o solo, estão a chegar aos oceanos a um ritmo alucinante: cerca de 129 biliões (129.000.000.000.000) de máscaras por mês e cerca de 65 biliões de luvas plásticas por mês. Isto no espaço de um ano, pois esta pandemia foi detectada em Dezembro de 2019. Claro que estando algumas das máscaras carregadas de vírus e (ou) bactérias, estes micróbios podem entrar na cadeia alimentar marinha e chegar ao corpo humano. Este desastre resulta da falta de civismo não só dos portugueses, como também de outros povos.

Por outro lado, geralmente, quando se refere a biodiversidade, não se dá a devida relevância aos seres vivos microscópicos (microbiodiversidade), como são as bactérias, as arqueas (Archaea), as leveduras, as amebas, os vírus e muitos outros seres desconhecidos para a maioria das pessoas, como são, por exemplo, os mixomicetes, protistas microscópicos, plasmodiais, que se alimentam de microrganismos, como leveduras, fungos, bactérias e, provavelmente, também de vírus.
 
As florestas são dos ecossistemas onde estes seres são mais abundantes, quer na manta morta, quer na superfície das plantas. Uma árvore tem milhares de esporos ou propágulos de mixomicetes. Ao derrubar-se uma árvore, eliminam-se milhares de potenciais mixomicetes, predadores de microrganismos. Quando, além disso, se destrói, o ecossistema florestal, libertam-se de controlo milhões de bactérias e vírus que podem provocar novas doenças, como aconteceu, por exemplo, com a HIV e com a febre hemorrágica do Ébola.

Infelizmente, neste momento, há apenas 20% das florestas que existiam quando a nossa espécie surgiu neste Globo, uma “Gaiola” que temos vindo a sujar e a alterar o equilíbrio dos ecossistemas naturais, nos quais temos vindo a dizimar a biodiversidade. É deprimente e assustador saber-se que, por exemplo, se o ritmo actual de poluição do Mar Mediterrâneo não se alterar, em 2030 (daqui a dez anos), não haverá peixes neste mar interior e que, se o actual ritmo da diminuição da biodiversidade continuar, mais de metade das espécies de mamíferos e de aves desaparecerá até ao final deste século (daqui a 80 anos).

Por outro lado, desde há cerca de meio século que são organizadas cimeiras internacionais sobre o ambiente e biodiversidade, mas a conduta ética irresponsável de decisores políticos tem levado estas iniciativas ao fracasso por incumprimento dos acordos estabelecidos. Estas cimeiras começaram em 1972 com a 1ª Cimeira Internacional sobre o Ambiente, em Estocolmo (113 países); seguiu-se em 1975 (Belgrado) o Colóquio sobre Educação Ambiental da UNESCO; em 1979 (Genebra) a Cimeira Mundial do Clima; em 1985 (Villach) a 1ª Conferência Mundial do Clima (1ª Declaração sobre o Aquecimento Global); em 1989, é criado o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC); em 1990 (Genebra) a 2ª Conferência Mundial do Clima; em 1992 (Rio de Janeiro) a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92) (1ª Cimeira Da Terra); em 1995 (Berlim) a 1ª Conferência das Partes (COP), o órgão supremo decisório da Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP-1); até 2019 (Madrid) a última COP (COP-25).

Esta última esteve marcada para o Rio de Janeiro, mas o actual Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não autorizou que se realizasse no Brasil. Foi, primeiramente transferida para Santiago do Chile, mas devido à instabilidade política que ocorria na altura no Chile, foi finalmente marcada para Madrid. Esta atitude do Presidente do Brasil e a de Donald Trump, que retirou os Estados Unidos dos compromissos tomados nos acordos destas reuniões, não constituem falta de ética. São muito pior do que falta de ética e prefiro abster-me de as qualificar, pois são, praticamente, inqualificáveis. 

Os governantes, políticos, industriais, etc., necessitam, urgentemente, de tomar medidas. Sem elucidação da população, com programas bem elaborados nas estações de rádio e televisão públicas e sem uma educação ambiental bem programada nas escolas, a preservação dos outros seres vivos (biodiversidade) vai continuar a diminuir drasticamente e o aquecimento global vai continuar a aumentar implacavelmente.

É fundamental que todos se capacitem que não sobreviveremos no Globo Terrestre sem os outros seres vivos (biodiversidade) e com temperaturas insuportáveis.

Porém, a sociedade consumista em que se transformou a designada “civilização ocidental” tornou-se opressiva, violenta e demolidora. Assim, as pessoas não só não têm tempo para se aperceberem de como estamos a poluir a “Gaiola” (planeta Terra) em que vivemos e como estamos a destruir a Natureza. Os políticos apregoam imenso que é necessário um desenvolvimento sustentável, mas não fazem concretamente nada para que assim aconteça.

Como se referiu, as Nações Unidas realizam frequentemente Cimeiras Internacionais sobre o Ambiente e Biodiversidade, mas os políticos, com uma total falta de ética, nunca cumpriram os acordos. Sem florestas e com a poluição dos oceanos, a Terra terá temperaturas tão elevadas e tantos microrganismos letais que se tornará inabitável para a nossa espécie. Constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente e com civismo.
Jorge Paiva

MINHAS SUGESTÕES EM "ORIGINAL É A CULTURA"


 O programa da SIC "Original é a Cultura", que reaparece em Fevereiro, costuma terminar com sugestões finais: um livro, um filme, uma peça, uma música, uma exposição, etc. Listo aqui todas as minhas sugestões. Podem rever qualquer programa no site da SIC Notícias:

https://sicnoticias.pt/programas/original-e-a-cultura

ORIGINAL É A CULTURA

TEMAS E SUGESTÕES FINAIS DE CARLOS FIOLHAIS

2019

28 Set 2019 O QUE É A CULTURA. SER ORIGINAL BD: “Magalhães até ao fim do mundo” (CF).

5 Out.   O FUTURO DO PLANETA               “Elogio da lentidão”, Lamberto Maffe   

12 Out.                O ENSINO            Mês da Ciência e da Educação da Fundação Francisco Manuel dos Santos Ciclo de Conferências    

19 Out. VOLTAR A LER    “Cosmos”, de Carl Sagan             

26 Out. AS CIDADES        “As cidades invisíveis”, Italo Calvino       

2 Nov    O PODER E A CULTURA “Traços fundamentais da cultura portuguesa”, Miguel Real

9 Nov.  SOPHIA E SENA “Conheço do sal”,

23 Nov. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL            “Máquina como eu”, Ian Mcewan

30 Nov. A CRIAÇÃO TEM GÉNERO?           Exposição Ciência no Feminino – Rómulo Ciência Viva da Univ. De Coimbra        

7 Dez.   ESTAR À MESA  “À mesa com os filósofos”, Normand Baillaregeon          

14 Dez. A FELICIDADE    “A natureza da felicidade”, Desmond Morris      

21 Dez.                   MEMÓRIAS  DE UM ANO           “Star Wars: A Ascensão de Skywalker “ J.J.  Abram

2020

17 Jan.  O LUGAR DA MÚSICA    Carlos Seixas, Concerto em lá maior

24 Jan. PORTUGAL VISTO DE FORA         Filme “Comboio Nocturno para Lisboa”  de Bille August

31 Jan. AS NOVAS FAMÍLIAS  Filme “História de um casamento”, Noah Baumbach,

7 Fev.    O JORNALISMO HOJE     “A Morte da Verdade”, Michico Kakutani            

14 Fev.                  A EUROPA: QUE FUTURO?         “A Europa ao Espelho de Portugal – Ideia (s) de Europa na Cultura Portuguesa”, José Eduardo Franco         

21 Fev. A CULTURA NA ERA DA INTERNET            “Você não é um gadget. Um Manifesto”, de Jaron Lanier               

28 Fev. ENVELHECER      Filme “O Curioso Caso de Benjamin Button”, de David Fincher, baseado no conto de Scott Fitzgerald           

6 Março               O CÂNONE         “Porquê Ler os Clássicos?”, Italo Calvino              

13 Março             O HUMOR          Actuações do grupo de stand up comedy “Cientistas de pé” e livro “Cientistas de Pé – Toda a Ciência (menos as partes chatas) de David Marçal e outros.         

20  Março           AS DUAS CULTURAS       Documentário “Cosmos, Mundos Possíveis” National Geographic           

12 Junho             AS ARTES EM TEMPOS DE EMERGÊNCIA               “Frente ao Contágio”, Paolo Giordano e “A Pandemia que Abalou o Mundo”,  Slavoj Žižek       

19 Junho             DESCONFINAR OU DESCONFIAR?             “A Violência e a História da Desigualdade” Walter Scheidel        

26 Junho             RACISTA, EU?     “A falsa medida do homem”, Stephen Jay Gould

3 Julho SABER E PODER “Um Mundo Infestado de Demónios”, Carl Sagan            

10 Julho               O FIM DO EL DORADO? “Museus Centenários de Portugal”, Cristina Cordeiro (2 vols)    

17 Julho               PENSAR AMÁLIA              “Coimbra” Letra: José Maria Galhardo Composição: Raul Ferrão e  “April in Portugal” – Louis Armstrong     

24 Julho               DA MELANCOLIA  Filme “Melancholia” Lars von Trier     

31 Julho               FAZER A FESTA Filme “The Graduation”, de Mike Nichols            

25 Set.  EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO               Filme  “Hugo”, de Martin Scorsese         

1 Out.   O MUNDO É UM PALCO               Peça “Palhaço velho, precisa-se”  do romeno 

Matéi Visniec pela escola da Noite de Coimbra.

8 Out.  EDUCAR PARA A CIDADANIA       “O valor de educar”, de Fernando Savater

15 Out.                DA AMIZADE     “D. Quixote”, de Carvantes  e “D. Quichotte, de Salman Rushdie              

22 Out.                A AMÉRICA HOJE             America, the beautiful- Relatos de Escritores Portugueses          

29  Out.               A UM DEUS DESCONHECIDO       “Fratelli Tutti”, Carta Encíclica do Papa Francisco            

5 Nov.   O SEGUNDO SEXO           Filme “Radioactivo”, realizado por Mariane Satrapi

12 Nov.                ESCÁRNIO E MALDIZER “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, sel., pref. e notas de Natália Correia

19 Nov. UTOPIA OU A MORTE    “A Nova Atlântida”, Francis Bacon          

26 Nov.                SOLIDÃO              Filme “A Solidão dos Números Primos”, de Saverio Costanzo a partir da obra homónima de Paolo Giordano

3 Dez.   SEXO     “Sexo e o Absoluto Falhado”, Slavoj Žižek            

10 Dez. PENSAR O FUTURO         Filme “Interstellar”  de Christopher Nolan          


Entrevista a Eduardo Lourenço por José Eduardo Franco 1- “Um (des)encantador da Cultura portuguesa”


O ano de 2020 ficou marcado na cultura portuguesa pela morte de Eduardo Lourenço Transcrevemos aqui uma  entrevista sua em que conta, de um modo muito límpido, a sua vida e a sua época:

Entrevista a Eduardo Lourenço “Um (des)encantador da Cultura portuguesa”

Por José Eduardo Franco

In  José Eduardo Franco, Rosa Fina, Susana Alves-Jesus (orgs.), Portugal Vencedor: Vidas Empreendedoras em Entrevista, Eranos, 2015, pp. 47-75.

“Sinto orgulho em ser português [...]. Os portugueses estão na margem e consideram ao mesmo tempo que estão no centro do mundo. Somos uma espécie de Robinson Crusoe.”

— Da Beira Interior para a Academia —

“A infância é uma espécie de mar que está por cima de nós, terrestre.”

José Eduardo Franco − Gostaríamos de saber um pouco sobre a sua vida, sobre o seu trajeto, sobre as suas preocupações. Começando pela sua infância: onde nasceu e como foi a sua infância?

Eduardo Lourenço − Sou um filho do Portugal profundo, daquela Beira que já tinha um certo tipo de comportamento, e foi aí, digamos, o primeiro núcleo da resistência lusitana, em volta da qual se vai construir este país, que se veio a chamar reino de Portugal.

JEF − Mas o senhor professor nasceu onde, exatamente?

EL − Nasci em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida.

JEF − Junto à fronteira...

EL − Junto a fronteira. Sou de uma zona raiana. E toda aquela região, chamada região de Riba Coa, é uma região que, até ao reinado de D. Dinis, pertenceu ao reino de Leão e isso e muito interessante − as pessoas desconhecem o facto porque, aparentemente, a região está tão integrada no território nacional.

JEF − Mas originalmente foi das mais desintegradas...

EL − Quem lá vive sabe que os estratos linguísticos de muitas daquelas expressões que ali usam pertencem realmente ao lado leonês, do reino de Leão. É uma região extremamente arcaica e uma região muito particular como todas as regiões fronteiriças. É o nosso far west.

JEF – Recordando alguns pormenores, nasceu em que mês e em que ano?

EL − Nasci em 1923, no mês de Maio. Duas datas me registam: o dia 23 e o dia 29. Sou como Homero: discutem-se as sete cidades em que nasci.

JEF − Nasceu no dia 23 e foi registado no dia 29, como era habitual na altura.

EL – Exatamente, de maneira que estive seis dias fora do tempo, e assim fique sempre, fora do tempo.

JEF − Falemos um pouco sobre a sua família...

EL − A minha família era, em parte, uma família camponesa. O meu avô era lavrador, o outro avô também seria lavrador; era uma família numerosa. Vieram muito cedo para a Amadora, onde o meu avô tinha uma loja de calçado, mas realmente essa família só conheci tardiamente.

JEF − E o seu pai e a sua mãe?

EL − Os meus pais também nasceram em São Pedro do Rio Seco. Muito jovem, o meu pai veio para Lisboa, com 12 anos. Aos 17 anos alistou-se no exército e fez uma carreira militar até ao posto de capitão, já nos anos 40.

JEF − Então a sua infância foi desdobrada entre a sua terra natal e Lisboa?

EL – Não. Os primeiros dez anos foram na aldeia, em São Pedro do Rio Seco, salvo um ano, o da 3.a classe, que fiz na Guarda. Porque os filhos de militares deslocam-se... Os marinheiros deslocam-se, mas os militares também, e por vezes as famílias deslocam-se com eles. Nessa altura, fiz a 3.a classe e depois voltei e fiz a 4.a classe em São Pedro.

JEF − E gostou da sua infância na aldeia? Como é que a caracteriza?

EL − Sim, quer dizer, a não ser que ela tivesse sido realmente digna do Dickens ou do Zola… Nós gostamos sempre das infâncias, sobretudo quando não houve nenhuma tragedia particular, quer dizer, quando ainda não houve mortos. Todas as infâncias têm os seus mortos, mas digamos que são daquelas mortes que nos aparecem como naturais, são pessoas mais velhas, casos do meu avô, da minha avó, que ainda conheci. Mas, se tivesse de resumir, foi uma infância feliz, e provavelmente mesmo um espaço de felicidade.

JEF – Um espaço ligado à terra, à natureza...

EL – O que e importante, embora seja pequeno. Mas era um espaço de felicidade em volta do qual toda a vida depois se reorganiza, mesmo quando ela não corresponde as expectativas e ilusões que se criaram quando a gente é jovem.

JEF – Dizem que o imaginário da pessoa se constrói até aos oito anos, mais ou menos...

EL – O Péguy diz que é até aos quatro anos. Até aos quatro anos o essencial da pessoa esta decidido. Não tenho luzes especiais sobre isso, mas a infância é uma data de coisas, a infância é uma terra, a infância e uma paisagem. A paisagem contou muito – dir-me-ão que se fosse no Alentejo seria a mesma coisa, se fosse no Minho era outra coisa –, mas aquela paisagem e uma paisagem também muito singular: e um planalto, que já tem qualquer coisa de desértico, um planalto de vastos horizontes; não e aquela coisa de montanhas, nem vales encaixados. Tem ares. A infância é uma espécie de mar que está por cima de nós, terrestre.

JEF – E então como é que foi a sua escolaridade, os anos de formação?

EL – A minha escolaridade foi a mais normal. Fiz a escola primaria em São Pedro e passei um ano na Guarda. Depois fiz o exame de admissão para o liceu na Guarda, onde frequentei o primeiro ano do liceu. Mais tarde, no segundo ano, já vim para Lisboa, para o Colégio Militar, onde fiz o curso.

JEF – E depois foi para a universidade?

EL – Depois fiz o exame de admissão a universidade.

JEF – E foi para Histórico-Filosóficas?

EL – Não, porque estava destinado a ser militar. Fiz o exame de admissão para Ciências, mas praticamente desisti logo no primeiro trimestre.

JEF – Hoje teria sido general...

EL – Na reserva... Mais que na reserva, como todos os meus camaradas dessa altura. Mas não tinha vocação nenhuma para isto nem para nada. Nunca tive nenhuma vocação especial. Foram as circunstâncias que determinaram o meu percurso.

JEF Depois optou por ir para Coimbra, certo? E candidatou-se ao curso de Histórico-Filosóficas.

EL – Fui para Coimbra, porque pensava que era a universidade por excelência, naquela altura.

JEF – E como foi a sua experiência universitária?

EL – Foi decisiva, naturalmente.

JEF – Gostou do curso?

EL – É uma iniciação, a primeira grande iniciação cultural. A mais importante. Foi muito interessante, porque desde garoto tinha uma grande paixão pela História  em geral.

JEF – Então essa era a sua vocação?

EL – Tinha uma grande paixão pela História como romance. E pensava que ali me iria interessar fundamentalmente pela História, que iria ser talvez um futuro historiador, um José Mattoso da minha geração, e não foi nada disso que aconteceu. O professor de História era um dos grandes eruditos, mas pedagogicamente não era isso o que eles davam nas aulas, pedagogicamente não interessava muito. Na verdade, interessei-me mais pela Filosofia.

JEF – E deste percurso todo – escola primária, liceu, Colégio Militar, universidade –, recorda algum professor que o tenha marcado sobremaneira?

EL – O meu professor pré-primário, um senhor muito modesto, chamado professor Morgado, um homem muito dedicado, que vinha a pé léguas para ensinar. Foi uma semana, mas marcou.

JEF – E no liceu?

EL – No liceu tive bons professores, professores regulares, mas, o que me marcou mais foi o professor de História que tive no Colégio Militar. Chamava-se Sanches da Gama e é o avo da escritora Luísa Costa Gomes. Era um excelente professor, de uma grande harmonia, que se distinguiu entre os seus. Em geral, não há muito gosto pela História, os alunos não se interessam muito pela História. Aquele meu professor dizia que eu podia, já naquele tempo, ser professor dos meus colegas.

JEF – E gostou da disciplina do Colégio Militar? Acha que é importante?

EL – Não, não, não...

JEF – Deu-se mal?

EL – Foi decisiva para mim no sentido reactivo. Eu não queria estar como um pássaro numa gaiola, e realmente, quando me apanhei fora...

JEF – E apanhou-se fora, já na universidade...

EL – Mas, quer dizer, o pouco de disciplina que terei terá sido aprendido aí. A universidade foi uma coisa muito ambígua...

JEF – Sair da gaiola correspondeu a ir para a universidade?

EL – Sair para a universidade.

JEF – E na universidade houve algum professor que o tenha marcado?

EL – Tive realmente a sorte de ter professores como o professor Joaquim de Carvalho, um historiador e filósofo, o Sílvio Lima, que era um espírito brilhante como ensaísta; e um professor, com uma visão do mundo mais tradicionalista, em termos de enraizamento escolástico, tomista, que era muito bom  professor e um excelente pedagogo, o padre Miranda Barbosa. Embora tivéssemos divergências naquela altura – eu já tinha ideias –, a verdade é que tenho de reconhecer que foi um excelente professor. E também tive como mestre assistente, o professor Magalhães Vilhena, que deu algumas aulas interessantes.

JEF – Em relação à Filosofia, já escreveu que cada pensador é uma ilha...

EL – É uma ilha... Um amigo meu, o poeta Joaquim Namorado, dizia que cada português ficava sempre muito danado por não ter inventado os fósforos.

JEF – Mas aplica-os bem...

EL – Ninguém nasce de uma bolota, como dizia Homero. Os mestres funcionam em Portugal como referências escolares, porque eles próprios tem pouca originalidade. Refiro-me ao campo filosófico. Os discípulos são discípulos de um certo saber, de uma certa aprendizagem que fizeram, mas não de um pensamento pessoal, visto que esse pensamento talvez não fosse suficientemente original para os ter marcado. Assim, cada um pensa que está sempre a começam na "hora zero". Ainda se fosse verdade... É próprio do pensar filosófico não poder fazer outra coisa que não seja começar numa "hora zero" qualquer. O caso do Heidegger e um caso típico que mostra efetivamente como se está ai sempre a começar. A filosofia e velha e nova ao mesmo tempo, não tem princípio nem fim. Aqui no nosso país, na nossa história cultural, houve uma pequena escola positivista. Quando o ensino se baseia na crença, quer seja crença no sentido tradicional do termo, quer seja crença no sentido positivista do seculo XIX, então forma-se uma espécie de escola, digamos, uma “seita-escola”.

JEF – Com uma dimensão de militância...

EL – Sim, quase de seita. No tempo do padre Manuel Antunes e no meu tempo, havia como tema globalizante o marxismo. Mas qual é o nosso grande pensador marxista? Temos naturalmente homens de cultura marxista. O António José Saraiva, na sua primeira fase, o Óscar Lopes, embora seja mais na sua versão literária... Havia muita gente que participava do discurso marxista histórico, político ou cultural. Fora disso, temos pensadores independentes. Por exemplo, Delfim Santos não esta propriamente vinculado a qualquer tradição. E alguém que teve a sua aprendizagem em Portugal, depois continuou a sua reaprendizagem na Alemanha. Veio da Alemanha, tendo lá dialogado com grandes mestres. Iniciou em Portugal uma importante reflexão. Todavia, não encontrou aqui outra com que dialogar. Por exemplo, ele foi contemporâneo de Vieira de Almeida, que representa outro tipo de pensamento. São duas ilhas: Vieira de Almeida é uma ilha, Delfim Santos e uma outra ilha. Aqui, provavelmente, a única escola em termos de ordem filosófica será aquela que glosa Leonardo Coimbra. Leonardo Coimbra é que fez escola, por causa do seu tipo de discurso, um discurso filosofia camítico, filosófico-simbólico, literário, coisas sempre muito apreciadas pela nossa cultura poética.

JEF – Fez escola no quadro da dita Filosofia Portuguesa...

EL – A Filosofia Portuguesa é que se reclama dele. A ideia da Filosofia Portuguesa não é dele. Não encontro nada em Leonardo Coimbra que o justifique. Leonardo Coimbra foi alguém muito influenciado por Bergson, portanto estava em diálogo com uma das grandes filosofias da época, dominantes na Europa. Nós somos professores de Filosofia, no melhor dos casos, com vocação de filósofos. E cada um é uma ilha: temos o Leonardo Coimbra, o próprio Delfim Santos – não vejo nada na sua obra que tenha o pathos, o lirismo do primeiro. Pelo contrário, ele escreve uma obra sobre o positivismo.

JEF – António Sérgio foi outra ilha genial…

EL – No caso de António Sérgio, ele pertencia a uma linha que, embora não seja a nossa, era um dos discursos dominantes na sua época, um discurso neokantiano em que ele se insere perfeitamente. António Sérgio está isolado aqui, mas não está isolado no contexto das nossas referências habituais, como a França ou a Inglaterra. Está apenas isolado dentro do seu país, embora com gente que dele se reclama. Só há um António Sérgio. É sempre assim em Portugal, há só um de cada espécie. Nem é como a arca de Noé...

JEF – Voltando ao seu percurso universitário, foi na universidade que desenvolveu o seu pensamento, o seu espírito crítico? Teve intervenção académica, de carácter associativo? Em que anos foi a sua formação?

EL – Entre 40 e 45.

JEF – Foi no período mais ou menos sereno do Estado Novo.

EL – Sim, mas já muito agitado. Foi durante a guerra. Uma sociedade como a nossa estava muito dividida pela guerra, pelo problema da guerra, entre os aliados e não aliados, mas, fundamentalmente, o país era militarmente pro-aliado. Em parte devido a nossa antiga ligação com a Inglaterra, a nossa relação com  a França, etc. Em Portugal, os partidários das potências do Eixo eram muito minoritários.

JEF – E na altura já germinava alguma crítica ao Estado Novo, a Salazar, ou ainda não?

EL – Nos primeiros tempos não, mas a minha geração muito cedo começou a ser uma geração de critica cultural. Mais de crítica cultural ao Estado Novo do que propriamente de critica ideológica, até porque ela não era muito fácil de fazer de uma maneira ostensiva. De maneira que toda a minha geração, a geração que se chama neorrealista, não tinha essa pretensão. Embora eu não fosse propriamente característico da corrente neorrealista, a verdade é que fui camarada e companheiro dessa geração e fiz aí amigos muito bons.

JEF – E como é que caracteriza, de forma breve, o neorrealismo?

EL – O neorrealismo – deram-lhe esse nome, que no fundo era uma máscara – era um grupo de jovens, intelectuais, toda uma geração inspirada (menos talvez, teoricamente, pelos textos) por uma visão marxista do mundo, mas principalmente por uma das grandes divisões do mundo de então, de cariz ideológico: o mundo condicionado pela Revolução Soviética e pela experiência do que se passava na Rússia, pelos admiradores da Rússia.

JEF – Tinham desse mundo uma visão encantada?

EL – Uma visão sobretudo muito abstrata, mas que tinha a função de ser uma arma contra o regime, de maneira que, mesmo as pessoas que não eram marxistas, nem de coração, nem de cultura, encontraram nessa referência uma forma de se oporem, uma arma para combater certos aspetos do regime, nomeadamente a censura. Porque a minha geração, academicamente falando, estava dividida em duas, como é costume em Portugal. Uma delas era mais tradicional, mais tradicionalista, o que, curiosamente, não significava que fosse de gente propriamente salazarista. Toda essa gente de Direita do meu tempo, académica, vinha de uma tradição mais monárquica, ou seja, o integralismo português, neonacionalismo. E essa foi uma das bases, naturalmente. Esses grupos disputavam-se academicamente.

JEF – Mas de forma serena. Era mais um debate intelectual.

EL – E havia eleições, quando nos permitiam.

JEF – Chegou a fazer parte de órgãos associativos da sociedade?

EL – Não, não, nunca fiz. Não tinha jeito para isso. Formaram-se ali figuras de referência na literatura portuguesa, na cultura portuguesa. Salgado Zenha era uma espécie de porta-voz desse tipo de oposição. Tínhamos também o Almeida Santos.

JEF – Foi seu colega?

EL – Ele era um pouco mais novo.

JEF – Mas apesar disso conviveu com ele.

EL – Convivi.

JEF – E, acabado o curso, qual foi o seu trajeto?

EL – Acabado o curso, fui convidado para ser assistente, e fui seis anos como assistente do professor Joaquim de Carvalho.

JEF – De que cadeiras?

EL – Das cadeiras que ele dava. Não só dele, mas de outros também. Era uma desertificação: só havia um assistente, e o assistente dava tudo.

JEF – Mas, por exemplo, deu História?

EL – Eu era assistente do Dr. Joaquim de Carvalho, mas não dava História, só dava Filosofia. Era assistente do Joaquim de Carvalho, também era assistente do Dr. Sílvio Lima e do Miranda Barbosa, de algum modo, mas, fundamentalmente, era assistente do Dr. Joaquim de Carvalho.

JEF – E qual foi a cadeira que mais gostou de dar?

EL – Filosofia Moderna.

— Internacionalização e consciencialização cultural —

“Acontece a partir do momento em que se sai do pais e se passa de uma cultura que funciona em certos parâmetros, que nos conhecemos, para o contacto com culturas estrangeiras, que nos permitem relativizar a nossa própria tradição, o nosso próprio passado.”

JEF – E entretanto, feitos esses seis anos, o que é que o levou a sair de Coimbra?

EL – Em vez de fazer a tese de doutoramento – que poderia ter feito e, aos 26 anos, seria um jovem doutor, e a minha vida teria sido completamente diferente, mesmo que não fizesse nada (passar os dias no café, e na conversa) –, quando chegou ao fim o prazo de seis anos – naquela altura as saídas para um curso como Histórico-Filosóficas não eram muitas, entre elas havia a carreira diplomática, por exemplo, e como tinha sido bom aluno podia ter entrado directamente–, ocorreu-me concorrer e doutorar-me no estrangeiro. E fui para fora.

JEF – E foi para onde?

EL – Fui para a Alemanha.

JEF – E para que cidade?

EL – Para Hamburgo, um ano, e depois para Heidelberg.

JEF – E porquê a Alemanha?

EL – E porquê a Alemanha? Porque ainda continuei nos Estudos Filosóficos e a Alemanha era um símbolo, era a pátria da Filosofia… De maneira que comecei assim a minha vida de leitor. Na verdade, em toda a minha vida, o que fiz foi ser leitor. Leitor no sentido prático do termo, na verdade, digamos, de vocação própria. Não fiz outra coisa na minha vida a não ser ser leitor.

JEF – E depois da Alemanha, foi para onde?

EL – Depois fui para Franca e fiz toda a minha carreira em Franca.

JEF – Em que universidade?

EL – Primeiro, como leitor do Governo português, durante três anos, em Montpellier. Depois, estive um ano no Brasil, na Bahia.

JEF – De que não gostou muito...

EL – De que não gostei assim muito. E depois voltei e fiquei como leitor do Governo francês em Grenoble, até ao famoso ano de 1968, em que a reforma permitiu que se passasse de leitor a maître-assistant maître de conference, na Universidade de Nice.

JEF – E essa diáspora, essa saída de Portugal, permitiu-lhe depois olhar para Portugal de uma forma diferente, qual estrangeirado do século XVIII.

EL – Mas nada disso aconteceu propositadamente, foi ocasional. Acontece a partir do momento em que se sai do país e se passa de uma cultura que funciona em certos parâmetros, que nos conhecemos, para o contacto com culturas estrangeiras, que nos permitem relativizar a nossa própria tradição, o nosso próprio passado.

JEF – Mas esse trajeto também lhe deu uma distância, certamente, uma posição de distanciamento, ou seja, deixou de estar aqui envolvido em questiúnculas internas, o que lhe permitiu situar-se num patamar que lhe conferiu uma autoridade que, depois, fez de si a referência que é hoje, sem dúvida.

EL – Talvez. Mas isso fez-se de uma maneira nada premeditada, salvo que isso é uma coisa que acontece a toda a gente que sai de sua terra e passa a ser ou imigrante, no sentido próprio, ou emigrado, ou expatriado.

JEF – Estrangeiro lá fora e estrangeiro cá dentro.

EL – Passa a fazer outro percurso, a ser outra coisa e a olhar o mundo de outra maneira. E, sobretudo, passa a ter um relacionamento com a pátria deixada diferente daquilo que seria, noutras circunstâncias.

JEF – Para isso, o facto de ter constituído família lá fora foi decisivo?

EL – Claro. Isso foi muito importante.

JEF – Casou-se em França?

EL – Claro, isso foi extremamente importante.

JEF – Teve depois família e filhos.

EL – Tive um filho.

— Ideias sobre o transcendente e a Cultura Ocidental —

“O homem e naturalmente religioso, mesmo o ateu, de maneira que não há resposta nenhuma, positiva, porque uma resposta em que o homem esteja implicado, naquilo que ele e como ser, não pode existir sem o mínimo de sentido na sua própria acção, o que supõe já uma forma de religiosidade, seja ela qual for.”

JEF – Mudando de assunto, se concordar, e falando de Deus, qual é o seu posicionamento? É um homem crente, ateu... Qual é o seu posicionamento perante a questão do transcendente?

EL – Nasci numa das províncias mais conservadoras do país, católica, no sentido sociológico do termo. Sou de uma família catolicíssima e, portanto, cresci impregnado de toda a cultura cristã.

JEF – E qual foi o seu trajecto religioso?

EL – Bom, como aconteceu com muita gente a partir do liberalismo, a certa altura há uma crise em relação a essa herança, em relação à prática religiosa.

JEF – Como é que aconteceu essa crise?

EL – Ela foi-se fazendo lentamente, sem nunca ter aspectos dramáticos, como os que assaltaram as primeiras gerações que se confrontaram com a “morte de Deus”. Passar de um país em que predomina um certo discurso, uma certa prática religiosa, uma certa vivência, diária, da religião católica, tal como durante séculos foi praticada, para uma interrogação, uma problematização, mesmo uma dúvida em relação a esse tipo de tradição: aconteceu-me tudo isso, realmente, ao mesmo tempo. Uma religião é insubstituível. O homem é naturalmente religioso, mesmo o ateu, de maneira que não há resposta nenhuma, positiva, porque uma resposta em que o homem esteja implicado, naquilo que ele é como ser, não pode existir sem o mínimo de sentido na sua própria acção, o que supõe já uma forma de religiosidade, seja ela qual for.

JEF – Depois deste trajecto longo, de mais de 80 anos, como é que agora olha para a questão do transcendente? Considera-se um homem de fé, um homem sem fé? Uma vez disse que era um cristão sem transcendência. Ainda se revê nessa frase?

EL – A transcendência – a palavra já o diz – é mais da ordem do enfático do que da ordem do pensável, pela própria natureza. Quer dizer, nós não podemos escapar à inscrição numa esfera qualquer, que se nos dá como transcendente, não podemos escapar-lhe, quer positiva, quer negativamente. A inscrição não tem saída para nos oferecer, positiva ou hiperpositiva: e uma espécie de aceitação de qualquer coisa que ultrapassa e ao mesmo tempo dê aquilo que nós somos como seres humanos e seres pensantes. Nós não podemos escapar a essa inscrição. O problema e de missão dessa transcendência, do conteúdo dessa transcendência. Essa é a dificuldade, esse é o dilema, esse é um processoem aberto.

JEF – Falando da Igreja, acha que a Igreja católica tem um papel a desempenhar na Europa dos nossos dias? Qual deve ser esse papel? Ela própria também tem quefazer um caminho?

EL – A história da Europa, sobretudo da Europa Moderna, e impensável sem o entrosamento interno das Igrejas (Igreja católica e Igrejas protestantes) e do destino do Cristianismo na Europa. A nossa história e diferente de todas as outras histórias devido a esse entrosamento. Só aqui e que esse entrosamento e, por assim dizer, histórico-ontológico. Todos os continentes são diferentes por causa disso. Aqui na Europa há uma discussão contínua do seu devir. E o único continente onde a figura de Deus, a ideia de Deus, a imagem de Deus, é discutida, como em nenhum outro. Nos outros continentes é aceite, é um dado, na Europa não. Desde o princípio que a teologia é uma discussão permanente da ideia de transcendência, coisa que não é discutida por outras religiões, porque é um dado. O Islão não discute. Deus é uma evidencia como o céu azul ou a natureza. Na cultura europeia não há naturalização de Deus. Não sei se éuma graça ou uma maldição, mas é assim.

JEF – Então, Deus é estrangeiro à cultura da Europa, é transcendente?

EL – Ela não pode ser pensada sem essa discussão da ideia de transcendência.

JEF – E que significa cado pode ter para a cultura europeia o facto de ter tido matricialmente essa discussão no quadro da construção do seu pensamento? Qual é a importância de se continuar essa discussão?

EL – Sem essa discussão, estava condenada, como todas as outras, a um destino mais ou menos “totalitário”. Aquela espécie de crise, que poderia ter sido a última, que foi a crise do seculo XX, a crise da democracia e a perspetiva de a Europa entrar, no seu conjunto, numa forma histórica que conhecemos como totalitarismo, foi uma ameaça não só para a Europa, mas para o mundo inteiro. Os europeus, pela força das coisas, deram-se conta de que ou mudavam de caminho, ou a Europa desaparecia. Foi então que nos propusemos construir uma nova Europa, a que hoje damos o nome de União Europeia. As raízes políticas dessa Europa residem na iniciativa de três nações, e dessas três nações saiu a primeira versão, que se chamava, jornalisticamente, Europa Vaticana, o chamado Tratado de Roma. Não é a Roma de Cesar, e a Roma do Império e a Roma Católica. Nestes 40 anos, essa origem política, primeiro da CEE, depois da União Europeia, foi-se apagando para que triunfasse uma outra ideia da Europa, de modelo laico.

JEF – Podemos dizer que esteve na base desse projeto matricial da União Europeia o modelo da cristandade católica medieval, de direção papal, decalcada agora de forma laica com a nostalgia daquela autoridade gestora supranacional?

EL – Uma das coisas mais lamentáveis, do meu ponto de vista, é a confusão em torno da ideia de “laico”, e a Igreja é muito culpada disso. Não porque ela não saiba o que é o laico, pois foi ela que criou essa designação, mas porque o laico hoje é como se fosse uma invenção da modernidade propriamente dita, da modernidade revolucionária, a partir da Revolução Francesa, mas não é. A raiz do laicismo é o Evangelho.

JEF – A encarnação do próprio Cristo, a ideia de laicização de Deus...

EL – Não e só por isso. E por ser a primeira relativização do poder. E a única religião que separa efetivamente o reino de Deus do reino do Poder. Isso é que éo laicismo, separar uma coisa da outra. Se o laicismo se converte numa doutrina ortodoxa, num outro tipo de ortodoxia de ordem política, que seja discurso do Poder, então ele está duplamente a contradizer-se a si próprio. Portanto, esta oposição entre laicismo e religião não tem razão de ser. Nas outras religiões não há problema nenhum, porque não tem ideia do que é o laicismo. O laicismo é uma ideia cristã.

JEF – Acha que a Igreja também tem um caminho a percorrer no sentido de regressar às origens?

EL – A Igreja esta no mundo, a Igreja esta no tempo. Não só oferece a cruz aos outros; ela tem a sua própria cruz.

JEF – E a sua maior cruz é a sua própria contradição interna...

EL – …que a faz viver. E um sinal de contradição, mas um sinal de contradição não é uma coisa negativa, e uma coisa positiva, no mesmo sentido em que Hegel diz que a negatividade move o mundo. No caso da Igreja, a sua cruz verdadeira não e só a de resgatar o mundo, mas de se questionar a si mesma.

— Estado Novo e Revolução —

“O último esforço do império, deste império, que tinha sido um império a sério há muitos seculos, e que, depois de uma segunda fase no século XIX, era-o essencialmente por uma questão de posse, funcionando comoum subimperialismo dos grandes imperialismos inglês e francês.”

JEF – Entretanto, surge a crise do Estado Novo, que se intensifica cá a partir dos anos 60. Qual e como foi a sua relação com o regime, a sua relação crítica? Esteve sempre ligado aos sectores da oposição. Teve problemas com o regime?

EL – A partir do momento em que o regime começou a ter uma contestação pública, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, fundamentalmente por ocasião das eleições, passou a haver um período de um mês em que o país se punha a discutir política em termos partidários, o que não era praticável antes. E, portanto, acompanhei esses acontecimentos, que eram importantes para o destino político deste país, mas lá de longe. Nunca estive cá nas ocasiões em que se deram esses votos importantes, como na campanha do Norton de Matos, por exemplo. Depois fui muito sensível: percebi que esse momento tinha sido muito importante, porque pela primeira vez o regime oscilava e perdia alguns dos apoios tradicionais que justificavam a sua vigência política e ideológica. Na famosa campanha do general Delgado, percebeu-se que pela primeira vez o regime estremecia de dentro, não tanto pela pressão que se fazia de fora – a força que tinha já a oposição –, mas porque esse senhor vinha de dentro.

JEF – Uma primeira implosão.

EL – Não só vinha de dentro, mas era militar, e um militar altamente graduado. Isso dividia de algum modo e punha problemas ao exército, que era um dos sustentáculo do regime, primeiro, e depois, do Estado. Era a defesa, a guarda pretoriana do regime. E, de facto, por essa ocasião, a própria Igreja, com alguma distância em relação ao regime, nesse momento, estremeceu, ao ponto de Salazar, num célebre discurso, referir (invocar quase) a figura de traição dos seus.

JEF – E, depois, como é que viveria a experiência do 25 de Abril?

EL – Fui muito sensível, nessa altura já acompanhando naturalmente a política mundial, nos jornais. Um dos acontecimentos mais importantes do século XX foi a famosa descolonização, que começa nos finais dos anos 40 e faz com que a Europa seja obrigada, pouco a pouco, a abandonar o poder histórico sobre os grandes territórios colonizados, uns atrás dos outros. Percebi que Portugal (percebi isso logo quando estive no Brasil, em 1958) não ia escapar a essa onda de descolonização e que se iria criar uma cegueira no regime –não digo de toda a gente, mas muitos tinham a ilusão de que iríamos guardar Angola e Moçambique, o que me parecia pouco provável. E realmente em 1961 começa a rebelião africana, que foi, apesar de tudo, extraordinária; as pessoas não pensam que esses 13 anos de guerra em Africa, para um país tão pequeno como Portugal, foram um super-Vietname. O esforço que Portugal empregou naquela guerra é inacreditável. Fomos combater com um esforço maior do que o empregado pela América no Vietname!

JEF – Tínhamos vários campos de batalha, vários cenários de guerra, vários países…

EL – A quantidade de gente que foi mobilizada em termos humanos! Aquilo foi fantástico. Mas tudo fora da visibilidade do olhar europeu. Na imprensa internacional iam saindo notícias, porque era impossível escapar a isso, mas aqui, na imprensa nacional, não havia nada, só havia o jornal clandestino. De maneira que essa guerra foi uma espécie de guerra escondida, escondida dos próprios olhos do regime. Não era uma guerra. Era uma rebelião de uns terroristas que andavam por ali, mas guerra não era. Se fosse guerra, tinha-se tomado um outro dispositivo qualquer, e tinham-se encontrado todos os meios políticos para solucionar o problema. Mas aquilo era um fait divers

JEF – Era apresentado como tal.

EL – Claro. O resultado foi que depois se bateu no muro, até que, por diversas circunstâncias de ordem internacional, tudo acabou por desabar. Um país tão pequenino quanto Portugal não podia aguentar... Mas o esforço que fez Portugal nessa altura foi muito baroud d’honneur, como dizem os franceses. O último esforço do império, deste império, que tinha sido um império a sério há muitos seculos, e que, depois de uma segunda fase no século XIX, era-o essencialmente por uma questão de posse, funcionando como um subimperialismo dos grandes imperialismos inglês e francês. Portugal empregou sempre forças  que não tinha.

JEF – Situemo-nos agora no 25 de Abril, no processo de transição para a democracia, na Revolução Abrilina. Como é que olha, como é que viveu esse acontecimento, e qual foi o papel do professor Eduardo Lourenço na construção da democracia?

EL – Vivi realmente com muita intensidade e com muita paixão. Já tinha vivido o Maio de 68 em Franca, mas o Maio de 68 em Franca foi sobretudo folclore estudantil. Estava-se ali a disputar duas Francas possíveis...

JEF – Qual é a memória que tem do Maio de 68? Acha que foi mitifica cado também?

EL – Sim. O Maio de 68 faz parte de um contexto mais genérico, faz parte da América, das universidades americanas, e chega aqui. Tudo começou vindo da América. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, todo o tipo de movimento, entre outros, a música, a moda, começa a ser recebido dos Estados Unidos ou, ocasionalmente, de Inglaterra. Do ponto de vista dos movimentos com impacto de ordem social ou com pretensões a mudanças profundas na sociedade, tudo começa na América, mas o Maio de 68 foi muito mais radical do ponto de vista teórico, porque estamos numa Europa dividida, efectivamente, entre uma referência ocidentalizante, ocidental, tutelada pela América, e o Bloco de Leste, que estava do outro lado. Portanto, foi a tentativa de fazer uma revolução aqui, na parte do Oeste, no tempo em que as revoluções já não eram possíveis. Mas ao mesmo tempo foi uma coisa real, porque teve muita importância do ponto de vista social, de costumes, de mudanças de paradigmas, de comportamentos, etc. Mas, politicamente, já era algo virtual, uma espécie de mise em scène, que só foi possível pela tolerância imensa, que é natural numa democracia consolidada. Se tivessem de resolver aquilo à força, resolviam-no em 24 horas, como o general De Gaulle fez, quando, a sério, acabou com o Maio de 68.

JEF – Mas teve infle Lência talvez o significa cado do gesto da revolução.

EL – Não, em Maio de 1968, esta França já não era a Franca do século XIX. Ela era América, sobretudo no plano cultural e no espaço ideológico de onde saiam as ideias revolucionárias, que se propagavam como se propaga o fogo. A França já não tinha esse poder. Mas apesar de tudo, houve vários países que ouviram essa lição. Sobretudo essa revolução de Maio de 1968 foi uma revolução de toda uma geração, uma nova geração, de um novo comportamento a todos os níveis, desde o nível político, ideológico… Ideológico, mas muito paradoxal. A Franca  era contra o gaullismo, mas era menos contra o gaullismo do que contraa grande hegemonia cultural e ideológica tecida pelo Partido Comunista, e o Partido Comunista percebeu muito bem que, em vários sentidos, era contra ele.

JEF – Era contra o Partido Comunista?

EL – Claro, naturalmente, e eles perceberam-no muito bem. E quando o Partido

Comunista retirou o seu apoio – eles tinham entrado naquela onda que pensavam ser a de uma nova onda popular, da qual julgavam que iria sair uma revolução, uma nova revolução bolchevique ou coisa parecida –, quando percebeu que aqueles sujeitos não eram ortodoxos, não eram estalonai-nos, mas eram maoistas, todo um grupo que apareceu em Portugal depois, em 1975, o partido tirou-lhe o tapete e De Gaulle esmagou rapidamente, em 24 horas, a revolução.

JEF – Então considera que, em 1974, a revolução abrilina portuguesa foi uma espécie de Maio de 68 português?

EL – Não, essas coisas em Portugal são sempre diferentes, como nunca são iguais em parte nenhuma. A Revolução de Abril não tem leitura sem a guerra de África: ela é filha da guerra de África, e também da ordem interna, uma vez que realmente o 25 de Abril existiu. Depois, o que se passou aqui, durante os primeiros seis anos a seguir ao 25 de Abril, não tem compreensão nenhuma sem o papel importantíssimo desempenhado pelo exército. Mas como o exército, foi fielmente, não quis assumir diretamente, numa primeira instância, o poder, a maneira sul-americana ou a maneira nasseriana, a sociedade civil entrou no processo, e dividiu-se, mas só pode fazer o que fez em função das forças que lhe garantiam, no espaço militar, decidir sobre as questões realmente importantes, que foi o que aconteceu.

JEF – Mas qual é o seu papel na construção da democracia? O professor é uma espécie de pedagogo da democracia portuguesa, em grande medida. Mário Soares é uma espécie de pai da democracia, do ponto de vista político; o senhor professor é o mesmo do ponto de vista cultural, pelo menos um psicanalista, um analista.

EL – Qual era o problema, aqui, naquela altura? Provavelmente era uma ficção da nossa parte, uma utopia. O problema, o que era? Para uma certa intelligentsia portuguesa, a seguir a 1974, o problema era saber se o país ia ou não para um regime de tipo democracia, democracia popular, da qual conhecemos exemplos na Europa do Leste, no fundo, uma democracia marchante, ou marxista. O exemplo mais famoso era o exemplo de Cuba: Portugal iria transformar-se numa espécie de Cuba. Penso que nem toda a gente teve essa perceção, mas de facto era isso que estava em causa.

JEF – O surgir de um novo totalitarismo de sinal contrário?

EL – Os que não eram de Esquerda opuseram-se, naturalmente, a essa tentativa virtual de que nos caminhássemos para um regime, digamos, tutelado aqui pelo Partido Comunista Português, que era pequeno mas era muito importante. As pessoas arrumaram-se aqui fundamentalmente entre pró-Cunhal e contra-Cunhal. No fundo, quem impediu a possibilidade de essa tentativa resultar foi ainda o salazarismo, foi o antigo regime, com todas as forças que se alinharam depois, a Igreja, porque o país estava maioritariamente desse lado, e o Partido Socialista colocou-se no meio-termo. Da primeira vez que fui ao Partido Socialista, a primeira coisa que vi foi um cartaz famoso de Marx. Era simultaneamente um Partido Socialista e um Partido Marxista, e, se não tivesse funcionado assim, oPartido Comunista tinha aglomerado toda a força revolucionária à sua volta.

JEF – Foi uma estratégia. Mas aí o Partido Socialista tem o papel de equilíbrio...

EL – Sim, mas o Partido Socialista só pode fazer isso, porque as forças do Portugal profundo já estavam, numa primeira fase, todas a favor dessa resistência e esconderam-se, numa primeira fase, atrás de Mário Soares. E Mário Soares escondeu-se atras das forcas importantes que podiam resistir, numa altura em que se falou, aqui, da eventualidade de que pudesse haver uma espécie de guerra civil – rápida, dado que Portugal não se presta a guerras civis muito prolongadas –, mas de retirada lá para cima, com a protecção do arcebispo de Braga, e de outros bispos, etc. Quer dizer, sairia uma parte do Norte contra o Sul. Essa hipótese chegou realmente a ser formulada. Mas, na verdade, foi este Portugal profundo que nós conhecemos… Entretanto, as coisas ocorreram exatamente como ninguém podia perceber. O país foi-se modificando. Este regime no início teve algumas resistências, mas depois as pessoas aceitaram. Enfim, a novidade em todo o mundo era a perspetiva democrática, e era preciso jogar esse jogo democrático, se não, não se chegaria a lado nenhum.

JEF – E nesse momento crucial, em que o país estava à beira de uma fratura conflituosa, quem é que acha que teve um papel decisivo para que isto não descambasse para um banho de sangue?

EL – Como lhe disse, realmente, as coisas decisivas passaram-se no interior e no espaço militar. Mas, no mundo militar, esses militares também só puderam ter esse papel porque uma parte da sociedade civil se tinha mobilizado em função dessas forças – o Partido Socialista e, sobretudo, Mário Soares, uma figura capital nesse capítulo. Mas, não menos capital foi uma figura como Melo Antunes – absolutamente capital. Ele era de Esquerda, tinha uma sensibilidade de Esquerda, mas quando chegou o momento decisivo, Melo Antunes, que tinha  o apoio da política internacional e conhecia realmente o mundo, escolheu, de facto, ficar do lado da democracia, mesmo que de modo formal, e isso foi absolutamente decisivo.

JEF – E como é que avalia o papel da Igreja nesse contexto?

EL – O papel da Igreja foi muito ambíguo, mas ficou à espera, ficou à espera… Ficou expectante, mas o eleitorado de raiz católica não é uniforme, e diversificado, de acordo com as clivagens sociais do país. Progressistas, conservadores, e outros coisa nenhuma, pouco importa, políticos, etc. Mas não era aí que seria natural encontrar grandes aliados numa tentativa de maximização deste país, porque não era essa a doutrina da Igreja. Agora, em relação aos intelectuais, aí e que a divisão foi interessante. Uma maioria, numa primeira fase, de grandes entusiastas – aí o PC cresceu –, vendiam o Marx nas ruas, os comunistas passaram do oito para o oitenta na proibição, porque era uma coisa nova. Mas desde cedo houve uma grande divisão. E uma coisa que me pareceu muito importante, e não tem sido suficientemente sublinhada, foi o papel do Jornal Novo, dirigido pelo Artur Portela, no qual colaborei, com o José Sasportes e outros. Tínhamos duas tribunas: tínhamos uma parte do Expresso, que foi uma tribuna muito resistente a uma tentativa de maximização, e depois o Jornal Novo, que, de facto, foi fundado um pouco para apoiar os militares.

JEF – E como é que hoje, a quase 40 anos de distância, avalia a deriva do regime democrático? Houve uma consolidação?

EL – O regime democrático, no sentido formal, está consolidado. É consensual, inclusive para o Partido Comunista. Nem há sequer essas franjas mínimas que querem ser radicais, como há noutros países. Como se diz, é como se tivéssemos vivido sempre em democracia. Quer dizer: Portugal é assim, muda e acabou-se. O tempo presente passa a ser o tempo imemorial.

(continua)

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...