Julgo que conheci Alexandre
Quintanilha em 2002, quando o convidei para proferir uma lição plenária na
Conferência “Fronteiras da Ciência”, que se realizou na Universidade de Coimbra nesse ano, para comemorar os 30 anos da Faculdade de Ciências e Tecnologia daquela
Universidade. O nome dele já era famoso na altura e confesso que foi com
bastante reverência e até com o receio de uma recusa que lhe telefonei para o
Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), na Universidade do Porto,
onde ele trabalhava, a insistir no convite. Afinal foi fácil porque o
Alexandre, como o passei a tratar em vez do inicial Senhor Professor
Quintanilha, é uma pessoa, que, para além de informal, é extremamente amável e
generosa. Falou perante uma plateia multidisciplinar, de um modo assaz
compreensível, sobre o “stress dos organismos vivos”, um tema no qual ele tinha
trabalhado. Ainda me lembro de alguns pontos da sua palestra não só porque ele
falava com graça - apresentou-se como “físico”, acrescentando logo que “ninguém
é perfeito”, frase que, confesso, já lhe tenho tomado de empréstimo - , mas
também porque editei o seu texto, a partir da gravação áudio. Foi publicado em
2003 na colecção “Ciência Aberta” da Gradiva. O único defeito que conheço ao
Alexandre é que ele não gosta muito de escrever. Fala muito bem, dá excelentes
entrevistas, mas são raros os escritos dele.
Parte da reverência que tinha para
com o Professor Quintanilha devia-se à fama do pai, o Professor Doutor Aurélio Quintanilha,
uma lenda em Coimbra, por ter sido afastado da universidade no tempo de Salazar,
o que obrigou a voltar para o estrangeiro (onde já tinha estadio; conheceu a
mãe do Alexandre, uma senhora alemã, em Berlim) mas também a fixar-se, no fim da guerra, em
Lourenço Marques, actual Maputo, de onde só regressou após o 25 de Abril para
proferir a última lição. Foi em Lourenço Marques que o Alexandre nasceu. Lembro-me
de uma entrevista que Quintanilha pai deu à ”Vida Mundial” por altura das
eleições de 1969 que mereceu honras de capa (eu era miúdo, mas já gostava de
ler revistas).
Depois esse primeiro encontro em
Coimbra, encontrei o Alexandre várias vezes, em parte por causa da associação
dele à Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica,
um projecto que ambos sempre defendemos. Lembro-me de um debate que tive com
ele e outras pessoas sobre ciência e religião no Pavilhão do Conhecimento –
Ciência Viva, em Lisboa. Ele tinha as ideias perfeitamente arrumadas sobre o
assunto, eu na altura nem por isso: o Alexandre disse que, quando havia algo
misterioso na Antiguidade ou na Idade Média, dizia-se que eram os deuses ou Deus,
mas, a partir da Revolução Científica, quando surgiu um método para conhecer os
mistérios do mundo, Deus foi sendo arredado. Pôs-me a pensar, o que é inevitável
quando estamos perto do Alexandre: ainda hoje não tenho a certeza de que o
avanço da ciência tenha correspondido a um retrocesso da religião, acho que as
duas estão destinadas a conviver uma com a outra.
Lembro-me de, noutra ocasião, ter ido aos
Açores com ele para participarmos num encontro de cultura científica. Pude então
verificar a sua curiosidade infinita – de resto os cientistas que conheço são grandes
curiosos – em saber mais sobre os sítios por onde tinha andado o seu pai, que é
açoriano.
Estive com o Alexandre várias vezes ao lado de
José Mariano Gago, na luta em defesa da ciência, quer quando Gago estava no governo
como ministro quer quando estava na oposição (por exemplo, quando o governo de
Passos Coelho ensaiou uma tenebrosa manobra de “avaliação” da ciência nacional).
Sempre o vi como um homem de fortes convicções, não só a respeito do valor da
ciência como de valores humanos e sociais.
O Alexandre é detentor de uma
enorme bagagem científica – começada a adquirir no liceu em Lourenço Marques,
continuada na Universidade em Witweatersrand, na África do Sul, e prosseguida depois na Universidade da Califórnia – Berkeley: da África do Sul para os
Estados Unidos deu um grande salto da física para a biologia, tendo-se a seguir interessado por questões ambientais. Não tem apenas ciência, tem consciência. É
uma pessoa íntegra, com uma enorme honestidade intelectual. Lembro-me que um dia,
na sede da Sociedade Portuguesa de Física em Lisboa, tivemos um desentendimento
por qualquer ninharia - não me lembro já o quê – tendo eu saído da sala com a
impetuosidade da juventude. Ele foi logo lesto reconciliar-se comigo.
Quintanilha, não gostando de
escrever, gosta de falar para as pessoas apresentando e discutindo temas de
ciência, ou, melhor, de ciência e sociedade. Ultimamente tem andado inquieto
com o tema do “human enhancement”, expressão de difícil tradução para português,
talvez “aperfeiçoamento humano”. Já veio falar, com a sala esgotada, ao Rómulo -
Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que dirijo. E inquietou-nos a
todos com as questões colocadas. A ética preocupa-o: o que devemos fazer com o
nosso saber?
Foi com alguma surpresa que um
dia, quando coincidimos estar numa sessão de formação de professores em Sobral
de Monte Agraço, nos arredores de Lisboa, ele me confidenciou que tinha sido
convidado para a politica. Mais tarde soube pelos jornais que o convite era para
encabeçar a lista do PS no Porto. Foi
eleito, embora merecesse mais votos do que os que teve - eu disse-lhe na altura
que, se concorresse em Coimbra, votaria
nele com todo o gosto, mas sem ele já tinha mais dificuldade. Os ecos que me têm
chegado das suas intervenções na Assembleia da República, onde preside à
Comissão de Educação e Ciência, permitem-me concluir que a ciência chegou finalmente
ao Parlamento português. O Alexandre após uma vida no estrangeiro dedicada
à formação e de uma vida no Porto dedicada ao desenvolvimento do IBMC, tem
agora uma terceira vida, já jubilado, como político. Desejo-lhe a maior das
sortes na sua nova tarefa, até porque a sorte dele será também a sorte da
ciência em Portugal. Muito há ainda a fazer pela ciência entre nós e estou
certo que o Alexandre continuará a dar o melhor de si próprio com esse
objectivo. Ele pertence à plêiade de cientistas (destaco José Mariano Gago e
João Lobo Antunes em Lisboa, Maria de Sousa e Manuel Sobrinho Simões em Lisboa
e Arsélio Pato de Carvalho em Coimbra) que operaram em poucos anos um extraordinário
crescimento da ciência em Portugal. Estão a deixar um Portugal melhor do que
aquele que receberam. Estamos-lhes gratos.
1 comentário:
Gostei muito do seu texto sobre o Alexandre, um colega de grande talento que conheço bem. No entanto, no final, quando menciona várias pessoas com contributos decisivos para o avanço da ciência nos anos 70/80 penso que deveria ter adicionado o nome do António Xavier, a quem muito deve a ciência em Portugal e que tanto lutou para criar condições que permitissem aos investigadores portugueses realizar ciência de excelência em Portugal.É verdade que infelizmente desapareceu prematuramente em 2006, mas a sua obra merece o nosso reconhecimento.
Helena Santos
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