O silêncio pode, então, ser o único modo de estar com quem precisa de ter alguém por perto.
Por isso, é muito difícil perceber que um jornalista - cuja profissão é regulada por princípios éticos - pergunte a pessoas que acabaram de perder, numa tragédia que não podemos sequer imaginar, filhos, pais, vizinhos, amigos, o que aconteceu, o que sentem, o que pensam fazer no futuro...
António Guerreiro, num artigo de opinião intitulado As vítimas dos incêndios e da televisão, saído ontem no Público online, faz uma análise profunda daquilo que está em causa sobretudo na televisão.
Destaco, desse artigo, as seguintes passagens, ainda que eles percam algum sentido separados do todo.
Face à falta de meios linguísticos (e de tempo para qualquer elaboração mais cuidada) e porque a televisão pratica quase como ideologia jornalística um realismo ingénuo que acaba por nunca produzir o desejado efeito de real, os repórteres ou debitam lugares-comuns que não têm nem valor expressivo nem descritivo, ou recorrem aos testemunhos. Põe-se um microfone e uma câmara diante de pessoas em estado de choque e pede-se-lhes que elas testemunhem, que elas descrevam, que elas superem a afasia em que a situação as colocou. A violência é inominável e a televisão torna-se patética, no duplo sentido da palavra: porque quer mostrar o pathos, dê por onde der; porque exibe a estupidez na mais elevada expressão.
Devemos novamente perguntar: a que coerção estão submetidos os jornalistas para que aceitem o papel de idiotas? Ou fazem-no voluntariamente? Os jornalistas tornam-se então indivíduos ávidos, paranóicos, como os amantes que não se satisfazem com um simples “amo-te”. Desconfiados com a declaração tão lacónica, achando que o amor é uma imensidão que precisa de se dizer com mais palavras, perguntam: “Amas-me como?” E o outro responde: “Amo-te como se fosses o mais doce dos frutos.” E aí começa um encadeamento de metáforas cristalizadas, de estereótipos.
Assim são os jornalistas munidos de microfones e de câmaras: não desistem de querer extorquir as palavras e a alma aos seus interlocutores; não deixam de querer arrancar testemunhos a gente moribunda ou a viver a experiência dos limites. Esta maquinaria é totalitária, expansiva, reduz tudo a uma peça integrada. Este jornalismo é um aparelho ao serviço da lógica da “partilha” da comunicação, da informação e da opinião da nossa época. A utilização dos drones realiza na perfeição esta atitude predadora de quem se acha munido do olho de Deus: o olho que abarca, na vertical, a totalidade do mundo. Era fatal que a televisão viesse a pôr ao seu serviço o drone de omnivisão, dotado de uma vista sinóptica, capaz de uma vigilância de largo alcance, “wide area surveillance”, como se diz na linguagem da guerra.
3 comentários:
É efetivamente uma atitude predadora, ignóbil, revoltante...
Ab
Regina Gouveia
Artigo excelente.
Adoram, riem-se, falam sem parar, usam todos os adjectivos do vocabulário de catástrofe, mais o rasto de destruição, os cameramen em delírio a procurar o ângulo mais chocante que lhes dê prémio, o depoimento mais lancinante que seja requisitado por todo mundo mediático. bem lembrada, a citação do "Apocalipse now"; mas convém não esquecer o delírio com as torres gémeas, vimos os aviões chocar e as pessoas a cair milhares de vezes, e aquela ideia de quão genial e criativo tinha sido o planeamento e execução, uma "obra de arte". Não me digam que os media "respondem a gostos e solicitações"; não: com todo o seu imenso poder, fabricam gostos e valores, e é o que se vê com os drones.
Estou todo a favor de proibições; é obrigatório proibir quando se trata de saúde pública, saúde mental neste caso.
Certas reportagens são duma violência inaudita na ganância de mostrar o directo. Esses jornalistas agarram-se como gato a bofe ao entrevistado procurando sacar material para a pantalha. Parecem gente acéfala ignorando a consequência dos seus actos. Basta de jornalismo deste!
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