domingo, 27 de dezembro de 2015

HISTÓRIA DE UM LABORATÓRIO DO ESTADO


Minha recensão publicada na última Gazeta de Física  (vol. 38, n.º 2):

A energia nuclear tem hoje má fama em Portugal como noutros sítios. Mas, na sequência da iniciativa Átomos para a Paz de Eisenhower, ela foi desde os anos 50 até aos anos 80 considerada em Portugal uma opção energética possível. Foi planeado e construído – de facto, continua hoje activo – um reactor nuclear em Sacavém. A decisão de construir a instituição que o enquadrou, o Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN) foi tomada por Salazar em 1955 com base numa proposta da Junta de Energia Nuclear criada um ano antes. O início legal do Laboratório ocorreu em 1959, embora só em 1961 o reactor tenha entrado em funcionamento. O fim inglório da instituição como organismo estatal ocorreu em 2012, quando Passos Coelho decidiu extinguir o então chamado Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN), um dos nove Laboratórios do Estado existentes no nosso país, tendo transferido as suas funções para o Instituto Superior Técnico.

De 1959 até à 2012, o Laboratório teve uma vida bastante atribulada. O físico nuclear Jaime da Costa Oliveira, que nele fez a sua carreira científica e que por isso o conhece bem, apresenta-nos no livro Memórias para a História de um Laboratório  do Estado[1] um resumo muito cuidadoso do percurso desse laboratório no seu pouco mais de meio século de existência. Identificou cinco crises, algumas demoradas: a crise de 1962-63, a crise de 1973-1978, a crise de 1992-1994, a crise de 2000-2005 e a crise de 2009-2011. Isto é, houve um total de quase 16 anos de crise em 53 anos de vida institucional. Entre esses períodos de crise o autor identificou cinco tempos de mutação: 1968, 1979, 1985, 1995 e 2007. A vida do Laboratório decorreu, portanto, num sobressalto permanente, entre crises e mutações, agravando-se no regime democrático com a continuada indefinição de objectivos. De facto, o secretário de Estado Carlos Pimenta anunciou em 1987 o abandono da opção nuclear (o desastre de Chernobyl tinha sido em 1986), uma decisão que terá contribuído para a maioria absoluta de Cavaco Silva nesse mesmo ano. Se a primeira crise, no início dos anos 60, correspondeu a uma mudança de planos no aproveitamento do urânio da Urgeiriça e à falta de meios para incrementar a infra-estrutura de Sacavém (viviam-se, recorde-se, os primeiros anos da guerra colonial), a crise de 1973 consistiu na despromoção do Laboratório, iniciada antes do 25 de Abril de 1974 mas agravada com as confusões do PREC (o presidente da Junta de Energia Nuclear entre 1973 e 1974 foi o general Kaúlza de Arriaga,  vindo de Moçambique, que já antes tinha desempenhado essas funções). Em 1979 parte do Laboratório foi integrado no LNETI – Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial –, para cuja direcção foi nesse ano nomeado Veiga Simão, um físico nuclear. A crise de 1992 ocorreu após o LNETI ter passado a INETI (Instituto em vez de Laboratório, mais um passo de uma dança de nomes que abunda nesta história). Mas a nova orgânica deixou de lado a instalação de Sacavém, denominada Instituto de Ciências e Engenharia  Nucleares (ICEN) desde 1985. Em 1995 Mariano Gago, à frente do novo Ministério da Ciência e da Tecnologia, tentou animar o Laboratório de Sacavém, que tinha desde há pouco o nome de ITN. A partir de 2000 e durante cinco anos ocorreu nova crise relacionada com o mau relacionamento entre a direcção e investigadores, que falavam de indefinição quanto ao rumo. Em 2007 o ITN transformou-se em Instituto Público, mas, a partir de 2009, com o deflagrar da crise económica na Europa e em Portugal, os recursos para a ciência ficaram progressivamente mais escassos. Finalmente, em 2011, o governo de Passos Coelho, sem qualquer estudo prévio, matou de “morte macaca” uma instituição que, apesar das sucessivas indecisões governamentais, tinha procurado cumprir o objectivo de formar investigadores, criar ciência, desenvolver técnicas e cuidar, nomeadamente, dos aspectos de segurança nuclear e protecção contra radiações. E cumpriu-os, com os escassos meios que sempre teve:  uma exibição das suas capacidades foi a missão do ITN em 2001 no Kosovo e na Bósnia para analisar vestígios de urânio empobrecido. De facto, conclui Jaime Oliveira, com a transferência das atribuições do ITN para a Universidade Técnica de Lisboa (hoje, Universidade de Lisboa) não ficou “salvaguardado, claramente, o princípio geral de independência e responsabilidade directa do Estado, em particular no exercício das suas funções regulatórias nos domínios da segurança nuclear e da protecção contra radiações”. Julgo que tem razão. O ministro Nuno Crato pouco percebia da “poda”. Podou só por podar. E à semelhança do que fez com o ITN podou, mais tarde, numerosos centros de investigação sem uma avaliação séria.

O livro de Jaime Oliveira, na sequência de outros que escreveu sobre a física e a engenharia nucleares em Portugal, está muito bem documentado. Merece felicitações pelo trabalho de recolha de dados, legislação e depoimentos, com base no qual emite um parecer final. Estamos em presença de uma análise precisa, efectuada com raios gama se me é permitida uma metáfora de base científica. Este livro conjuntamente com o sítio www.itn.pt/memoria/ em que ele colaborou contam a história do nascimento, vida e morte de um Laboratório de do Estado. Para além da posição do autor, um insider, importam sobremaneira os depoimentos inéditos de 17 personalidades que de uma forma ou de outra supervisionaram a actividade de Sacavém (na lista incluem-se José Veiga Simão, Luís Mira Amaral, José Mariano Gago, Pedro Lynce, Pedro de Sampaio Nunes e Ricardo Bayão Horta). Percebe-se que muitas vezes não houve dinheiro, mas na maior parte das vezes o problema foi outro e bem mais grave: a falta de pensamento estratégico e a falta de decisão política atempada. A energia nuclear não conheceu ventos favoráveis em Portugal, ao contrário de outros países europeus, mas, sendo Portugal um país com potencial uranífero e com níveis de radioactividade não desprezáveis em partes largas do seu território, poder-se-ia ter alimentado com mais vigor a nossa capacidade científico-técnica nesse domínio. A ciência e a engenharia nucleares estão longe de se resumirem à opção energética e, ao não apostarmos, sem descontinuidades, na investigação do núcleo atómico, limitámos a nossa capacidade nacional em áreas que vão da protecção relativamente a radiações até ao uso das radiações na saúde.

Jaime da Costa Oliveira sabe do que fala. Licenciado em Ciências Físico-Químicas  pela Universidade de Lisboa, doutorou-se em Física Nuclear em Paris no ano de 1969. Foi durante 25 anos Investigador-Coordenador do ITN e instituições anteriores, tendo desempenhado funções directivas durante vários anos. Coordenou o Livro Branco sobre Centrais Nucleares de 1977 e foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Física, que é contemporânea da Revolução de 1974. Publicou numerosos trabalhos sobre reactores nucleares e política energética e 14 livros, entre os quais A Energia Nuclear – Bases para uma opção (Sá da Costa, 1977), Energia Nuclear – Mitos e Realidades (O Mirante, 2000, com Eduardo Martinho) e O Reactor Nuclear Português – Fonte de Conhecimento (O Mirante, 2005). Com mais este livro deixa um legado valioso aos historiadores de ciência. Eles, com mais distância, não deixarão de dissecar uma das instituições mais marcantes da nossa história científica recente.




[1]  Jaime da Costa Oliveira, Memórias para a  História de um Laboratório do Estado, O Mirante Editora, 2013.

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