Quem prestar atenção às (montanhas de) orientações curriculares europeias e nacionais para aquilo que se designa "Educação para a cidadania" poderá, penso eu, ficar com uma de duas impressões:
Poderá ficar com a impressão de que a próxima geração (seja lá isso o que for) vai ser a-geração-mais-que-perfeita porque nos doze ou quinze anos (se contarmos a educação pré-escolar) em que esteve na escola desenvolveu a literacia rodoviária, financeira, sexual, afectiva, emocional, social, tecnológica, digital, para os media, para a saúde, para a igualdade de género e todas as outras deste sector, para a integração e inclusão, para o risco e para o perigo, para o crescimento sustentável, para o ambiente, para o empreendedorismo, para a segurança, defesa e paz, para o sono, para o stress, para a felicidade, para o envelhecimento... para mais umas dúzias de coisas... e, até, para a morte.
Essa geração, evitará as mais diversas doenças associadas a "estilos de vida" duvidosos, não comerá nem beberá a mais ou a menos, terá sempre em mente a "roda dos alimentos", não fumará e afastar-se-á dos estupefacientes, terá uma vida sexual repleta de afectos, conhecerá os mais diversos meios anticonceptivos e evitará ter filhos que não sejam rigorosamente planeados, exercerá uma parentalidade consciente, pugnará por uma higiene escrupulosa, saberá como funcionam os bancos e fará poupanças que aplicará da forma mais rentável possível, terá um espírito inventivo, combativo, entusiasta e competitivo, divertir-se-á na conta certa e descansará da mesma maneira, exercitará o corpo como é devido e terá o peso da tabela, não discriminará ninguém, será tolerante perante tudo e todos, aceitar-se-á como é e aceitará os outros, separará todo o lixo e ajudará a reflorestar o parque mais próximo da sua casa, controlará a ira e outros sentimentos bastardos, fará ioga e mindfulness, encarará os incidentes e acidentes com racionalidade, assumirá, de forma activa, com energia, os anos que passam, e quando a morte chegar assumirá a ida com um sorriso ou um riso, porque até para isso, para rir, foi treinada.
Bom... mas também poderá ficar com a impressão de que a próxima geração vai ser igual a esta, e à anterior, e à anterior... pois, bem vistas as coisas, a "Educação para a cidadania" que temos, acética e de um moralismo sem referente concreto - elaborado numa coligação, aparentemente, entre Estados e, certamente, entre estes e empresas e grupos de pressão, com a difusa sociedade a apoiar e a escola a executar - nem sequer chega a afectá-los ou terá, mesmo, o efeito contrário ao que se diz pretender-se.
É evidente que os adultos têm o dever de cuidar das crianças e dos jovens, tudo fazendo para que cresçam em segurança e estruturem a sua personalidade. E, evidentemente, possam tornar-se cada vez mais autónomos e livres, no respeito pelos direitos humanos.
Em contexto escolar, esse cuidado assenta substancialmente no conhecimento. Não em todo o conhecimento, mas no conhecimento de relevo, que vale a pena ensinar e aprender de modo formal (pois de outro modo dificilmente será adquirido)m, o conhecimento que permite estimular certas faculdades que possibilitam o exercício do livre arbítrio (que não sendo totalmente livre, dizem os filósofos, ainda assim, não poderá deixar ser perspectivado a partir dessa intenção).
Mas esse exercício de escolha terá de ser feito por aqueles que adquiriram algum conhecimento e o organizaram na sua estrutura pessoal, e que, quando for altura de decidirem, no quadro da sua "plena capacidade jurídica", recorrerão a ele... ou não. Ser professor é sobretudo dar (é, na verdade, uma dádiva), com base em conhecimento, a possibilidade... não é conduzir ou obrigar à concordância "política, economica ou socialmente correcta".
Esta (já) extensa dissertação deve-se à leitura de um texto intitulado O direito ao próprio corpo, da autoria de um jurista chamado Tulio Vianna, que pode ser encontrado aqui. Reproduzo abaixo algumas passagens com interesse para analisar os caminhos e descaminhos que trilhamos na "Educação para a cidadania":
É evidente que os adultos têm o dever de cuidar das crianças e dos jovens, tudo fazendo para que cresçam em segurança e estruturem a sua personalidade. E, evidentemente, possam tornar-se cada vez mais autónomos e livres, no respeito pelos direitos humanos.
Em contexto escolar, esse cuidado assenta substancialmente no conhecimento. Não em todo o conhecimento, mas no conhecimento de relevo, que vale a pena ensinar e aprender de modo formal (pois de outro modo dificilmente será adquirido)m, o conhecimento que permite estimular certas faculdades que possibilitam o exercício do livre arbítrio (que não sendo totalmente livre, dizem os filósofos, ainda assim, não poderá deixar ser perspectivado a partir dessa intenção).
Mas esse exercício de escolha terá de ser feito por aqueles que adquiriram algum conhecimento e o organizaram na sua estrutura pessoal, e que, quando for altura de decidirem, no quadro da sua "plena capacidade jurídica", recorrerão a ele... ou não. Ser professor é sobretudo dar (é, na verdade, uma dádiva), com base em conhecimento, a possibilidade... não é conduzir ou obrigar à concordância "política, economica ou socialmente correcta".
Esta (já) extensa dissertação deve-se à leitura de um texto intitulado O direito ao próprio corpo, da autoria de um jurista chamado Tulio Vianna, que pode ser encontrado aqui. Reproduzo abaixo algumas passagens com interesse para analisar os caminhos e descaminhos que trilhamos na "Educação para a cidadania":
Uma sociedade não pode ser considerada livre se seus membros não tiverem o direito de dispor de seus próprios corpos. O núcleo do direito à liberdade é a autonomia sobre o próprio corpo e justamente por isso o Direito, a moral e a religião se ocuparam durante tanto tempo em impor regras para regular a livre disposição dos corpos.
O direito ao próprio corpo ainda está longe de ser conquistado e reconhecido como um direito fundamental da pessoa humana. As normas limitando a autonomia dos corpos estão por todas as partes: limitações à sexualidade, ao uso de drogas psicotrópicas, à liberdade de expressão e até mesmo à vida e à morte.
Tudo em nome de um suposto bem maior: a coletividade. A maioria destas normas de regulação dos corpos, porém, não evita que haja lesão a direito alheio, mas tão somente impõe um modelo de conduta que a maioria julga adequado.
Estado democrático de direito – é sempre bom frisar – não se confunde com ditadura da maioria. As liberdades individuais só podem ser limitadas se – e somente se – o exercício de uma determinada autonomia provocar dano a outrem. Assim, pessoas, maiores e capazes deveriam ser livres para dispor sobre seus próprios corpos desde que com suas ações não prejudicassem a ninguém (...).
O reconhecimento do direito a dispor do próprio corpo tem como corolário à liberdade de consciência e também a liberdade de alteração de consciência por meio de drogas psicotrópicas, desde que evidentemente o uso de tais drogas não provoque danos a terceiros.
Não cabe a um Estado no qual a liberdade é direito fundamental uma atuação paternalista por parte do governo no sentido de proibir que pessoas maiores e capazes provoquem danos a seus corpos.
Deve o Estado, sim, proteger a saúde de crianças e adolescentes, mas no momento em que se reconhece sua plena capacidade jurídica é preciso que se reconheça também seu direito a usar drogas que alteram sua consciência, ainda que estas lhe venham a causar um eventual dano à saúde.
O direito ao próprio corpo manifesta-se ainda na liberdade de expressão e na de não expressão, que chamamos de privacidade. É preciso que se reconheça a cada indivíduo o direito de se expressar quando e como queira, mas também o direito de se manter em silêncio e em sossego, longe dos olhares e das câmeras alheias. Por óbvio não se pode admitir que sua expressão ou sua privacidade possa causar dano a direito alheio.
Por certo justifica-se seu cerceamento, se a expressão de um pensamento for lesiva à honra ou o exercício da privacidade for lesivo ao direito à informação de interesse público. A regra, porém, deve ser que um indivíduo possa se expressar ou se recolher à sua privacidade conforme sua conveniência o que, lamentavelmente, tem se tornado exceção.
A grande batalha jurídica do século XXI será pela libertação dos corpos das normas impostas pelo arbítrio da maioria.
Somos herdeiros de uma cultura religiosa que nos impôs ao longo da história uma infinidade de restrições morais e, posteriormente jurídicas, ao uso de nossos próprios corpos. Não há nada de democrático na imposição pela maioria de normas de conteúdo exclusivamente moral a uma minoria.
Se uma conduta não lesa ou ao menos gera riscos de lesão a direitos alheios, não há por que ser proibida.
A liberdade de um povo não está simplesmente em escolher seus governantes. Não se pode considerar livre um povo que decide os rumos de seu governo, mas que nega a cada um de seus indivíduos a autonomia de decidir sobre os rumos de seu próprio corpo. Liberdade é, antes de tudo, poder decidir sobre o próprio corpo.
4 comentários:
Parabéns pelo artigo.
Eu para mim continuo sem perceber como o estado nega a possibilidade da Eutanásia, e paga a execução de abortos.
cumps
Rui Silva
Caro Leitor Rui Silva
Não sei se essa discussão consta na Educação para a morte (que começa a ganhar espaço no sistema educativo português). Espero que não, pois ela facilmente conduz à opinião espontânea, decorrente de opções religiosas familiares ou de experiências pessoais... numa leigeireza contraproducente. Também os professores tenderão a orientar a discussão em função das suas opções mais ou menos consistentes. É uma discussão que terá o seu lugar, mas esse lugar não é, certamente, o da sala de aula. De facto, a sala de aula, como diz a socióloga Maria Filomena Mónica, não pode ser confundida com um púlpito onde se defendem posições independentemente de quais sejam e da bondade que lhes está subjecente.
Cumprimentos,
MHD
"Se uma conduta não lesa ou ao menos gera riscos de lesão a direitos alheios, não há por que ser proibida."
E se a conduta do corpo (livre) gera um estado em que se necessita de ajuda/ assistência do colectivo? É obrigacao do colectivo essa ajuda/ assistência? E.g.: individuo suicida-se, a coisa corre mal, fica só paraplégico. Continua a querer morrer; ninguem na familia concorda, incluindo o filho de 6 anos, pelo que isso lesaria na integridade emocional, etc, dos seus corpos, incluindo o do filho. Continuaria assim mesmo a ser direito do progenitor morrer, à luz do principio da liberdade individual total? Uma gravida pretende fazer aborto; como tem de ser uma intervencao feita antes de um determinado prazo passa à frente numa lista de várias operacões de outros individuos com problemas de saude, embora nada no seu estado de saude e do feto tenha indicacoes clinicas para a intervencao, deve-se exclusivamente à decisao da progenitora. Se sim, parece-me de alguma forma injusto, uma vez que um corpo não existe desacoplado de um colectivo, pelo que liberdades totais reverteriam sempre em contradicões quando aplicadas a conjuncturas relacionais (contratos como o casamento - homo, hetero, poligamico - deixam de fazer sentido; com mais algum esforco contratos de trabalho tambem) ou casos de decisão que, cedo ou tarde, intersectariam esse conceito de liberdade individual total. Parece-me um apelo perigoso ao liberalismo na sua forma mais selvagem e extrema. Relativamente a situacões muito especificas, como a eutanásia, aborto, etc deviadamente definidas, a "liberdade individual" pode sempre ser definida pela negativa com clausulas de excepcao. No mais parece-me que (i) educacao para a cidadania existe desde a revolucao francesa pelo menos, mesmo que nao implementada explicitamente em planos curriculares, (ii) o mundo está muitissimo melhor e mais equilibrado quer do ponto de vista social e pratico, quer juridico e teorico no que se refere a liberdade de orientacao sexual, morte, vida, consumo de drogas, educacao para a cidadania, entre muitas outras coisas. O liberalismo total (porque o que se defende é, na prática, uma forma extrema de liberalismo) não me parece que viesse a melhorar nada em concreto. Pelo contrário, creio. Talvez a religião seja a unica fonte de influencia nestas imposicões do colectivo aos direitos e deveres que um individuo deve ter. Mas tambem talvez esta defesa quase incondicional da liberdade de um individuo sejam imposicões das tendencias new age do ocidente nas ultimas décadas.
Prezado Leitor Pedro Lind
No seu comentário constam questões muito relevantes, a maior parte de ordem ética e, portanto, de difícil resposta.
Gostaria de salientar que as minhas considerações se centraram no contexto da educação escolar.
O que eu pretendi dizer foi o seguinte: a Educação para a cidadania tal como se encontra estabelecida por instâncias internacionais e nacionais com poder de decisão em matéria de currículo escolar, é, não raras vezes, impositiva quanto a opções de vida.
A escola (distinta da família) terá de esclarecer os alunos, com base em conhecimento fiável (o que está longe de acontecer), terá de, em certos aspectos, fazer o que estiver ao seu alcance para que eles tomem decisões razoáveis, tanto no presente como no futuro, mas não pode obrigar a decisões que solicitam a consciência de cada um.
É evidente que além disso, não pode aligeirar o dever do cuidado, na medida em que é responsável pela segurança e bem-estar físico e psicológico dos alunos. Logo, qualquer acto da sua parte que comprometa este princípio deve ter a intervenção dos educadores.
A minha posição não decorre de qualquer espécie de liberalismo, mas da reflexão ética e jurídica que apela ao conhecimento na formação da consciência e à preparação para a tomada de decisões em liberdade e com responsabilidade.
Cordialmente,
MHD
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