Quando Os Dragões do Éden, de Carl Sagan, foi publicado entre nós na Gradiva, teve em mim um impacto profundo: nunca mais vi as origens da humanidade como antes. Sagan conseguiu transmitir-me uma curiosidade profunda sobre a natureza humana, coisa que a história tradicional nunca tinha conseguido porque sempre me pareceu mais uma conversa fiada sobre as coisas mais desinteressantes da humanidade: as invejas e guerras e tolices políticas humanas. A perspectiva mais abrangente de Sagan, mais enraizada no conhecimento científico, biológico, lançava uma luz completamente nova sobre a história.
Yuval Noah Harari conseguiu ter em mim o mesmo efeito, mas agora numa obra que trata especificamente da história completa da humanidade: história cósmica, diria eu. A Vogais editou já a obra em Portugal em Novembro de 2013, traduzida não sei por quem porque não tenho a edição portuguesa, mas antes a de língua inglesa. (Quando haverá em Portugal o reconhecimento de que o tradutor é um autor? É inaceitável que não só o seu nome não apareça na capa, como acontece em quase todos os livros de língua inglesa, como sequer seja mencionado nos sites dos editores. Uma falta de respeito pelo trabalho do tradutor.) São 496 páginas de leitura compulsiva, informativa, fascinante.
Nesta obra não se encontra o género tradicional de história da humanidade, geralmente bastante eurocêntrica e descrevendo quase exclusivamente pormenores da política e dos impérios. O que encontramos aqui é um enquadramento iluminante da história da humanidade, que é vista do ponto de vista do universo, como diria Sidgwick. A história de Harari abrange desde o aparecimento dos primeiros hominídeos até à previsível extinção do Homo sapiens. Mas é muito mais do que uma mera narrativa de factos biológicos, antropológicos, económicos e políticos: é uma tentativa de compreender a razão de ser das coisas. E, claro, muitas vezes essa é uma tentativa gorada, caso em que Harari expõe algumas teorias especulativas, os seus pontos fortes e os seus pontos fracos. Em muitos casos, Harari conclui que não sabemos, pelo menos para já, o porquê que procuramos. É o caso, logo no início do livro, do mistério da nossa solidão de espécie: ao longo de milhares de anos, o Homo sapiens conviveu com várias outras espécies de hominídeos, como aliás acontece hoje com as outras espécies. Subitamente, porém, as outras espécies desaparecem e ficamos apenas nós; porquê? Sabemos hoje, por exemplo, que muitos de nós temos alguns genes de outras espécies de hominídeos (temos genes de Neandertal, por exemplo), o que significa que houve cruzamento entre espécies. Mas não houve uma fusão de espécies porque se tivesse havido tal coisa, teríamos uma percentagem muitíssimo elevada de genes de outras espécies, coisa que não temos.
Harari divide a história da humanidade em três grandes períodos, que correspondem a três acontecimentos marcantes: a revolução cognitiva, a revolução agrícola e a revolução científica. Entre as duas últimas ocorre a unificação da humanidade, que deixa de estar separada em ilhas culturais, para passar a ser uma só cultura. Quando Hollywood imagina o faroeste do séc. XIX, com índios orgulhosos nos seus cavalos, dá a ilusão de uma cultura independente, o que é falso: os cavalos, por exemplo, foram reintroduzidos no continente norte-americano apenas no séc. XV, quando os espanhóis lá chegaram. (Reintroduzidos porque quando os antepassados dos indígenas norte-americanos, os primeiros hominídeos, chegaram ao actual continente norte-americano, havia cavalos, que prontamente se extinguiram com a pressão predatória humana.)
A revolução cognitiva ocorre quando os seres humanos desatam a imaginar coisas que não existem: nasceu a ficção. Deuses, demónios, espíritos, narrativas míticas, religiões, artes, surgem subitamente onde os Sapiens estão, desempenhando talvez, pensa Harari, o papel crucial de conseguir coordenar um número elevado de seres humanos, coisa que antes não era possível. Numa das muitas imagens memoráveis do livro, Harari faz notar que se colocarmos milhares de chimpanzés numa praça de uma cidade, o resultado será apenas uma cacofonia sem rumo; milhares de seres humanos, contudo, conseguem coordenar-se para se manifestar, por exemplo, contra o terrorismo. (Sobre os recentes ataques terroristas vale a pena ler o que me pareceu o mais lúcido dos artigos sobre o caso, da autoria de Yuval Harari, publicado pelo Guardian.)
O livro surpreende a cada passagem pela simplicidade da sua linguagem, pela profundidade da visão do seu autor, e também pela verve, que põe ao serviço da compreensão de ideias profundas e por vezes difíceis. É um livro inteligente, pleno de ideias surpreendentes, de explicações iluminantes e de perspectivas novas. Desmontando sempre que pode muitas ideias feitas que hoje afogam o pensamento comum (como a ideia de que os seres humanos eram ecologicamente correctos antes da industrialização, ou a ideia de que só as relações heterossexuais são "naturais"), este livro presta um serviço inestimável ao esclarecimento da humanidade. Aconselho vivamente a sua leitura, e releitura, e penso tratar-se de um dos mais importantes livros de divulgação científica publicados nos últimos dez anos. Está de parabéns a Vogais, que soube publicar atempadamente um livro excelente.
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2 comentários:
Há uns tempos folheei este livro, mas fiquei um pouco incomodado com o que li: pareceu-me um discurso muito anti-humanista. Agora, fiquei com muita vontade de o ler. Obrigado!
Espero que goste de o ler; está longe de ser anti-humanista. Mas é verdade que é muito provocativo, pois o autor desmonta muito bem muitas das ideias feitas contemporâneas.
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