quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

"Peço uma comissão de inquérito sobre o estado dos estudos clássicos no Reino Unido"

Tomo a liberdade de destacar a história que o nosso leitor João Viegas retoma a propósito deste texto.

"Um pequena anedota que fui buscar a um (admirável) texto do advogado J.-M. Varaut, que ilustrava assim a ideia de que é possível "responder à alegoria com outra alegoria". 
«Em 1982, na Câmara dos comuns, M. Thatcher declarou :
- Se Ulisses tivesse ouvido o canto das sereias, o navio dele ter-se-ia afundado e ele nunca teria podido chegar a bom porto".
Ao que um deputado trabalhista contrapôs de imediato;
1) Ulisses ouviu o canto das sereias;2) O navio dele encalhou;3) Apesar de tudo, ele chegou a bom porto.4) Peço uma comissão de inquérito sobre o estado dos estudos clássicos no Reino Unido".
João Viegas

8 comentários:

bea disse...

Está demais. Algumas pessoas não são apenas bem dispostas; põem a argúcia eficaz ao serviço do bom humor. Admiro-as.

Anónimo disse...

E em Portugal como andam? Há anos que ouço dizer que literaturas,Filosofia e História só servem para esbanjar o dinheiro dos contribuintes.Para sobreviverem é melhor passarem à clandestinidade,às catacumbas.Apenas alguns,avisados,as praticarão em recato.

Helena Damião disse...

Em Portugal Literaturas, Filosofia, História, Artes, Clássicas... e todas as componentes das ciências "que não têm utilidade" andam como no resto do mundo ocidental: passaram à clandestinidade, às catacumbas. Talvez não seja na escola mas na clandestinidade, nas catacumbas que podemos ter acesso a elas, ou, como diz o leitor anónimo da 20h15, que (apenas) alguns poderão ter acesso a elas.

joão viegas disse...

Ola,

Agradeço o destaque e felicito-me que tenham gostado da anedota que, como disse, não é minha. Reparem que o texto não é de um professor, mas de um advogado, hoje falecido, que foi dos mais conceituados em França, respeitado por todos os colegas inclusivamente aqueles que, como eu, tinham ideias politicas diametralmente opostas às suas.

Salvaguardadas as devidas proporções, tenho os estudos classicos na mesma conta, elevadissima. Não apenas porque sejam decorativas mas porque sei que um jovem que me aparece à frente com uma solida cultura classica é com certeza um jovem que sabe redigir, que sabe estruturar o pensamento, e também um jovem com cultura no sentido mais essencial do termo : capacidade de compreender o que o rodeia e de se orientar com firmeza. Não pensem que isso é frequente. As pessoas saberem o alfabeto e serem mais ou menos capazes de alinhavar umas ideias não quer dizer que elas saibam escrever.

Portanto muito mal vai uma sociedade que relega a cultura classica e as humanidades para as catacumbas.

Boas

Helena Damião disse...

Caro leitor João Viegas
Muito mal vai (não uma sociedade mas) o mundo ocidental que relega a cultura clássica e as humanidades, bem como as artes e tudo o que nas ciências "não é útil" para as catacumbas, para o esquecimento. Talvez, um dia, se possa mudar este estado a que temos votado o conhecimento que importa, o conhecimento que faz de nós humanos e dá sentido à humanidade.
Cordialmente,
MHD

joão viegas disse...

Prezada Helena Damião,

Que o panorama não seja animador, concedo-lhe sem dificuldade. No entanto, se me permite, desenganem-se aqueles que acham que a cultura classica não é "util". Alias aprendamos com Cicero, homem pratico entre tantos, que nos deixou uma obra prima,chamada Tratado dos deveres, hoje tantas vezes ocultado pelas filosofias da moda (que raramente dizem coisa com coisa), onde se demonstra que o util, o bom e o belo convergem. Isto não é verdade por vir em Cicero. E' verdade porque o mundo é assim, e Cicero é grande porque o soube ver, como mais ninguém depois dele.

E desenganem-se também aqueles que acham que Cicero é para esnobes que cultivam uma lingua preciosa que apenas interessa a padres. Se começassemos por estudar a fundo a nossa lingua e a nossa literatura, em vez de modernices que nos passam completamente ao lado, veriamos no nosso Leal Conselheiro, datado do alvorecer da prosa portuguesa, uma excelente introdução a Cicero e ao seu tratado Dos deveres.

O mundo vai mal, se calhar, mas pessoalmente nunca me hei de conformar, nem de me agarrar à cretinice e à incultura, ainda que todos a celebrem, e continuarei a gritar quantas vezes forem necessarias, ao lado do De Rerum Natura e de outros, que é imperativo e urgente voltarmos a dar à cultura classica e às humanidades o lugar que lhes pertence numa sociedade que se reclama do humanismo e que, quanto mais não seja por coerência, devia compreender que a palavra "humanismo" é um bocado mais do que um "flatus vocis"...

Felicidades

jose disse...

E os valores? Não imagino como possam ser transmitidos sem conhecimento dos clássicos.Todas as raízes do Ocidente cortadas no Ensino.Restam as revistas da "socialite"esse sucedâneo das aprendizagens dos valores.E as alternativas islâmicas,esses têm valores,e que valores.Vi-me aflito para arranjar a Paideia de Werner Jaeger.

Ildefonso Dias disse...

Professora Helena Damião, eu não sei se a senhora poderá discutir plenamente esta questão sem que nela esteja presente algo de marxismo e outras correntes de pensamentos. Porventura não o deseja fazer... mas isso deixa-a limitada, e por isso mesmo é que não pode ir mais além numa análise mais profunda. Eu já li alguns princípios gerais enunciados pelo professor Bento de Jesus Caraça, (a um intelectual da valia de BJC não passaria desapercebido este tema) e que me parecem que deviam ser objecto de uma análise pela senhora professora. Eis alguns trechos que escolhi e que transcrevo de [Humanismo e Humanidades] que embora desligados do texto original podem dar uma boa ideia do pensamento do autor.

"É incompleta, mutilada e de defeitos desastrosos toda a formação cultural que se dirija apenas às qualidades intelectuais do individuo. Deve, por consequência, fazer-se cair a barreira, que vem já da antiguidade clássica, entre o trabalho intelectual e o físico. Todo o estudante deve participar da actividade social pela sua integração no meio em que vive, aprendendo a trabalhar e a lutar, na resolução dos problemas reais que se põem ao homem real. O tipo de estudante, muito conhecido, de guitarra e sebenta, é do passado, um passado cuja herança estamos suportando agora."
"A separação total que existe, como na nossa Universidade, entre formação literária e cientifica, deve desaparecer também.
(...) "Como se pode estudar uma coisa e outra sem conhecer a evolução da economia, da técnica, das relações de trabalho? Há um núcleo comum de estudos que me parece dever ser comum a todas as formaturas universitárias *"
(...) "Evidentemente, não se trataria, neste núcleo comum, de formar especialistas em nenhuma das rubricas apontadas, mas de habilitar, o que agora não sucede, todo o licenciado a saber-se situar no conjunto de ideias do seu tempo e de evitar a coisa caricata de ver sujeitos de formação literária chamarem a Einstein o anti-Newton e outras idiotices de igual calibre."

* Tantos das Universidades Clássicas como das Técnicas. Mas esta distinção justifica-se porventura?

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