segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

ENTREVISTA DO I A ALEXANDRE QUINTANILHA


Recomendo a Alexandre Quintanilha no jornal I de hoje, em que ele aponta o dedo à pseudo-avaliação da FCT da ciência nacional. Com a devida vénia transcrevemos parte, com a introdução da jornalista Kátia Catulo: 

"Os cortes que vieram com a crise estão a minar a solidariedade em áreas do saber e em tudo o resto, avisa o físico e biólogo A conversa com o cientista é uma viagem que recua primeiro ao passado para perceber como evoluiu um país reprimido no pensamento e diminuído pela pobreza que deu o salto, à conta do investimento na formação. Homens, mulheres e jovens assumiram um “empowerment” que agora está a enfraquecer. O desinvestimento no conhecimento, a obsessão pelo retorno financeiro em todas as apostas, a desvalorização das ciências sociais e humanas têm sido algumas das causas para minar a solidariedade de um povo agora empenhado na luta pela sobrevivência. A conversa com o cientista é também uma viagem ao presente para darmos conta de que as mensalidades não mudam do dia para a noite e que os portugueses continuam a ter medo de arriscar. Ou então que, apesar de viverem numa sociedade católica, são livres na sua forma de estar, como é o caso das vizinhas que à varanda o vêem descer a rua de braço dado com o marido e cumprimentam o casal, como qualquer morador do bairro. A conversa com o cientista é, por fim, uma viagem ao futuro, à velhice, que não o assusta. Pelo menos até achar que os próximos dez anos vão ser tão ricos como os dez anteriores.

  Fez críticas duras ao desinvestimento que se estará a fazer agora na ciência e na formação. O certo é que temos mais doutores do que nunca, mas qual terá sido o impacto desse investimento? 

 Dou um exemplo pessoal. Casei-me com o Richard [Zimler] em Portugal. Algo impensável há dez anos. Os meus amigos lá fora ficaram espantadíssimos. Portugal evoluiu imenso. Há milhares de jovens que, por exemplo, vivem com outros jovens sem se casarem, têm filhos sem se casarem, seguem os seus sonhos contra a vontade dos pais. E há uma consequência curiosa do fim da ditadura: foi muito mais importante para as mulheres do que para os homens. Os homens ganharam liberdade política. As mulheres ganharam essa e muitas outras. Esta coisa de poderem viver com um homem sem estarem casadas, de morarem sozinhas, de decidirem não ter filhos, de viajar, de abrir uma conta no banco… As mulheres que viveram essa transição têm uma forma de estar totalmente distinta de há 20 ou 30 anos. E, portanto, o investimento na educação teve um impacto enormíssimo mesmo que por vezes seja difícil de medir. E um certo empowerment que as pessoas adoptaram, mas que infelizmente está a enfraquecer porque muitos não sabem se vale ou valeu a pena. As pessoas vêem que não há muitas oportunidades cá e esquecem-se que o mundo está aberto para elas. Consideramos agressivo sugerir que os jovens procurem emprego lá fora, mas foi isso mesmo que eu fiz quando saí de Moçambique.

  Estou a ver que a fuga de cérebros não o preocupa. 

Nada. É isso que dá lugar a uma maior circulação e intercâmbio do conhecimento. Uns vão lá para fora e outros vêm para cá. Era isso que já estava acontecer e que agora se está a perder. Sei que todos os governos têm o direito a escolher as suas políticas, mas o que me parece insensato é mexer numa área em que as coisas estavam a correr particularmente bem. Houve vários governos de cores diferentes que apostaram no conhecimento e investiram no futuro dos jovens. Alguns dizem que se esqueceram de pensar no que fazer com esses jovens, mas todos nos lembramos do que aconteceu com demasiado planeamento nos países comunistas. Nem quero viver numa sociedade dessas. Se calhar não houve muita preocupação em planear o passo seguinte, mas é preciso ver que estávamos muito longe das metas europeias. E não se esqueça que continuamos a investir menos de 1% de dinheiro público na ciência. E se a gente acha que é o investimento no conhecimento que leva à inovação, gastar menos de 1% por ano é ridículo. Por tradição, o valor da ciência em Portugal é mais baixo do que nos outros países. E perguntar qual é o retorno é uma pergunta perfeitamente justificável. O que a gente não se pode esquecer é que nos países em que há um retorno muito grande, a história no investimento do conhecimento tem vários séculos. Não podemos pretender que um país com 300 anos de inquisição, décadas de conflitos no fim da monarquia, muita instabilidade a seguir à república e, por fim, quase meio século de ditadura, comece de um momento para o outro a ser como a Alemanha ou os EUA. O que acho é que, havendo agora uma alteração na forma como se quer investir para começar a ter mais retorno, essa mudança não deveria ter sido abrupta como foi. O que vai acontecer é que muitos centros de investigação irão fechar. Há 40% dos investigadores que não têm condições para continuar. E o que me aflige ainda mais é a diminuição na aposta em ciências sociais e humanas. Todo esse emporwerment que resultou do enorme impacto do conhecimento nas áreas das ciências sociais, humanas. Percebo que gostaríamos de ver um impacto no lucro. Mas gostaria que tivesse havido uma alteração lenta deste processo. E, mais uma vez, questiono a forma abrupta como tudo isto está a ser feito. O número de bolsas foi reduzido para metade ou menos. Os concursos para projectos de investigação escasseiam, as instituições foram tão apertadas que muitas temeram nem conseguir chegar ao fim do ano. Foi quase como se chegassem agora uns iluminados que decidiram mudar dramaticamente tudo de cima para baixo sem conhecerem bem a realidade. 

Esse retorno que se procura parece estar muito ligado àquela ideia de que o investimento no conhecimento científico só faz sentido quando associado ao I&D das empresas, aos resultados, à competitividade.

Pois é. Estive 20 anos nos EUA, na região de São Francisco, que juntamente com Boston, são os dois grandes centros da chamada inovação onde surgiram todas as indústrias em áreas de ponta. Nunca ouvi lá ninguém duvidar de que, para se fazer extraordinária investigação aplicada, se começa sempre por extraordinária investigação pura. Ou vice-versa. Isto é, um projecto para construir um avião com menor consumo de energia ou para se descobrir uma cura para o cancro ou para o Alzheimer implica sempre uma cultura de diálogo, de ligação estreita entre o aplicado e o fundamental. Isso não se cria numa década. É uma alteração cultural importante. Muita gente me diz e eu sinto isso também: os portugueses têm muito medo de arriscar, de falhar e isso tem consequências dramáticas. Quem não arrisca faz pouco. 

Como mudar isso? 

Passa por toda a cultura. É os meninos aos oito anos terem de lavar o carro do vizinho para conseguirem comprar uma bicicleta. Ou as meninas fazerem bolos para vender no bairro. Haverá dezenas de formas de, a partir dos oito anos, pôr as crianças a serem inovadoras. Dizer ao jovem que passar algum tempo a trabalhar nas férias é normal, ainda é raro na classe média. Mas aprender o valor do dinheiro é fundamental. Não é por um governo dizer que vai acontecer. Foi o que fizeram com os centros de investigação, de um momento para o outro metade deles correm o risco de desaparecer. Obviamente nas áreas em que o retorno parece menos óbvio que são as ciências sociais e humanas. Porque não dão lucro! São aliás perigosas porque podem ajudar a mostrar que não é esta a sociedade que queremos. Haveria algo de mais perigoso? 

A economia também assumiu um grande protagonismo nesta crise. 

Óbvio, óbvio. E não acho mal, mas não tem de ser esta economia. 

Uma das consequências é o espaço mediático estar quase dominado por défice, dívida, resultados, competitividade. Como é que as ciências sociais podem provar que são igualmente importantes para sair da crise? 

Não sou um cientista social, não sei como é que isso se faz, mas acho que a história recente de Portugal mostra de uma forma claríssima como houve alterações sociais tão grandes em tão pouco tempo. Não tenho nada contra estimularmos o conhecimento para melhorar a sociedade, mas melhorar não é só fazer mais dinheiro. Se o objectivo é só financeiro, então estamos mal, porque criamos uma sociedade cada vez mais egoísta. 

É isso que está a acontecer? 

Sim. Mais uma vez uso o exemplo destas avaliações da FCT porque é sintomático de muita coisa. Cada um que se safe. Um centro com uma classificação extraordinária fica tão aliviado que se está nas tintas para outros que ficaram excluídos. E esta solidariedade possível das áreas do conhecimento também está a ser minada por esta luta pela sobrevivência. E quem fala dos centros de investigação fala das universidades e das profissões. Essa coisa da sobrevivência torna as pessoas mais agressivas, com muito menos empatia, começam-se a defender a si próprias quase como inevitabilidade: tenho de me salvar a mim e às pessoas que estão comigo. E essa é uma sociedade que eu não gosto. Não gosto. Não me atrai nada. Está-se a destruir a expectativa inicial que havia de que a crise iria trazer maior solidariedade? Havia de facto essa expectativa. Há uns anos fui muito crítico em relação ao dinheiro que estava a ser gasto no betão e no alcatrão. Ainda me lembro que apareceu em grandes parangonas que eu achava um disparate gastar tanto dinheiro em estádios e auto-estradas. Continuo a pensar que foi dinheiro muito mal gasto. Mas também é verdade que durante esse período houve uma aposta consistente naquilo que era a educação e a formação dos mais jovens para Portugal vencer este atraso em relação ao resto da Europa. Eu estive cá nos finais dos anos 70 para dar umas aulas. A miséria que aqui existia era chocante, incomodativa. Portugal em 30 anos mudou de forma dramática e para melhor. E quem sabe de física como eu, sabe que quando as alterações são rápidas há o perigo de grandes flutuações. 

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