sexta-feira, 6 de agosto de 2021

MATEMÁTICA – UMA DOCÊNCIA CALAMITOSA

Novo texto de Eugénio Lisboa:

As dimensões apocalípticas do desastre que representam os resultados dos exames de matemática no nosso país constituem um verdadeiro crime situável muito para além de qualquer explicação complacente. Isto é: não vale a pena nomear bizantinas comissões de inquérito para se encontrar uma explicação óbvia e de dolorosa simplicidade: os resultados catastróficos dos alunos são o corolário directo e nu de uma inconcebível, criminosa e generalizada incompetência pedagógica dos professores.

Os alunos são muito maus porque os professores são, na sua esmagadora maioria, inconcebivelmente maus – não se justifica ir procurar mais longe. Chegou realmente a altura de se fazer uma avaliação séria – e independente – não do grau de conhecimentos dos alunos, mas sim da competência técnica e pedagógica dos professores. Prometo-vos que os resultados dessa avaliação vos darão pasto a entretenimento por muitos e bons anos.

Quando estive a viver no Reino Unido (e estive lá dezassete alongados anos), os resultados dilacerantes no ensino secundário conduziram, a certa altura, a suspeitas que já se não podiam esconder debaixo do tapete. Em vista disso, procedeu-se a uma avaliação nacional do grau de competência dos professores: os resultados foram tais que o próprio sindicato dos profissionais do ensino não conseguiu fabricar explicações fantasistas – declarou, preto no branco, que as conclusões do inquérito fariam rir, se não fizessem chorar. Bastará dizer que, dos professores avaliados (e tratou-se de uma ampla amostra representativa), não se encontrou um único que escrevesse inglês escorreito (os erros de ortografia eram aos montes) e pelo menos um professor de matemática não sabia calcular 10 por cento de 15 libras...

Dispenso-me de dar mais pormenores mas recordo-me de ter enviado para o Ministério da Educação, em Lisboa, pour mémoire, um ofício com recortes abundantes e chocantes, colhidos na grande imprensa inglesa de referência. Foi um autêntico tumulto, mas os resultados eram apenas de esperar: a dimensão apocalíptica de um desastre tem sempre uma explicação extremamente simples (Alcácer Quibir explica-se depressa). 

De resto, quem quer que tenha vivido estes problemas não ignora que a matemática tem duas virtudes singulares: é, simultaneamente, a disciplina mais fácil de aprender e a que, uma vez aprendida, tem maior e mais duradouro poder de sedução – é apenas uma questão de competência do professor...

Do segundo ao sétimo ano do liceu, em Lourenço Marques, tive a felicidade de ter tido sempre o mesmo professor de matemática – Vieira Júnior – que era um pedagogo excepcional. Julgo que, em seis anos consecutivos, não houve na minha turma, um único mau aluno de matemática. Mas houve, em contrapartida, um bando de viciados: quando se “acabava” um livro de exercícios dessa disciplina, ficávamos como o drogado a quem falta a droga – alguns dos meus colegas, na falta de terem dinheiro para comprar mais cadernos de exercícios, furtavam-nos nas livrarias (era “por bem”, como diria el-rei D. João I...). Mal por mal, antes assaltar livrarias do que farmácias... 

Tenho outras provas – sensacionais – de que uma pedagogia da matemática opera milagres. Em Lourenço Marques – também! – nos tempos em que ali fui aluno do liceu, havia, fora do ensino oficial, um “explicador” de Matemática que, por acaso, fora amigo de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro (deste último, possuía algumas cartas e o poeta de Dispersão dedicou-lhe, mesmo, a mais longa novela – O Incesto – do seu livro de ficção curta, Princípio). Gilberto Rola Pereira, o “Gilberto Rolla” da dedicatória de Sá-Carneiro, costumava receber, em artigo de morte, os casos perdidos da matemática oficial: seduzindo-os, com o magnetismo de um olhar malicioso desfechado por detrás de uns óculos em meia-lua (o blazer impecavelmente britânico e a juba branca emissora de luz também ajudavam), o Rola ia-lhes mostrando, como ilusionista experimentado, como a matemática era, ao mesmo tempo, bela, rigorosa e simples: por assim dizer, inevitável. O milagre acontecia sempre: o mau aluno tornava-se bom aluno, o inimigo da matemática apaixonava-se pela matemática.

À sorrelfa, o Rola ia-lhes também metendo debaixo do braço livros do Pessoa, do Sá-Carneiro, do Régio... Matemática e poesia – poderia haver melhor combinação? Poderia haver sedução mais óbvia? 

Mas, se o Rola Pereira era o mágico supremo, o operador sistemático de milagres que nunca falhavam – o coelho saía invariavelmente da cartola, sem acidentes de percurso – não era o único operador de milagres do burgo mítico que era Lourenço Marques: outros havia (o Danúbio, o Gabão, etc.) que sabiam como seduzir para o reino de Pitágoras os alunos mais relapsos: o Helder Macedo que o diga, ou o Rui Knopfli (se fosse vivo) que o dissesse, entre dezenas ou centenas de marretas submetidos à ortopedia cintilante daqueles professores-benfeitores.

O chamado “medo da matemática” que, com o tempo, acaba por se converter em “ódio à matemática” e, por fim, em termos de uma autodefesa triste e pindérica, em “desprezo pela matemática”, deriva sempre de, em cada professor, não existir a matriz sedutora de um Rola Pereira, de um Danúbio ou de um Gabão: matriz feita de competência, de gosto de ensinar matemática ou, mais singelamente, de gosto de ensinar.

Com os resultados que estão à vista: tsunamis pedagógicos a perder de vista e pessoas supostamente cultas e com responsabilidades profissionais e políticas capazes de ler, sem pestanejar, a célebre passagem do celebrado Tartarin de Tarascon, de Alphonse Daudet: “Atrás do camelo quatro mil árabes corriam, pés nus, gesticulando, rindo como loucos e fazendo rebrilhar ao sol seiscentos mil dentes mui alvos”. Isto é, Daudet, certamente, por dificuldades com a operação da divisão, atribuía, a cada árabe, 150 dentes, em vez dos canónicos trinta e dois ou menos... Como observaria Bertrand Russell, Daudet poderia ter evitado este percalço, ou aprendendo a dividir ou, então, pedindo à Sra. Daudet que abrisse a boca.  O Professor brasileiro Júlio César de Mello e Souza, mais conhecido pelo famoso pseudónimo de Malba Tahan e autor de livros interessantíssimos como O Homem que Calculava e Matemática Divertida e Curiosa, a propósito desta passagem do livro de Daudet, observava com não pouca graça:

“Uma simples divisão de números inteiros nos mostra que Daudet, cuja vivacidade de espírito é inconfundível, atribuiu um total de 150 dentes para cada árabe, transformando os quatro mil perseguidores em criaturas fenomenais.” 

Eis o que estão a fazer dos portugueses os responsáveis pelo ensino da matemática: estão a transformá-los em “criaturas fenomenais” e fenomenalmente imbuídas de arrogância para com a disciplina que foi ilustrada pelos nomes de Pitágoras, de Euclides, de Thales de Mileto, Abel, Leibniz, Descartes, Newton, Euler, Bernoulli, Fourier, Gauss, Nappier, Fermat, Galois, Mira Fernandes, Aniceto Monteiro, José Sebastião e Silva  ou Tiago Oliveira.

É realmente o momento de dizer: chega! Pede-se a um futuro primeiro ministro que aqueça suficientemente as costas de um ministro da educação competente e não complicado, que talhe a direito e corrija aquilo que se deve ter a coragem de corrigir: no ensino não pode haver lugar para incompetentes. Mantê-los é crime sem redenção.

Eugénio Lisboa

P.S. – Agradeço ao Sr. Ildefonso Dias ter-me chamado a atenção, justamente, para um lapso meu, de memória (a minha não é má mas às vezes também dormita…): onde tinha escrito Sebastião da Silva Dias, devia estar José Sebastião e Silva. Fica feita a correcção.

3 comentários:

João Lisboa disse...

A solução é óbvia desde há, pelo menos, treze anos: http://lishbuna.blogspot.com/2008/11/uma-modesta-proposta-para-prevenir-que.html

Ildefonso Dias disse...

Sr. Professor Eugénio Lisboa, o nome do maior matemático deste país é José Sebastião e Silva, é não é Sebastião da Silva Dias, como escreveu no post, este segundo creio era filósofo. Peça para corrigir. Obrigado

VOLEIBOL ESCOLAR disse...

Henrique Jónatas

A viver atualmente em Maputo e um ex aluno relapso que, apesar de tudo, ainda conseguiu gostar de matemática.
Interessante artigo. Ainda mais relevante quando é a disciplina com maior carga horária da escolaridade obrigatória, em todos os anos, desde o primeiro.

NOVA ATLÂNTIDA

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