Meu artigo no último As Artes entre as Letras:
Neste ano de 2025 celebra-se o centenário de dois trabalhos revolucionários na área da física, que constituem a trave-mestre do nosso entendimento do Universo. Esses trabalhos estabeleceram formulação moderna da física quântica, a teoria que explica a estrutura e o funcionamento das partículas, dos núcleos atómicos, dos átomos, das moléculas e dos materiais. Por isso a Organização das Nações Unidas - ONU declarou no ano passado que 2025 seria o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. Um dos autores foi o físico austríaco Erwin Schrödinger, que chegou à equação que tem hoje o seu nome, a qual, na sua primeira aplicação, permitiu conhecer as energias possíveis de um electrão no átomo de hidrogénio, o mais simples de todos. O outro autor foi o físico alemão Werner Heisenberg que, pouco antes, resolveu o mesmo problema usando um método alternativo. O próprio Schrödinger provou num trabalho publicado a meio de 1926 que os dois métodos eram perfeitamente equivalentes. Pode usar-se um ou outro não só para o átomo de hidrogénio, mas também para qualquer outro sistema quântico. E conhecemos a razão da equivalência dos métodos: os dois são duas faces da mesma moeda.
Schrödinger e Heisenberg foram dois dos maiores génios da física do século XX. As suas contribuições para essa disciplina não se ficaram por aí. O primeiro foi o autor de um famoso paradoxo, conhecido por «gato de Schrödinger», que expõe algumas dificuldades que a teoria quântica enfrenta quando confrontada com o senso comum. Por sua vez, Heisenberg foi o autor do «princípio da incerteza», segundo o qual não podemos saber ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula, por exemplo um electrão: se soubermos onde está não podemos saber a rapidez do seu movimento e vice-versa. Os dois foram também filósofos no sentido em que ensaiaram compreensões do mundo que iam muito para além da sua ciência. Mas, unidos pela sua ciência, também tiveram separações. A principal foi política: enquanto Schrödinger decidiu abandonar o seu lugar de professor na Universidade de Berlim, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, e depois um outro lugar da Universidade de Graz, na Áustria, com a anexação da Áustria pelo seu grande vizinho, Heisenberg permaneceu na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, tendo colaborado com os nazis na tentativa, felizmente falhada, de construção de uma bomba nuclear. Schrôdinger esteve durante os anos da guerra e do imediato pós-guerra no Instituto de Estudos Avançados de Dublin, na Irlanda, tendo, em 1955, recebido um lugar honorário na Universidade de Viena, na sua terra natal.
O conceito criado por Schrödinger que mais entrou na cultura popular é o gato que tem o seu nome. Ele surgiu no ano de 1935, em correspondência do austríaco com o seu colega e amigo Albert Einstein, o físico suíço nascido na Alemanha que se exilou nos Estados Unidos em 1933 com a ascensão política dos nazis), no contexto da discussão das dificuldades que Einstein colocou à teoria quântica na sua forma de 1925, a qual, como rapidamente se percebeu, envolvia a ideia de probabilidades. Einstein não gostava da ideia um mundo descrito apenas por probabilidades. Estas poderiam ser úteis – ele não negava que a teoria quântica estivesse certa. Mas, por detrás das probabilidades, deveria haver um mundo realista e determinista. «Deus não joga aos dados com o Universo», disse Einstein um dia. Levantou sucessivas objeções à visão probabilística, uma das quais o «paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen» (EPR), que hoje é aproveitado em aplicações conhecidas por «teletransporte quântico». Schrödinger criou o termo «entrelaçamento» (em inglês «entanglement», ele era fluente tanto em alemão como em inglês, pois tinha uma avó inglesa) para descrever o fenómeno do EPR.
Neste fenómeno, que descreve a correlação entre partículas distantes que antes estiveram em contacto, tal como na teoria quântica em geral, só se pode conhecer o estado de uma partícula quando se efectua uma experiência de medida: mas, medido o estado de uma sabe-se imediatamente o estado da outra, por muito longe que esteja. Antes de ser sujeita a uma experiência de medida a partícula está, pelo menos matematicamente, em dois ou mais estados ao mesmo tempo. Ora, para evidenciar o absurdo de tal situação, Schroedinger imaginou um gato fechado numa caixa, cuja vida ou morte resultaria da ocorrência de um processo quântico (um decaimento radioactivo, por exemplo).
A questão que colocou é: segundo a teoria quântica o gato estaria morto e vivo dentro da caixa, um «zombie» portanto. E só poderíamos saber se estava vivo ou morto se abríssemos a caixa. Então, de certo modo, seria o processo de observação corresponsável pela criação de realidade. Não existiria uma realidade completamente independente do observador. O gato de Schrödinger nunca foi concretizado num laboratório, mas a ideia subjacente de se ter uma partícula simultaneamente num ou em vários estados está na base da computação quântica, uma nova forma de computação que promete sere mais rápida do que a computação convencional, aquela que hoje permite o funcionamento dos nossos computadores. Os electrões ou outras partículas usadas na computação quântica podem estar numa sobreposição de estados e podem estar entrelaçadas
Schrödinger é, portanto, um autor que, não satisfeito com as suas propostas científicas, não hesitou em pô-las em causa com o exame crítico das suas implicações lógicas. Também ele como Einstein duvidou da interpretação corrente da teoria quântica. Esta é uma das marcas maiores da ciência: nunca estar satisfeito com as conclusões a que se chega. A ciência, ao contrário do que muita gente supõe, não nos dá certeza. É, principalmente, o exercício permanente da dúvida.
1 comentário:
É o exercício da dúvida sim, mas com o fito de obter certezas. A ciência dá-nos certezas, sim, acho eu: a certeza de que a Terra não é plana, de que o Sol não orbita em torno da Terra, de que não há mais vida inteligente no Sistema Solar, de que uma vacina impede a doença numa altíssima percentagem, de que o mais pesado que o ar pode voar e o mais pesado que a água pode flutuar, de que se eu clicar PUBLISH no fim este comentário fica acessível a toda a humanidade. A Ciência existe para dar certezas, ou altas probabilidades. Outra coisa é o modo como procede para alcançar essas certezas - e esse método é, com efeito, o exercício permanente da dúvida. Como preconizava o grande Descartes.
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