quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

2025: O ANO QUÂNTICO


Meu artigo no JL:

A Organização das Nações Unidas declarou que o ano 2025 seria o «Ano da Ciência e da Tecnologia Quânticas». O motivo é a passagem dos cem anos dos trabalhos do alemão Werner Heisenberg (1901-1976) e do austríaco Erwin Schrödinger (1887- 1961), entre outros, que deram à teoria quântica a sua forma actual. De facto, foi no ano de 1925 que esses dois génios da física, seguindo caminhos diferentes, chegaram à formulação de uma teoria que ainda hoje permanece tal como eles a moldaram. Heisenberg chegou à chamada «mecânica das matrizes» numa tentativa de descrever matematicamente os estados possíveis do electrão num átomo de hidrogénio, que tinham sido postulados em 1913 pelo dinamarquês Niels Bohr, o criador da «teoria quântica antiga». Por seu lado, e trabalhando independentemente, Schrödinger propôs a «mecânica ondulatória» para resolver o mesmo problema: escreveu uma equação que descreve como ondas os estados do electrão. Embora não tenha sido evidente logo no início, as duas formulações são perfeitamente equivalentes: eram apenas - e são - duas maneiras diferentes, mas igualmente válidas, de descrever os mesmos fenómenos.

É incrível que uma teoria velha de cem anos (aliás mais do que centenária, porque antes de Bohr tinha surgido, em 1900, a ideia revolucionária do alemão Max Planck de considerar que a luz existe em pacotes ou quanta de energia) continua hoje a dar aplicações após as muitas que já deu. Duas grandes concretizações da teoria quântica são os transístores e os lasers, que actualmente são imprescindíveis nos computadores e nas telecomunicações. Mas hoje trabalha-se no desenvolvimento da computação quântica e da criptografia quântica, que prometem revolucionar a computação e as comunicações. Não se trata de novos avanços teóricos, mas sim de novos desenvolvimentos práticos, alicerçados na teoria que se conhece há muito. A teoria quântica está bem e recomenda-se!

Não demorou muito a reconhecer, a meio dos anos de 1920, que tanto as matrizes de Heisenberg como a equação de onda de Schrödinger descreviam probabilidades. Einstein, que contribuiu em 1905 para a teoria quântica, com a sua explicação do efeito fotoeléctrico com base na natureza corpuscular da luz, foi das pessoas que mais duvidou das ideias de probabilidade que estão por detrás dos trabalhos de Heisenberg e Schrödinger.  Ele declarou que «Deus não joga aos dados», ao que Bohr respondeu: «Não compete a si, Einstein, dizer a Deus o que Ele deve fazer». Schrödinger partilhou em boa parte as dúvidas de Einstein: o famoso gato que tem o seu nome não passa de uma objecção à sua própria teoria. Tudo indica que o mundo das partículas atómicas é mesmo regido por probabilidades. E as aplicações que hoje se anunciam tiram partido desse estranho mundo das probabilidades. Como disse Fernando Pessoa sobre a Coca-cola, a propósito da teoria quântica poder-se-ia afirmar que «primeiro estranha-se, depois entranha-se.»

As descobertas de Heisenberg e Schröedinger foram momentos «eureka» experimentados por duas mentes isoladas em geografias muito distintas. Os diálogos entre eles e com outros físicos, à cabeça dos quais estava Bohr, mostravam que era possível uma comunhão de ideias. Heisenberg, com  apenas 23 anos (receberia o Nobel em 1932, com 31), mas já docente na Universidade de Göttingen, foi, em Junho de 1925, curar-se de uma arreliadora febre dos fenos numa pequena ilha do arquipélago alemão da Heligolândia, no mar do Norte. Foi neste cenário que ele, trabalhando no problema do átomo de hidrogénio, teve a sua epifania. O próprio autor conta a descoberta no seu livro Diálogos sobre Física Atómica (Verbo, 1976; o original alemão é de 1969), uma obra que me deliciou enquanto estudante universitário: 

«No primeiro momento senti-me profundamente emocionado. Tinha o pressentimento de que através da superfície dos fenómenos atómicos entrevia um fundo subjacente de beleza interior fascinante, e que quase desmaiava ao pensar que agora tinha de continuar em contacto com esta série de estruturas matemáticas que a Natureza abrira perante mim. Estava de tal modo impressionado que não conseguia pregar olho.» 

Eram três da manhã e o físico, iluminado como estava, saiu de casa para a escuridão da noite, subiu a um penhasco frente ao mar e esperou pelo nascer do sol acima do imenso oceano. O encontro com a teoria quântica parece quase místico…

Por sua vez, a epifania de Schrödinger teve lugar numa vivenda em Arosa, perto de Davos, nos Alpes suíços, em Dezembro de 1925, quando ele tinha 39 anos (receberia o prémio Nobel em 1933). Deixando a mulher em casa, o físico tinha ido passar férias de Natal com uma ex-namorada. O seu casamento era «aberto»: a esposa, com quem esteve casado até ao fim da vida, tinha na altura um amante matemático, colega do marido na Universidade de Zurique. Foi no silêncio da neve e provavelmente ajudado pelas chamas da paixão erótica que ele chegou à sua celebrada equação. Mas ainda hoje não se sabe quem foi a sua musa. Guardava cadernos com notas diarísticas, mas o caderno de 1925 desapareceu misteriosamente. É como que um mistério quântico que talvez nunca se venha a desvendar. Schrödinger haveria de ter outras amantes ao longo da vida, mas o pico da sua carreira foi atingido naquele Inverno envolto em sensualidade. 

Tanto Heisenberg como Schrödinger foram grandes humanistas, homens das «duas culturas». Já referi o livro de Heisenberg que o revela – ele discutia temas filosóficos com colegas em passeios na montanha e tocava piano em serões domésticos. Por sua vez, Schrödinger tinha igualmente preocupações filosóficas. Um dos seus livros, que também li enquanto estudante, foi Vida, Espírito e Matéria (Publicações Europa-América, 1963, há uma reedição em fac-simile recente). O primeiro texto desse volume, «Que é a vida?» (original de 1944), fala da vida, tendo sido premonitório da moderna genética, ao passo que o segundo, «Matéria e espírito» (original de 1956), fala da base física da consciência, do futuro do conhecimento e do diálogo entre ciência e religião.

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