sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

SOBRE A MORTE

Texto meu que saiu no livro de Paulo João Santos, Encontros com a Morte (Oficina da Escrita):

Dizer que a morte é o fim da vida é uma definição muito redutora, pois a vida – entendida não na sua dimensão individual, mas como um fenómeno colectivo – não só se prolonga para além da morte de cada ser vivo, como tem necessariamente de incluir a morte para que as espécies assegurem o seu normal desenvolvimento. A vida pressupõe a reprodução, mas tornar-se-ia rapidamente impossível a vida conjunta de todos os indivíduos se acaso não houvesse morte, até pela exaustão de recursos ambientais. Para que uns tenham a oportunidade de viver, outros têm de morrer. A evolução das espécies assenta na mudança de características de uma população ao longo de várias gerações, sendo a morte parte inextrincável desse processo.  Morrer é a coisa mais natural da vida. E, no entanto, sendo a biologia como é, nós, humanos, encaramos a morte como um mal. E temos medo dela. Talvez para exorcizar esse medo, tendemos a projectar, para além dela, uma vida não material, que não se sabe bem o que será. Somos os únicos seres vivos que imaginam e desejamos vidas para além da morte.

Como é que eu vejo a morte, em particular a minha. Morrerei como toda a gente. Mas não penso nisso. Julgo que viver o dia-a-dia é, para todos ou quase todos, esquecer a morte. Procuro não me lembrar da morte, embora tenha a certeza de que ela um dia se vai lembrar de mim. Consta que o norte-americano Richard Feynman, Prémio Nobel da Física de 1965, terá dito no leito de morte, para onde o tinha lançado uma doença fatal: «Não gostaria de morrer segunda vez. É tão aborrecido.” Sei que há quem acredite na reencarnação, mas eu acredito que a vida é única, isto é, para cada indivíduo, irrepetível. Só conto morrer uma vez. Se me pedem para pensar nesse momento, direi que, gostando de viver (costumo dizer que, se aparecer morto, investiguem bem porque não fui eu), espero que ela seja o menos má possível, isto é, tardia e, tanto quanto possível, indolor. De facto, temo mais o eventual sofrimento do que propriamente a morte.

Sei que a morte não se faz sem sofrimento, próprio e alheio. Já sofri a morte de familiares e amigos, que me fizeram passar um mau bocado. A morte não passa do fim da existência de um ser humano, o que está longe de significar o fim da existência da espécie humana, e procuro tirar consolação desse facto. Somos mortais, mas a nossa espécie terá, se tiver juízo, um longo futuro à sua frente, tal como já tem um prolongado passado. O mundo não acaba quando cada um de nós acabar: de nós ficam os genes, passados à prole (embora não seja obrigatório tê-la), assim como ficam, para usar um dito proverbial, as árvores que plantámos e os livros que escrevemos. Fica, espero, alguma memória de nós, tanto biológica como cultural. Confesso que sou um optimista: acredito que o mundo pode ser melhor. Eu, que prefiro a república à monarquia, acharia insuportável ser governado por um velhinho D. Afonso Henriques. Tal como na biologia, na sociedade a morte é também uma condição de renovação e de progresso.

Embora não tendo a certeza (um cientista não deve ter certezas!), estou em crer que não sobreviverei à minha morte, a não ser no sentido de deixar alguma memória. Olho para uma minha ficha bibliográfica na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que já tive a honra de dirigir, e leio “1956 -  “. Sei que, um dia, um bibliotecário preencherá o espaço depois do tracinho, podendo desde já assegurar que o ano será posterior a 2022. Consegui, felizmente sem dificuldades de maior, chegar à idade que tenho. Em séculos anteriores dificilmente isso teria acontecido. Conforta-me bastante a ideia – espero que não me acusem de vaidade – de que os meus escritos me sobrevivam, devidamente catalogados e acessíveis, para memória futura. As palavras sobrevivem ao corpo. 

A pergunta é inevitável: mas não acredita que a alma sobreviva ao corpo? Embora a palavra “alma” continue a fazer sentido para muitos, prefiro chamar “mente” ao que dantes se chamava “alma.” E, neste quadro, a minha resposta é clara: não, não acredito. Estou em crer que a minha mente precisa do meu corpo, muito em particular do meu cérebro. E não fico nada aborrecido com isso. Quando não estiver cá o meu cérebro e, portanto, a minha mente, haverá, com certeza, outras que mais do que compensarão a falta da minha. E elas, poderão, ainda que de uma forma grosseira, comunicar com a minha através do que deixei. Os livros mostram-nos que, num certo sentido, é possível “comunicar com os mortos.” Como disse o astrofísico e comunicador de ciência americano Carl Sagan, em Cosmos, ao abrir um livro, “ouve-se a voz de outra pessoa – talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos.”

Quem sou eu? Um ser humano nascido em 1956, quando os genes do meu pai e da minha mãe se mesclaram. Eu não me lembro desse meu big bang, mas tenho boas razões para acreditar que já fui um minúsculo óvulo fecundado. Cresci e apareci. Decerto que o meu “eu” é mais que uma colecção de células, mas não existe sem essa colecção de células, entre as quais muitos neurónios. A questão da identidade pessoal, associada à questão da consciência, é para a ciência ainda hoje um mistério. Mas não desistimos de procurar mecanismos cerebrais, isto é, neuronais, da consciência. A minha consciência foi-se fazendo, à medida que os meus neurónios se multiplicavam. Eu sou ainda a criança e o jovem que fui, mas sou, definitivamente, uma outra pessoa, moldada pela experiência da vida, resultado de inúmeros desejos e incidentes. A experiência da vida – a passagem pelo tempo em imprescindível interacção com o ambiente – causa efeitos, uns bons e outros nem tanto.

Envelhecemos, que é como quem diz desgastamo-nos. Esse é um fenómeno natural, é uma condição da matéria da vida, tal como de outra matéria. A biologia faz o que pode para contrariar esse processo de desgaste: as células, cada uma delas com o nosso ADN, vão sendo restauradas; vão-se dividindo ao longo da nossa vida; e algumas, porque defeituosas, são mesmo eliminadas para não causarem danos. Ao fim de algum tempo, a maioria das nossas células foram renovadas. Umas renovam-se mais rapidamente do que outras. O curioso é que as células do cérebro são das mais estáveis, em suporte da ideia de que esse órgão é um bastião da nossa identidade (em menor escala, o mesmo se passa com o coração, em suporte da ideia antiga que o coração é o nosso centro). À medida que o tempo passa, o processo de renovação celular torna-se, porém, cada vez mais difícil. O médico francês Jacques Ruffié, autor de O Sexo e a Morte (Dom Quixote, 1987) diz que “o envelhecimento é um fenómeno banal, constante”, isto é, em qualquer idade estamos a envelhecer e não apenas quando somos velhos. A morte, quando não sucede por um azar de qualquer tipo, é um resultado natural do envelhecimento. Como disse o sociólogo francês Edgar Morin, que já tem mais de cem anos, o envelhecimento é “a vanguarda da morte.” A morte é inevitável porque não podemos evitar envelhecer.

Embora possa parecer estranha a quem nunca ouviu falar dela, vale a pena acentuar a relação profunda que há entre o sexo e a morte. O sexo é aquilo que permite aos seres vivos como nós ultrapassar a morte, ao prolongar a espécie no futuro, continuando a “árvore da vida”. Nos seres sexuados é maior a miscigenação dos genes (uma bela “invenção” da evolução!) e com isso as possibilidades de êxito evolutivo. Mas a morte é a contrapartida obrigatória. Ruffié abordou essa dicotomia no referido livro: “A morte é um fenómeno biologicamente necessário, sem o qual a sexualidade estaria sem objectivo”. E, noutro passo: “O sexo e a morte são dois tributos que pagamos ao progresso evolutivo. São dois fenómenos complementares, mas surpreendentemente contrastados. O primeiro ocorre na alegria, no prazer, e na esperança; o segundo no sofrimento, no horror e no vazio”. Na mitologia grega já coexistiam Eros e Tanatos, os deuses da vida e da morte. Pareciam radicalmente opostos, mas a biologia moderna veio relacioná-los.

Na mesma linha de Ruffié, escreveu o geneticista francês Albert Jacquard, em A Herança da Liberdade: da animalidade à humanitude (Dom Quixote, 1988), sobre a morte: “Esse desaparecimento é necessário: é a contrapartida da capacidade de procriar. (…) Os seres que dispõem do poder singular de fazer um a partir de dois, de dar existência ao imprevisível, de criar, têm o privilégio de serem únicos, o que implica que um dia desapareçam. O procriador tem de dar lugar ao procriado. Todos os seres ditos ‘sexuados’ partilham este poder e pagam o preço do desaparecimento: mas só o homem tem consciência disso.” A permanente consciência da perenidade é o nosso drama.

Com o avanço da tecnologia, temos tentado uma miríade de possibilidades para prolongar cada vez mais a nossa vida, atenuando o drama, sem o eliminar: a moderna medicina, fundada no conhecimento da biologia, tem conseguido com sucesso adiar a morte, mas sem nunca a vencer. Há quem acalente o ingénuo sonho de descobrir o elixir da imortalidade, ou, pelo menos, o elixir da longa vida, que permita viver mais do que viveu a francesa Jeanne Calment, falecida aos 122 anos, a mais longeva de todos os humanos, pelo menos nos tempos mais recentes. Mas, como diz Ruffié, “a imortalidade biológica continuará para sempre a ser um mito fora do nosso alcance.” A morte nunca será vencida, porque não o pode ser.

Embora sabendo que a Natureza impõe a morte, sei bem que o homem quer resistir tanto quanto pode ao seu destino. Resiste fisicamente e resiste mentalmente. Também sei que não somos só um conjunto de células e que a ciência não explica todas as dimensões do humano. Somos seres espirituais e essa nossa espiritualidade sobressai especialmente no confronto com a morte. Temos a capacidade de acreditar na transcendência e longe de mim a ideia de apoucar a crença no divino e a esperança de vida eterna que tantos partilham. O facto de eu não precisar de me agarrar à ideia de vida eterna não implica que não entenda que outros precisem dela. De facto, a maioria dos seres humanos não podem passar sem Deus. Somos todos iguais, todos membros da espécie Homo sapiens, mas também todos diferentes. Possuímos uma estrutura biológica semelhante, mas temos experiências sociais e culturais bastante distintas. E necessidades diversas.

Repito, para que a ideia se instale: Do ponto de vista científico, a morte não é um problema, é uma solução. Mas, do ponto de vista filosófico e, obviamente, também teológico, é mesmo um problema: a morte é vista como um mal. Por que razão é considerada um mal? Porque será a ausência de eternidade individual um mal? Não poderia o contrário da morte, a eternidade, ser um mal maior, uma vez que acabaria por se tornar um tédio infinito? Há, na história das ideias, alguns argumentos sobre a morte que gostaria aqui de invocar. Os dois são muito antigos. Um deles é de Epicuro, o famoso filósofo grego dos séculos IV e III a.C., que, na sua Carta a Meneceu, nos sossega: “Portanto, o mais atemorizador dos males, a morte, nada é para nós, porque, quando existimos, a morte não está presente e, quando a morte está presente, não existimos. Deste modo, ela nada é nem para os vivos nem para os mortos, porque os primeiros não a têm e os últimos já não existem.” E o outro é de Lucrécio, o filósofo romano do século I a.C., autor no poema latino De Rerum Natura, em português “Da Natureza das Coisas” (também o nome do blogue que mantenho, com outras pessoas, há muitos anos): “Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a porção de eternidade que se passou antes do nascer. Eis o espelho que a Natureza nos apresenta do tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é tudo muito mais seguro do que o sono?”

Termino, voltando a Jacquard: “Que eu nasci, é um facto; que morrerei, é uma certeza, mas não é ainda um facto. Entre estes dois acontecimentos – um real, perfeitamente situado no tempo, o outro virtual, com data imprevisível – envelheço. A minha idade é a medida do esgotamento progressivo do tempo que os separa.”  O  meu pai, que não tinha uma grande instrução e que infelizmente já faleceu, dizia, na velhice: “Quem já muito andou não tem muito para andar.” Ser temporalmente limitado é uma condição de cada ente humano e a consciência disso é uma manifestação de sabedoria.

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