sábado, 23 de novembro de 2024

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho
 
Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim.

Quando dou uma aula, ainda dou muitas, o entusiasmo e a energia que ponho na voz situam-me nos meus anos de docência, mas o facto de ter de a dar sentado, coisa que outrora nunca fiz, diz-me que esse tempo já passou há muito.

Quando olho para dentro de mim, tanto posso ser a criança ou adolescente, como o activo adulto que fui, mas, na rua, as irregularidades da calçada, ao fazerem-me procurar, na bengala, a segurança e o equilíbrio que perdi, dizem-me a mesma desconfortável verdade.
 
Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor do computador, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Bem sentado no autocarro, tenho a idade daquele ou daquela que vai ao meu lado e, se acontece falarmos, irmano-me com ele ou com ela e só me dou conta da idade que carrego sobre os ombros, ao descer do dito, naquele degrau que nunca me pareceu tão alto.
 
Muitas outras realidades me dizem, todos os dias, que sou mais um entre os muitos velhos deste belo e, desde sempre, mal governado país. São os meus antigos alunos, agora de cabelos brancos, muitos deles pensionistas como eu. São os meus netos, já adultos e com barba, são as consultas médicas, as idas frequentes ao Hospital e aos Centros de Saúde e o exagerado número de fármacos diários ao pequeno-almoço, almoço e jantar.
 
Diz-se que os velhos só têm o presente, o que não está longe da verdade. Não têm passado nem futuro. O passado perderam-no, sem darem por isso. Uns mais do que outros, podem guardá-lo na memória e é tudo o que dele lhes resta. Quanto ao futuro, esse foge-lhes por entre os dedos, como a areia. A diminuição progressiva das suas capacidades rouba-lhes a ideia de futuro. Não lhes permite fazer planos. Vivem, como se ouve dizer, “um dia de cada vez”. Preparar uma palestra e proferi-la, fazer uma conversa, onde quer que seja, e escrever algo sobre o que me parecer dever fazer, cabem dentro deste horizonte de vida.
 
É nesta tranquila certeza que, nos meus 93 anos já vividos, organizo as 24 horas do dia, de todos os dias. 
 
Proferi ontem a última de cinco conversas de um minicurso de Geologia, Como Bola Colorida, numa perfeita organização do Âmbito Cultural, do El Corte Inglés. Casa cheia todos os dias. Eram só idosos, da primeira à última fila de cadeiras, e eu era o mais idoso de todos eles. 

É nesta tranquila certeza que me dou conta da exiguidade do meu horizonte de vida, face ao muito que ainda tenho em mente e gostaria de fazer, e nesse muito está, por um lado, escrevendo e falando, deixar aos meus concidadãos o que a vida e a profissão me ensinaram e, por outro, continuar a exercer o que entendo ser o meu dever de cidadania. 
 
Neste dever estão as lutas (lutas, sim, porque é de lutas que se trata, sempre morosas e difíceis de vencer) que continuo a travar com os governantes e outros decisores, pela valorização e salvaguarda do nosso património geológico.

A. Galopim de Carvalho

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decenteNuno Dias da Silva entrevistou-a para a revista Ensino MagazineEis o essencial da mesma, do ponto de vista educativo (sublinhados meus).

"As redes sociais (...) em nome da liberdade de expressão, tornaram-se um autêntico faroeste, onde tudo é permitido e inclusive amplificado por causa dos algoritmos. Este ambiente acaba por ser transferido para o mundo real, nomeadamente nas conversas entre as pessoas e até nos painéis de comentários televisivos

Escrevi recentemente um ensaio no Expresso sobre a história da decência em que falo da Janela de Overton. De acordo com a descrição deste politólogo, na década de 90, a sua janela incluía uma gama de ideias consideradas politicamente aceitáveis no clima atual da opinião pública (...). O espetro da aceitação das ideias variava nas seguintes dimensões: impensável, radical, aceitável, sensível, popular e politicamente implementada (...). a proliferação da internet permitiu o escancarar da Janela de Overton. Determinadas ideias que há uns anos se admitiam como impensáveis ou ultraradicais hoje em dia vêmo-las em todo o lado (...).

Em 2014, estive na sede do Facebook em Silicon Valley – um dos trabalhos que mais me marcou na carreira –, onde conheci a unidade que trabalha com o algorimo base do Facebook. As pessoas não têm a noção do quão importante pode ser o algoritmo, com a criação das tais bolhas virtuais, para a forma como as pessoas formam a sua visão da realidade concreta. E isto torna-se ainda mais preocupante quando é certo e sabido que a maior parte das pessoas procura informar-se através das redes sociais.

Churchill dizia que «uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir.». Com a internet, e a velocidade de propagação planetária que existe, a mentira já deu a volta ao mundo, mesmo antes de a verdade abrir a pestana (...).

Sempre existiram ideias consideradas indecentes na sociedade. A diferença é que a vergonha era um fenómeno de regulação social. Existia uma censura social perante uma ideia considerada chocante ou ofensiva. Nesse sentido as redes sociais marcam uma nova era: a vergonha como regulador social esvaiu-se muito porque as pessoas encontram bolhas onde as suas ideias – por mais chocantes que sejam – acabam por ser respaldadas (...).

A política da lógica e da razão faz parte do passado e hoje o que impera é a política das emoções.

Interpelada pelo entrevistador sobre o que diria se fosse a uma escola falar do livro disse:

A mensagem fundamental a passar aos jovens é fazerem o exercício, tão simples e tão complexo, de procurarem colocar-se no lugar do outro, sentirem os problemas dos outros. (...) A tolerância é o óleo do motor da sociedade e da democracia.

FOI PUBLICADO O ÚLTIMO LIVRO DE EUGÉNIO LISBOA

Otília Pires Martins teve a amabilidade de me enviar notícia da publicação, a título póstumo, do último livro de Eugénio Lisboa, Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso.
 
A obra, composta por trinta e um sonetos, inclui uma nota introdutória de Onésimo Teotónio de Almeida e fotografias legendadas de Otília Pires Martins.

Na recente apresentação pública destaco o belíssimo texto de Manuel S. Fonseca, editor da Guerra e Paz, e o Última Edição de Luís Caetano, que lhe é dedicado. Aqui podemos ouvir Eugénio Lisboa, a ler poesia e a falar sobre ela.
 
Alguns dos sonetos que constam no Manual foram partilhados pelo seu autor com os leitores do De Rerum Natura. Ficamos-lhe eternamente gratos.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossível alhearmo-nos, outra vai em quatrocentos dias e há que lhes somar algumas de menor escala e dezenas de conflitos armados por todo o mundo. 
 
Devemos perguntar: o que é feito do pacto das nações para "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra", para "praticar a tolerância e viver em paz"? O que é feito dos valores éticos que tínhamos por estabelecidos? Pensávamos: aqui chegados, aqui estamos e será para sempre. 
 
Não foi. Enganámo-nos: um a um, esses valores esboroaram-se, deixámos que isso acontecesse. A privacidade, a tolerância, a igualdade, a liberdade, a fraternidade (uma das bandeiras do Iluminismo, quem fala dela?) a democracia... a paz e, acima de tudo, a dignidade humana voltaram a ser palavras apenas. 
 
E isto tudo é humano. Todo o esforço de compreensão que possamos - e devamos - fazer tem de partir desta assumpção.

Preâmbulo (aqui).
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. 
 
E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso económico e social de todos os povos.

A NOVA LINGUAGEM DA EDUCAÇÃO E... DA MEDICINA!

Soube há poucos dias que não é só a linguagem educativa que tem perdido expressões que lhe são (ou eram) específicas, que lhe conferem (ou conferiam) identidade; parece que o mesmo acontece na medicina.

O artigo do Público que me alertou para tal é assinado por António Sarmento e  remete para um outro saído em 2011, sinal de que o problema está identificado há anos neste campo, tal como no da educação. 

Em ambas as áreas, as expressões que se impõem em primeiro lugar vêm do mundo empresarial e são muitas delas iguais.

Diz-se logo no resumo desse artigo, saído numa revista de medicina:

"Na nova linguagem da medicina, os pacientes são clientes ou consumidores; médicos e enfermeiros são provedores.

No campo da educação, tal como mostrámos em textos anteriores (por exemplo aqui, aqui, aqui, aqui), os alunos e famílias são clientes ou consumidores, os professores ou agentes similares são provedores ou fornecedores, as escolas são substituídas por ecossistemas...

Mais se diz nesse resumo:

"As palavras que usamos para explicar os nossos papéis definem expectativas e moldam o comportamento. Esta mudança na linguagem da medicina tem consequências importantes e destrutivas."

O mesmo se aplica à educação: a imposição da "narrativa" da educação do futuro / do século XXI (1) foi um passo fundamental na estratégia de corrosão da sua essência, para impor outra coisa, evidentemente.
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(1) Assim mesmo designada pelas entidades económico-financeiras que insistem em determinar os desígnios do mundo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

"Crise da transmissão e febre da inovação"

Vale a pena ler o artigo de que se reproduz a identificação ao lado.
 
O seu autor, o francês François-Xavier Bellamy, professor de Filosofia e deputado no Parlamento Europeu, assina vários livros que tocam  a educação escolar, entre os quais está um com significativa divulgação em Espanha e em Portugal: Os deserdados.

O texto é resultado de uma conversa conduzida por Tania Alonso-Sainz, traduzida por Bianca Thoillieze e transcrita por Laura Suárez Gil. Essa conversa, que aconteceu à distânci, em 20 de novembro de 2020, inscreve-se nos Diálogos sobre educación organizados pela revista Teoría de Educación. Revista Interuniversitaria.
 
Bellamy não é propriamente inovador ao recordar por exemplo que:
aquilo que se apresenta como novo se tornou sinónimo de melhor do que aquilo que existiu ou existe;
não é por algo ser novo que é necessariamente bom, como não é por algo ser antigo que é necessariamente  mau;
a construção do futuro precisa do conhecimento relevante que vem do passado;
a criatividade e a liberdade dependem substancialmente desse conhecimento que nos foi legado;
a oposição entre progressistas e conservadores redunda numa falácia;
a inovação é... antiga, sempre existiu e é nada menos do que fundamental
...

Não é propriamente inovador, mas é importante repetir o que certos discursos parecem querer fazer esquecer. Assim, se me é permitido, recomendo a leitura desta conversa que aconteceu entre... jovens!
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Referência do artigo: Bellamy, F.-X. (2021). Crisis de la transmisión y fiebre de la innovación. Teoría de la Educación. Revista Interuniversitaria, 33(2), 169-178. https:// doi.org/10.14201/teri.25407

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Sociedade Civil

Sociedade Civil: Físicos - A Física pode ser divertida... é uma ciência focada no estudo de fenómenos naturais, com base em teorias, através da observação e ex

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

EGAS MONIZ E JÚLIO DINIS

Meu artigo saído no As Artes entre as Letras:

No ano da celebração dos 150 anos do neurologista António Egas Moniz (1874-1955) e os 75 anos do seu Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina (1949), o único até agora obtido por um português em áreas das ciências, convém lembrar que ele era um homem das «duas culturas», ainda que esta expressão só tenha surgido em 1955 (foi cunhada pelo escritor inglês Charles P. Snow numa famosa conferência em Cambridge).

Falando apenas de literatura (nas artes plásticas, abordou as obras do pintor António da Silva Porto e do escultor Maurício de Almeida), Egas Moniz foi não só biógrafo e crítico do escritor Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Gomes Coelho (1839-1871), como prefaciador de uma boa parte da sua obra. Além disso, tratou nas suas conferências e escritos de autores como Gil Vicente (c. 1465 – c. 1536), Padre António Vieira (1608–1697), Camilo Castelo Branco (1825–1890), João de Deus (1830–1896), Abílio Guerra Junqueiro (1850–1923), Teixeira de Pascoaes, pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos (1877–1952), e Júlio Dantas (1876–1962). Um padrão que ressalta é o apego do laureado Nobel a autores clássicos. E os estilos dos dois nomes seus contemporâneos eram de algum modo tradicionais. Na primeira metade do século XX, quando a arte fervilhava de novas correntes, Egas Moniz não mostrou grande gosto pelas novidades, não se aventurando na apreciação e divulgação de autores mais revolucionárias. É certo que conheceu pessoalmente Fernando Pessoa (1888–1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890–1916), mas isso aconteceu no seu consultório, sendo eles pacientes. É paradoxal que um autor de inovações na ciência médica (a arteriografia cerebral e a leucotomia pré-frontal, esta última conducente ao Nobel) tenha primado por escolhas estéticas conservadoras. Mas o mesmo aconteceu com cientistas seus contemporâneos, dos quais o maior, Albert Einstein (1879–1955), tinha gostos musicais que não iam, na linha do tempo, muito além de Schubert. 

Mas, mais do que este desajuste relativamente à evolução da arte no seu tempo, importa realçar o facto de Egas Moniz ter sido, além de médico e investigador, arguto crítico literário, e o facto de ter uma escrita elegante – basta ler A Nossa Casa, de 1950, o seu livro com reminiscências da juventude, passada em boa parte em Avanca, Estarreja. Nunca foi, porém, um ficcionista. O escritor Alexandre Cabral, pseudónimo de José dos Santos Cabral (1888 – 1935), especialista na obra de Camilo, numa conferência que deu em 1950, portanto logo após o Nobel de Moniz, intitulada Aspecto literário da obra do Professor Egas Moniz, n’A Voz do Operário em Lisboa, publicada pela Portugália, refere textos do laureado onde descortina recursos estilísticos que são mais próprios da ficção do que do ensaio. Escreveu: «Surpreende verificar como o Prof. Egas Moniz tem encontrado, fora das suas ocupações de médico e de investigador, o tempo suficiente para se dedicar à literatura e à crítica de arte, o que de resto tem feito com imenso brilho.» Egas Moniz, além de veia científica, também tinha veia literária.

Sabendo que estou bem longe de ser o primeiro, interessa-me realçar aqui o valor que Egas Moniz acrescentou ao legado de Júlio Dinis, o médico-escritor portuense que morreu de tuberculose aos 31 anos. Egas Moniz terá encontrado afinidades com ele por ambos serem médicos e por Júlio Dinis ter vivido em Ovar, terra próxima de Avanca (foi em Ovar que Júlio Dinis escreveu As Pupilas do Senhor Reitor), embora não tenham convivido: o escritor morreu três anos antes de Egas Moniz nascer.

Há poucas semanas, nos alfarrabistas que gosto de frequentar, veio ter às minhas mãos o volume de Egas Moniz Júlio Dinis e a sua Obra (Livraria Civilização, do Porto), na 6.ª edição, revista e actualizada pelo autor, que, embora sem indicação de data pela editora, tem uma «advertência» inicial do autor que data de 1946. Esta obra é abrilhantada por uma carta-prefácio de Ricardo Jorge (1858–1939), onde este médico (do Porto como Júlio Dinis) exibe a sua extraordinária qualidade literária. Escreve Ricardo Jorge: «A Medicina e os médicos têm invadido em onda crescente o âmbito da crítica histórica, artística e literária – volta-se aos tempos da Renascença em que letras e ciências, humanismo e hipocratismo, se irmanavam como filhos do mesmo Apolo.» Em particular, ele chama a atenção para a leitura psicanalítica que Egas Moniz fez de parte da obra de Júlio Dinis (o cap. XVIII é sobre «Júlio Dinis e a Psicanálise», tema de uma conferência que Egas Moniz deu em 1924, ano da 1.ª edição de Júlio Dinis e a sua Obra, na Casa Ventura Abrantes, de Lisboa). De facto, Egas Moniz foi pioneiro na recepção de Sigmund Freud (1856-1939) em Portugal. Júlio Dinis e a sua Obra, ao mesmo tempo biografia e análise crítica, está enriquecido com textos inéditos do romancista. Com efeito, Egas Moniz procurou junto de familiares e amigos do médico-escritor o espólio não publicado. 

Na badana direita deste livro, a editora Livraria Civilização, dirigida por Américo Fraga Lamares, filho do fundador, lista as Obras Completas de Júlio Dinis. Depois das obras saídas em vida, bem conhecidas (As Pupilas do Senhor Reitor, Os Fidalgos da Casa Mourisca, A Morgadinha dos Canaviais, Uma Família Inglesa, e o primeiro volume dos Serões da Província), a editora elenca os outros volumes de Júlio Dinis, todos eles apresentados e organizados por Egas Moniz. A saber: Serões da Província (2.º volume, contendo as novelas póstumas), Cartas e Esboços Literários, Poesias, Teatro Inédito (em três volumes, contendo peças por ordem cronológica de edição) e, finalmente, como «complemento indispensável» à edição das Obras Completas de Júlio Dinis, é incluída Júlio Dinis e a sua Obra. Assim, os nomes de Júlio Dinis e de Egas Moniz ficaram ligados para sempre, dando um bom exemplo da junção entre a ciência e a arte. Muitas edições se seguiram, com os dois nomes juntos.


D. JOÃO DE CASTRO E LUÍS DE CAMÕES


Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:

Luís de Camões (C. 1524-1580) nasceu provavelmente no mesmo ano em que Vasco da Gama (1469-1534) viajou pela terceira vez para a Índia e morreu. É natural que falemos mais dos 500 anos do nascimento de Camões do que dos 500 anos da morte de Gama. Porém, não deixa de ser uma coincidência curiosa essa sobreposição de datas do nosso maior vate e do nosso maior descobridor.

Entre 1557 e 1570 (treze longos anos!) Camões viveu no Oriente, na maior parte do tempo na Índia, onde Gama tinha chegado em 1498. Essa experiência é muito posterior ao curto período em que Vasco da Gama foi vice-rei e governador da índia (1524) e ao período, esse maior, em que o seu filho D. Estêvão da Gama foi governador da Índia (1540-1542). E é também ulterior ao período em que D. João de Castro foi primeiro governador da Índia (1545-1548) e depois também vice-rei desse Estado (1548). Os Lusíadas, publicados originalmente em 1572, contam a história da viagem de Vasco da Gama e, ancorando-se nesta, a história de Portugal. Camões fala no canto I (estância 14) do «Castro forte» (acrescentando «e outros em quem poder não teve a morte») quando enumera alguns heróis que se notabilizaram na Índia. O poeta, para usar o adjectivo «forte», conhecia decerto a história do violento segundo cerco de Diu, ocorrido em 1546, para cujo desfecho a acção de D. João de Castro foi decisiva.

D. João de Castro (1500-1548) é mais conhecido como homem de Estado e chefe militar. Mas ele foi também um cientista: geógrafo e cartógrafo, mas acima de tudo, geofísico, podendo ser considerado o primeiro geofísico global. Fez duas viagens na carreira da Índia desde Lisboa até Goa e nelas efectuou medidas sistemáticas de meteorologia, de oceanografia e de magnetismo terrestre. Os seus estudos do magnetismo ajudaram a refutar a tese de que era possível conhecer a longitude através de medições com uma bússola. No Oriente, empreendeu o reconhecimento de costas do Mar Índico e do Mar Vermelho (na altura chamado Mar Roxo). Ele foi o autor de três roteiros com o seu nome que ficaram justamente famosos: Roteiro de Lisboa a Goa (1538), Roteiro de Goa a Diu (1538-1539) e Roteiro do Mar Roxo (1540-1541). Esses escritos permaneceram como manuscritos até ao século XIX, quando foram impressos e começaram a ser comentados. Onésimo Teotónio Almeida, no seu livro O Século dos Prodígios (Quetzal, 2018), chamou a atenção para a modernidade de D. João de Castro que está plasmada nesses roteiros (assim como nas outras suas obras), designadamente na sua atitude empírica que precedeu a criação da ciência moderna no final do século XVI e ao longo do século XVII. Logo a seguir a tratar a modernidade do geofísico quinhentista, Onésimo aborda a modernidade do autor de Os Lusíadas, que veio na linha da de D. João de Castro. Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra conservam-se Tábuas dos Roteiros das Índia, de D. João de Castro, que contêm magníficos desenhos a cores de lugares daquelas costas, que são cópias de originais desaparecidos (são 29 tábuas no total, das quais 15 do segundo roteiro e 14 do terceiro). Essas imagens revelam observações muito cuidadosas. Constituem uma espécie de Google maps do século XVI, enriquecidos com pormenores artísticos que nos informam sobre a presença portuguesa desse tempo no Oriente. 

Uma das traves-mestras do método científico para além da observação e experimentação é a sua combinação com o raciocínio lógico. Repare-se como D. João de Castro chama a atenção para a necessidade desse elo, no Tratado da Esfera, um manuscrito que lhe é atribuído: «É necessário aqui o sentido obedecer ao entendimento, e como cego deixar-se guiar por ele, porque certo está que em muitas coisas nos enganaram os sentidos, se não fossem guiados e examinados pelo entendimento. Julgando somente pelo sentido, todos julgaríamos que o sol é pouco mais ou menos como uma roda de carro, e estas estrelas como umas laranjas, e ficaríamos nisso muito enganados, pois o entendimento tem demonstrado, e está nisso convencido, ser o sol e muitas estrelas muitas vezes maiores que toda a terra. Engana-se a cada passo o sentido dos brutos com as semelhanças das coisas, tendo-as por verdadeiras porque não é ajudado de algum entendimento.»

Luís de Camões, que é quase contemporâneo de D. João de Castro, partilha a atitude empírica deste assim como a mundividência que dela decorre. No canto V (estrofe 17), sobreleva a experiência dos homens do mar: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pela aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal-entendidos.» E, mais à frente no mesmo canto V (estrofe 23), enfatiza as novidades que os Descobrimentos tinham trazido face ao saber antigo: «Se os antigos filósofos, que andaram/ Tantas terras, por ver segredos delas,/ As maravilhas que eu passei, passaram,/ A tão diversos ventos dando as velas,/ Que grandes escrituras que deixaram!/ Que influição de signos e de estrelas!/ Que estranhezas, que grandes qualidades!/ E tudo sem mentir, puras verdades.»

No volume IV das Obras Completas de D. João de Castro (eds. Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1982), o historiador holandês Reijer Hooykaas, no artigo em inglês inserido em apêndice «Science in Manueline Style», considera D. João de Castro o mais moderno de todos os autores do século XVI, por ter valorizado a observação, a experimentação e o raciocínio. Onésimo Almeida, que tem insistido sobre a relevância desse texto, faz, em O Século dos Prodígios, o paralelismo com Camões: este «experimentou e viu claramente visto, aprendeu num saber de experiência feito, naquela viagem de 1553, que o mundo estava em grande mudança e experimentá-lo era o primeiro passo para a sua compreensão.»


COMO PERDER AMIGOS RAPIDAMENTE


Meu prefácio ao livro Como Perder Amigos Rapidamente, de David Marçal (Gradiva):

Em 1936, saiu um dos livros mais influentes do século passado: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. Foi seu autor o self-made man norte-americano Dale Carnegie (de facto, chamava-se Carnegey, mas mudou o nome para ficar com o apelido do magnata e filantropo Andrew Carnegie). Warren Buffett, um dos homens mais ricos do mundo, diz que o leu com proveito aos 20 anos, ostentando no seu escritório o diploma do curso que fez no Carnegie Institute (o Carnegie é do autor do best-seller e não do filantropo). O livro enriqueceu o autor ao vender para cima de 30 milhões de exemplares em mais de 30 línguas. Há uma edição corrente em português, o que mostra a intemporalidade do género de autoajuda. De facto, as pessoas continuam a precisar de ajuda e muitas autoajudam-se, aumentando o pecúlio dos herdeiros do autor.

O título do David Marçal parece situar-se nos antípodas dos objectivos preconizados por Dale Carnegie. Mas é evidentemente irónico. De facto, há amigos e amigos. Uns podem-se perder sem prejuízo de maior e outros convém manter. Hoje, no tempo das redes sociais, a palavra «amigo» ganhou novos significados: eu, por exemplo, tenho 5000 amigos no Facebook e só não tenho mais porque essa rede não deixa. Vou perdendo alguns, lentamente, o que permite a entrada de quem está na fila de espera. Mas, embora esteja na lista dos 5000, o David é um amigo real e não virtual. Um amigo que não conto perder.

Conheci-o pouco depois de, há 20 anos, Mark Zuckenberg ter criado uma maneira inovadora de fazer amigos. Eu era membro do júri de um concurso do jornal Público que escolhia cientistas para trabalhar alguns meses na redacção da sua secção de ciência. A iniciativa, no tempo de José Mariano Gago (que falta nos faz!), visava aproximar a ciência do público, desenvolvendo a cultura científica. O David, na altura a doutorar-se em Bioquímica, era já um claro talento na divulgação científica. Distinguia-se não só pelo seu conhecimento das matérias e pelo raciocínio arguto, mas também pela sua originalidade e pelo seu sentido de humor. Uma marca dessa qualidade foi o seu projecto «Cientistas de Pé», no qual uma trupe de cientistas fazia comédia sobre temas de ciência: ver o livro Toda a Ciência (menos as partes chatas), que ele e os seus companheiros publicaram na Gradiva em 2013. Um assunto em que se especializou, com proveito para a cultura nacional, foi a pseudociência: a Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou em 2014 um ensaio dele precisamente com esse título. Temos feito muitas coisas juntos, na divulgação científica e não só (já velejei no Tejo no seu barco com um nome estapafúrdio), incluindo quatro livros na Gradiva (o primeiro foi Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência, em 2011). E tem sido sempre uma festa trabalhar com ele. Quando o reencontro, há sempre uma observação criativa e, muitas vezes, uma piada nova. Criámos o podcast Mais Lento do que a Luz, hoje no Público, depois de termos feito no mesmo jornal um outro podcast chamado Assim Fala a Ciência, com o patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ainda no quadro desta Fundação, criámos o GPS - Global Portuguese Scientists, a rede de cientistas portugueses no mundo, e o Mês da Ciência e Educação.  

O David insistiu num meu prefácio para este livro. Ainda retorqui que os meus prefácios estavam algo desvalorizados pela relativa abundância, mas a um amigo nada se recusa. Num livro que fala da perda de amigos, quero esclarecer que, depois de o ler, não perdi esse amigo, bem pelo contrário: passei a admirá-lo mais. A obra que o leitor tem entre mãos é o David no seu melhor: sábio e corajoso. Estou convencido de que, contrariando o título, ele vai não só reforçar os muitos amigos que já tem, mas também fazer novos. Trata-se de uma análise o mais racional possível de um rol de desvarios do mundo actual. Vivemos tempos estranhos: por um lado a capacidade criativa do Homo sapiens permite-lhe viver melhor do que jamais viveu desde que há 300 000 anos começou, em África, a sua jornada na Terra. Mas, por outro lado, nunca foi tão ampla a aparição e tão rápido o espalhamento da irracionalidade. Todos temos dois lados – um racional e outro irracional, mas muitas pessoas esforçam-se alegremente por dar a conhecer o segundo. O paradoxo maior está em que a irracionalidade brota e corre através de meios de comunicação, criados precisamente pela moderna ciência e tecnologia que a nossa espécie desenvolveu nos últimos 300 anos. Não esqueçamos que as redes sociais, nas quais hoje podemos ser cancelados por dizer algo que não seja politicamente correcto, têm por base a ciência. Basta reparar que a World Wide Web foi criada há pouco mais de 30 anos no CERN, o laboratório europeu de Física de Partículas, porque os cientistas queriam partilhar os seus dados, para melhoria do conhecimento comum. No entanto, por essa rede global, passam hoje tanto a verdade como a mentira, sendo, nestes dias de explosão da inteligência artificial, difícil de distinguir entre as duas. Talvez passe mais mentira do que verdade.

Num acto de verdadeiro serviço público, David ajuda a distinguir quem tenha dúvidas. Assim, num certo sentido, este é um livro de autoajuda. Se alguém se sentir perdido na avalancha de palavras, sons e imagens que nos invadiu, o autor dá-lhe aqui um GPS para orientação. A ciência serve de modelo e é muito simples: observar a realidade (ou, quando é possível e conveniente, experimentar), apurar os factos e usar a lógica. E extrair as devidas conclusões. Se algumas das conclusões que o David fundamentadamente tira são polémicas, não há mal nenhum nisso. Pode haver uma discussão cordata, respeitando o outro, o que, infelizmente, nem sempre acontece. Espero que isso aconteça com este livro, até porque a discussão ajuda a desfazer eventuais erros. Claro que há assuntos que são mais de opinião do que de facto e, nesse caso, só há que respeitar, com tolerância, as opiniões de uns e de outros.  Meus caros amigos, não se percam!


quinta-feira, 7 de novembro de 2024

ESTUQUE

Por A. Galopim de Carvalho
 
Uma das utilizações do gesso, a um tempo técnica e artística, vem de longe e materializa-se no estuque, produto usado em variados tipos de ornatos relevados, em tectos, paredes interiores e exteriores. 
 
Estuque do Palácio da Bolsa do Porto (imagem colhida na internet)
De uso milenar nas civilizações mediterrâneas, o estuque (do italiano stucchi, com o significando de relevo ornamental), na sua versão antiga ou tradicional, era constituído essencialmente pela junção de uma argamassa branca ou polícroma de gesso-de-Paris com uma de cal aérea, sendo esta usada como um aditivo retardador de uma secagem demasiadamente rápida.

Esclareça-se que a antiga expressão gesso-de-Paris, hoje obsoleta entre nós, refere o produto industrial, o pó branco com que no hospital se imobiliza um braço ou uma perna partida e que podemos comprar na drogaria para tapar uma irregularidade na parede. 
 
Diga-se que o eventual colorido das argamassas era obtido pela adição de pigmentos minerais (ocres, terra de Siena e outros) e recorde-se que o adjectivo aérea, colado à palavra cal, informa que o endurecimento desta tem lugar por efeito do dióxido de carbono do ar atmosférico, segundo a equação:
Ca(OH)2 + CO2 → CaCO3 + H2O.

O estuque, que integra os actuais produtos usados na construção civil, como revestimento em interiores, principalmente tectos e ornamentos executados em relevo, é uma argamassa branca ou polícroma (pela adição de pigmentos minerais) em cuja composição pode entrar gesso, cal, areia fina e pó de mármore.

Com notável desenvolvimento no passado, a estucagem, segundo os preceitos tradicionais, afirmou-se, em especial, no século XVIII, como um ramo artístico do sector da construção civil, associado à arquitectura.

O gesso foi a matéria-prima da argamassa mais antiga, aplicada como ligante, nas alvenarias, por babilónios e egípcios, há mais de 4000 anos. Uma argamassa, acrescente-se, própria de ambientes secos, como acontece em regiões marcadas pela aridez, uma vez que se deteriora, se exposta à humidade atmosférica. A estucagem de paredes interiores e a reprodução de máscaras funerárias, no Egipto antigo, testemunham o elevado nível dos estucadores de então. 
Daqui e ao longo da Antiguidade, a técnica alastrou aos gregos e romanos. A título de curiosidade, diga-se que, em Roma, o célebre arquitecto Marcus Vitruvius Pollio (século I a.C.), na sua monumental obra “De Arquitectura”, explicou o processo de obtenção do estuque. Também os árabes foram mestres na estucagem, aperfeiçoando-a no revestimento e decoração dos interiores dos edifícios mais nobres. Entre os séculos VIII e XV, desenvolveram na Península Ibérica uma arte de decorar grandes espaços, num complexo rendilhado de elementos geométricos e abstractos de que são exemplo os interiores e outros espaços do monumental Alhambra de Granada.

A estucagem esteve praticamente ausente na arquitectura religiosa e civil do Românico e do Gótico, na Idade Média europeia, tendo ressurgido timidamente no Renascimento italiano, com emolduração de pinturas a fresco, e atingindo o seu máximo esplendor em finais do Barroco, na segunda metade do século XVIII, com as minuciosas e aprimoradas ornamentações do Rococó. Já bem dentro do século XIX, o estuque acompanhou a maleabilidade do Romantismo, apelando a revivalismos mouriscos (estilo neoárabe). Com o advento do Neoclássico, esta arte ganhou grande desenvolvimento em sancas, molduras e adornos em relevo de complexos e delicados desenhos e, no final desse século, acompanhou as chamadas Arte Nova e Arte Déco, como meio de concretização da fantasia criadora do ser humano, testemunhando, uma vez mais, a aptidão decorativa desta argamassa.

No decorrer do século XX, o estuque perdeu definitivamente o papel de relevo que teve nas épocas do Barroco e do Rococó, restringindo-se a pequenas molduras e frisos decorativos, além das sempre utilizadas superfícies planas de paredes e tectos. A progressiva industrialização da construção civil marcou, por assim dizer, o fim do estuque ornamental. Porém, o estuque continua a servir na feitura de sancas e molduras, bem como no revestimento de paredes ou tectos, corrigindo imperfeições. Uma vez concluído o reboco, continua na ordem do dia, muitas vezes, a cargo dos pintores. Nos dias de hoje, a estucagem de paredes usa a técnica do chamado “estuque projectado”, à semelhança da tradicional pintura à pistola.

Entre os exemplos mais significativos da aplicação desta arte no nosso país, citam-se, no século XVI, os estuques da igreja do Espírito Santo e os da capela e refeitório da Universidade, em Évora. Após o terramoto de 1755, o Marquês de Pombal encarregou o jovem estucador italiano, João Gross (1715-1780), de proceder ao restauro e melhoramento do tecto da Igreja dos Mártires, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e no palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras. Acrescente-se que Gross foi professor da “Aula de Estuque e Desenho”, então criada, em 1764, na Fábrica das Sedas. Os estuques mouriscos dos palácios de Monserrate e da Pena, em Sintra, e os do salão nobre da Bolsa de Porto, todos do século XX, e do palácio Alverca, mais conhecido por Casa do Alentejo, em Lisboa, de começos do século XX (1919), são bons exemplos do Revivalismo em Portugal.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

CARTAS DE AMOR RIDÍCULAS

Ainda e sempre Eugénio Lisboa.
Um dos sonetos que nos confiou.

Alguns escritores, preocupados
com serem muitíssimo escritores,
sujeitam-se a enormes cuidados,
fazendo, de si próprios, censores.

Não escrevem cartas de amor ridículas,
não vá a posteridade gozar!
Catam, nas cartas, nódoas e películas,
que manchem a imagem que vão deixar.

Amor, sim, mas nada de estragar
lugar na Academia de Ciências!
Um ar sumptuoso fica a matar,

pra uso de pompas e circunstâncias.
Mas cartas de amor desataviado,
só pra Garrett ou outro tarado!
                                                            Eugénio Lisboa

"O problema não é meramente americano. É mundial"

Vale muito a pena ler o artigo do jornal Público que indico de seguida

 
Mais do que uma análise do estado da América, reflectido nas eleições para o Governo, é uma análise do estado do mundo em que vivemos e, em última instância, da nossa condição humana. Diz Onésimo Teotónio Almeida na sua última resposta:

"... apercebo-me cada vez mais daquilo que defendi num livrinho de 2010 intitulado De Marx a Darwin. O lado animal do ser humano, hoje, está cada vez mais à solta, mesmo na América, que durante 250 anos nos fez acreditar que era possível controlar a besta obrigando-a a conviver civilizadamente. O problema não é meramente americano. É mundial. E é isso que me preocupa sobremaneira."

sábado, 2 de novembro de 2024

RACIONALISMO, HUMANISMO, ILUMINISMO E DESPOTISMO ILUMINADO

Por A. Galopim de Carvalho

Em poucas palavras, para gente com pressa.

Os avanços da ciência, levados a cabo, no Renascimento, por Da Vinci (1452-1519) e Galileu (1564-1542), em Itália, mais tarde, por Nicolau Steno (1638-1686), na Dinamarca, e Isaac Newton (1643-1722), em Inglaterra, na chamada Revolução Científica do século XVII, e o espírito de abertura ao conhecimento fomentado pela exploração do mundo desconhecido pelos navegadores portugueses e espanhóis, foram importantes para a eclosão e consolidação do Racionalismo entendido como uma atitude mental, ou linha de pensamento que aponta o raciocínio lógico, ou seja, a razão (tida como a principal fonte de autoridade e legitimidade) como o caminho para se alcançar a verdade. 

Por sua vez, o Racionalismo foi “caldo de cultura” para o surgimento de uma outra, que marcou o chamado “Século das Luzes”, designada por Iluminismo. Esta outra atitude mental, descrita como um movimento intelectual e filosófico centrado na razão, advogava a liberdade, o progresso, a tolerância, a fraternidade, o governo legitimado pelo povo, o questionamento dos dogmas religiosos e, ainda, o Reducionismo apontado como a via segundo a qual, um sistema composto deve ser dividido nas suas partes que, uma vez estudadas cientificamente, permitem conhecê-lo, no seu todo.

Entre os mais destacados racionalistas sobressaem o francês René Descartes (1596-1650), o alemão Gottfried Leibniz (1632-1677), o holandês de origem portuguesa Bento Spinoza (1632-1677) e os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), estes dois últimos focalizados no pensamento social e político. 

A par do Racionalismo desenvolveu-se uma atitude ética, vinda de trás e se afirmou no Renascimento, conhecida por Humanismo. Emergia assim, de séculos do obscurantismo religioso que caracterizou a Idade Média, uma nova era iluminada pela razão. Ao Teocentrismo, que colocou Deus no centro do das preocupações e dos temores do ser humano, opusera-se o Antropocentrismo que o libertou dessa servidão e o colocou no centro dessas mesmas preocupações.

A História mostrou que a independência dos Estados Unidos, em 1776, e a Revolução Francesa, cerca de um quarto de século depois, em 1789, tiveram por fundamentos as ideias saídas do Racionalismo, do Humanismo e do Iluminismo que teve seu ponto alto com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em Paris, a 26 de Agosto de 1789.

Os racionalistas tinham grande fé no poder da razão, defendendo que, mediante o uso desta nossa superior capacidade, seria possível um progresso sem limites. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), afirmava que era fundamental "ousar conhecer". Surgiu assim, o interesse em reexaminar e pôr em questão as ideias ancestrais, entre as quais as da doutrina da Igreja (a partir de então duramente questionada), cujo declínio foi favorável ao crescimento do Secularismo, entendido como o sistema que defende a separação entre o poder político e as instituições religiosas.

Foram muitos os elementos das elites intelectuais francesas que dilataram e divulgaram o Iluminismo, com destaque para Voltaire (1694-1778), Charles de Montesquieu (1689-1755), Denis Diderot (1713-1784) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1788). David Hume (1711-1776), na Escócia, Cesare Beccaria (1738-1794), na Itália, Benjamin Franklin (1706-1790) e Thomas Jefferson (1743-1826), na América do Norte, fizeram outro tanto. Foram as suas ideias que serviram de fundamento ao liberalismo, o político, e, mais tarde, o económico. 

O liberalismo acabou por invadir os círculos do poder, estando na base do Despotismo Esclarecido ou Iluminado, entendido como uma modalidade de governo que partilhava a exaltação de Estado e o poder absoluto do rei com as ideias de progresso e de filantropia defendidas no Iluminismo. Alguns monarcas de então, receosos de perder o poder ou, mesmo, a cabeça, aceitaram respeitar algumas destas ideias (não foi o caso de Luis XVI, que acabou por perdê-la em 1793). Entre eles, destacam-se Frederico II (1712-1786) da Prússia, Catarina II (1729-1796) a Grande, da Rússia, José II (1741-1790), da Áustria e Carlos III (1716-1788), de Espanha.

Em Portugal esta modalidade foi seguida por D. José I ou, melhor dizendo, pelo Marquês de Pombal. O Despotismo Iluminado chegou aqui através dos portugueses letrados que viajavam pela Europa, os chamados estrangeirados, com destaque para o padre Luís António Verney (1713-1792), filósofo, teólogo, professor e escritor, e para Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1699-1782) que, antes de ter sido o 1.º ministro de D. José I, foi embaixador em Inglaterra e na Áustria, onde recebeu forte influência das concepções culturais e filosóficas próprias do Iluminismo.

Foi sob esta modalidade de governo que, entre nós, teve lugar a reforma do ensino, a expulsão dos Jesuítas, o apoio às ciências e às artes, com o convite a professores e artistas estrangeiros para ensinarem e trabalharem em Portugal e a criação da Academia Real das Ciências em 1779.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O refinamento estratégico para conversão das almas à lógica financeira

Texto que se liga a um anterior (aqui).

Mão amiga enviou-me este vídeo. Trata-se da notícia dada por um canal de televisão que, sem contraditório, veicula uma das nada novas "religiões e morais" que se apropriaram da escola pública. Esta - da conversão das almas à lógica financeira - tem sido uma das que mais a tem mobilizado nesta década.

A designação vai mudando mas a essência é a mesma, ainda que a estratégia seja progressivamente mais intrusiva e mais dissimulada. Tudo a bem dos miúdos! Tudo a bem do futuro!

Vale a pena ler o texto (os sublinhados são meus).

Sete escolas estão a testar um modelo de ensino secundário mais flexível e com maior liberdade de escolha para os alunos. Entre as novidades estão duas novas disciplinas obrigatórias: Literacias e dados e Projeto pessoal. É uma preparação específica para o dia a dia e ensina, por exemplo, a lidar com o dinheiro (...).
Literacias e dados ensina os alunos a gerir o dinheiro e prepara-os para o futuro.
Uma vez por semana, os alunos do 10º ano do Agrupamento de Escolas de (...), têm aula de literacias e dados. O currículo inclui literacia financeira, mediática, política e criptografia. Como não têm manual, toda a matéria fica disponível numa plataforma da google. A disciplina que vai acompanhá-los até ao 12º ano está dividida em módulos, o primeiro dado pela professora de matemática. A escola (...) funciona como laboratório, onde se testa a possibilidade de acabar com a rigidez e as limitações do atual modelo do ensino secundário (...)
No final têm uma prova de aptidão pública. Português, Língua Estrangeira, Filosofia, Educação Física, Literacias e dados e Projeto pessoal fazem parte do tronco que é comum a todos os alunos (...).
Este projeto-piloto (...) quer contribuir para um ensino mais inclusivo, flexível e inovador


Repito:

Isto acontece na escola pública, que, não esqueçamos, é da responsabilidade do Estado.

Estado que, como consta na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo "não pode atribuir-se o direito de programar a educação (...) segundo quaisquer directrizes (...) ideológicas". 

Ou seja, tanto quanto entendo, segundo opções que:
1) concorram para desviar a educação do seu legítimo fim;
2) concorram para a concretização de interesses particulares;
3) não sejam compatíveis com os valores éticos patentes nesses mesmos documentos matriciais. 

Aqui estão todos os ingredientes disso mesmo: preparação dos alunos para a vida, leia-se: uma certa vida, traçada por agentes que não têm legitimidade para tal; intervenção directa desses agentes na escola, na sala de aula, como parceiros de pleno direito junto aos professores; uso de contextos humanos para fazer experiências que estão longe de serem inócuas e da escola como "laboratório" dessas experiências...

O AMENDOAL

Por A. Galopim de Carvalho
 
Como no tempo da lenda, todas as primaveras, o amendoal alentejano cobre-se de fores branca como se de neve se tratasse.

Uma outra importante cultura que o Alqueva trouxe ao Alentejo foi o amendoal de regadio. Pequena árvore caducifólia (não ultrapassa os 8 a 10 metros de altura) a amendoeira (Prunus dulcis) é, entre nós, uma das mais antigas árvores de fruto a ser plantada. 
Do seu fruto liberta-se o caroço, dentro do qual se encontra a semente, ou seja, a amêndoa.
 
Introduzida em Portugal, a partir do Médio-Oriente, durante a invasão árabe, a amendoeira, em regime de sequeiro, começou por se fixar no Algarve, passando daí, no mesmo regime, para as terras secas de Trás-os-Montes e Alto Douro. Depois de anos de relativo abandono neste sector, Portugal é hoje um país de vanguarda na produção de amêndoa a nível mundial.

O aumento da procura da amêndoa, a nível internacional, deu aso ao aparecimento, no Alentejo, de vastas áreas de amendoais de regadio, em regime intensivo. A seguir à região de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Alentejo tornou-se a segunda maior região produtora de amêndoa, do país, afirmando-se como uma alternativa apreciável às explorações agrícolas tradicionais, nomeadamente, os cereais, nesta região.

Nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março, de há “meia dúzia de anos”, a paisagem alentejana mostra uma imagem nunca antes vista, com vastas áreas cobertas por uma infinidade de amendoeiras em flor. Admirável espetáculo da Natureza é, ainda, o chão coberto por uma “neve” levemente rosada, trazendo à ideia a conhecida lenda algarvia do rei mouro e da princesa de um país do Norte.
 
A Lenda das Amendoeiras é uma muito antiga história de amor que reporta ao tempo da ocupação árabe da Península. Um poderoso rei mouro, algures no Algarve, tinha, cativa, no seu palácio, uma jovem princesa de um país do norte da Europa, por quem estava apaixonado. As saudades de casa que ela sentia eram tantas, que lhe tiravam toda a alegria. Percebendo o drama da jovem, o rei mandou então plantar, nos campos em redor, um imenso amendoal.

Assim, todas as primaveras os campos se cobriam de flores brancas, como se de neve se tratasse.

"O CAMINHO NÃO É O DIGITAL": UMA PETIÇÃO DE PAIS CONTRA O USO DE MANUAIS DIGITAIS NO ENSINO BÁSICO

O projecto transnacional de transição digital tem encontrado resistências várias em diversos países e o nosso não tem sido excepção. Ontem surgiu mais uma manifestação dessa resistência na forma de petição redigida por pais de alunos de um Agrupamento de escolas (aqui).

O texto, contra o uso de manuais digitais como suporte básico de aprendizagem no Ensino Básico, denota um lúcido conhecimento do assunto. Permito-me destacar algumas passagens, mas vale a pena lê-lo na totalidade:

"Sendo óbvia a necessidade de rentabilizar o tempo de aprendizagem, facilmente se percebe que o caminho não é o digital, que obriga os alunos a perderem demasiado tempo na realização das tarefas e fragmenta a sua atenção, atrasando assim a aprendizagem (...).

O tempo não volta atrás e este projeto está a prejudicar os nossos filhos (...).

Em Portugal, no início deste ano letivo, foi noticiado que um terço das escolas abandonou o PPMD [Projeto-Piloto Manuais Digitais] e houve uma diminuição, para quase metade, dos alunos participantes. Esta saída autónoma das escolas é reveladora de que o projeto não serve os alunos. As próprias direções tiveram consciência disso (...)

São muitos os pais que equacionam a possibilidade de mudança de estabelecimento de ensino para que os filhos saiam deste projeto que se revelou infeliz. É urgente que a escola oiça o nosso apelo. Somos a favor do uso de recursos tecnológicos, mas contra a substituição de livros por ecrãs, agravada com todos os problemas operacionais associados ao projeto.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A SOMBRA DA CENSURA REQUER UMA ESPECIAL ATENÇÃO DOS EDUCADORES

Disponibilizo aqui a ligação para o mais recente texto que escrevi para o Ponto SJ - Portal dos Jesuítas Portugueses. 
O tema é de sempre, agora com novas configurações. Quem educa precisa de estar atento a formas subtis (e outras não tanto) de afastamento do horizonte dos mais jovens de escritos com poder formativo. São muitas e por vezes (aparentemente) bondosas as razões invocadas para afastar alguns dos escritos mais precisos que a humanidade produziu da escola.

O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA NA LIVRARIA ALMEDINA ESTÁDIO DE COIMBRA




 

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

A MATANÇA DO PORCO

Por A. Galopim de Carvalho
 
Quando comecei a ter consciência do mundo à minha volta, já se não matava o porco em nossa casa. Isto porque havíamos mudado de residência e deixáramos de ter instalações adequadas, entre as quais a grande chaminé da cozinha para fumar os enchidos. Vivendo na cidade, tínhamos o talho onde a carne fresca e de salgadeira, chouriços, linguiças e farinheiras, estavam diariamente à nossa disposição. Não matar o porco em casa não impediu que assistisse, muitas vezes, a este ritual de Inverno, vindo da Antiguidade, através de sucessivas civilizações, em que o animal era oferecido, em sacrifício, aos deuses. 
 
Esta tradição é hoje, desgraçada e estupidamente, interdita por uma legislação fabricada em Bruxelas, no seio da União Europeia, pelos mesmos citadinos que assistem, indiferentes, à expansão dos fast food e de muitos outros alimentos ditos de plástico. Para salvaguarda desse património cultural, há sempre por essas aldeias, felizmente, quem prevarique, aproveitando uma mais prolongada e providencial ausência da patrulha da Guarda (*)
Depois de morto, chamuscado, raspado e lavado, havia que pendurá-lo, de cabeça para baixo, num chambaril suspenso de uma trave do tecto. O chambaril é uma espécie de cruzeta onde se prendiam os fortíssimos tendões das patas traseiras do animal. Aberto e esventrado de tripas e demais entranhas, aguardava-se que a carcaça secasse e arrefecesse depois de lhe passar uma noite por cima. Só ao outro dia, manhã cedo, o mesmo magarefe que o sangrara, armado de facas de vários usos, um cutelo e um serrote, vinha desmanchá-lo e dividi-lo em porções, cada qual com seu destino, que ia separando em alguidares de barro.

Com parte do sangue recolhido, de mistura com vinagre, para não coalhar, confeccionava-se a rechina, no que se consumiam as fressuras. Bem aromatizada com cominhos, servia-se logo nesse dia, ao almoço, com sopas de pão cortadas às fatias finas e rodelas de laranja, para desenjoar, constituindo o festim dos que sempre apareciam para ajudar e, também, para comer. O sangue restante era cozido e, depois de frio, cortado às fatias e temperado com azeite, vinagre e alho.

Das lides da matança, competia às mulheres cortar as carnes para os enchidos e temperá-las de acordo com os destinos a dar-lhes, seleccionando-as para os paios, as linguiças, os chouriços e as farinheiras. Só não se ocupavam desse trabalho as que, na ocasião, estivessem menstruadas, uma crença, como muitas outras, que ninguém explicava mas que todas respeitavam.

Mantas de toucinho alto de uma mão-travessa, chispes inteiros, faceiras, orelhas e ossos eram acondicionados na salgadeira. Esvaziada do sal e dos restos amarelecidos da conserva do ano anterior, este baú de madeira, a ressumar salmoura antiga, era raspado e lavado para receber o sal novo, cristalino e branco de neve, para conservar, por mais um ano, a nova provisão. Havia sempre quem aproveitasse o toucinho velho que, embora com um leve pico de ranço, sempre dava jeito àqueles que o levavam. Uma lasquinha deste toucinho, bem raspado do sal, e uma rodela de cebola, dentro de duas grossas fatias de pão, faziam a ceia de um pobre, dizia-se.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

PASSADO O DESLUMBRAMENTO, É PRECISO DECIDIR

Por Cátia Delgado
 
Vemos chegada a hora de avaliar o impacto dos telemóveis na vida escolar de crianças e jovens para tomar decisões: permitir ou não o seu uso. E Portugal não é excepção. 
 
Foi notícia recente no Diário de Coimbra que, no seguimento de recomendações do Governo, só uma escola da cidade restringiu o uso do telemóvel e só nos espaços de refeição. Os diretores entrevistados alegam estar em processo de auscultação da comunidade escolar; não discordando da retirada dos aparelhos do recinto escolar, não arriscam decidir a restrição e a proibição. Dão a entender que isso seria ir longe demais e que do Ministério vieram apenas recomendações, não normas ou leis. Colocam a responsabilidade do lado das famílias, argumentando ser dever dos pais limitar o uso dos dispositivos. Assim se vai protelando a tomada de uma posição clara por parte destas escolas.
 
Mas é isto mesmo que uma encarregada de educação, também professora, que foi entrevistada, entende ser necessário: é inequivocamente a favor da proibição do telemóvel no recreio, alegando que:
"(...) os pais gostam de estar em constante contacto com os filhos, o que nem os deixa crescer. (...) Todos se queixam que o uso é exagerado, contudo, do que me apercebo é que não há grande controlo parental.

(...) nos intervalos os alunos estão mais ocupados a jogar do que a falar e quando entram na sala sentem a necessidade de conversar o que não conversaram no tempo disponível no exterior.

Deixariam de ter bengalas sociais e teriam de olhar uns para os outros, comunicar, exprimir o que sentem.

Em caso de necessidade, haverá sempre forma de comunicação com os pais.

É de todo errado que os professores utilizem o telemóvel como ferramenta de pesquisa ou testes (...) até porque todos os alunos têm acesso a computadores."
Em suma, como é notado pela jornalista, Margarida Alvarinhas, além de uma divergência de opiniões, há também uma considerável “falta de coragem no assumir de posição”, mal do seguidismo do século XXI, que leva a crer que ter uma opinião condizente com a realidade do século passado é andar para trás ou ser resistente à mudança. Pois, nem tudo o que é “inovador” favorece o desenvolvimento humano, fim último da educação escolar, nem tudo o que é “tradicional” nos atrasa. 
 
Sendo a escola, por natureza e por excelência, um contexto de ensino, importa mantê-lo alheado de tudo o que prejudique a sua finalidade última: a aprendizagem. E, sim, temos evidências científicas suficientes para saber que os telemóveis a prejudicam.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

MOLUSCOS, ALGAS E OUTROS SERES MARINHOS, NA ORIGEM DA GRANDE MAIORIA DOS CALCÁRIOS.

Por Galopim de Carvalho

No que respeita a origem orgânica destes calcários, ditos biogénicos ou organogénicos, a pergunta que se coloca à partida é: - Como é que os seres vivos marinhos e, à semelhança destes, os lacustres e outros aquáticos, sintetizam o carbonato de cálcio com que edificam os respectivos esqueletos?

Num esquema muito geral, especialmente simplificado para o efeito, a resposta é simples de abarcar. Recuemos, então, por exemplo, uns 170 milhões de anos, ao Jurássico médio, muito bem representado em Portugal, nos calcários das Serras do Sicó, Aires e Candeeiros, num tempo em que o território a que corresponde a Península Ibérica se encontrava numa latitude intertropical, sob um clima de tipo tropical húmido, com temperaturas sempre superiores aos 20.ºC e acentuada pluviosidade anual, à semelhança do que acontece nos dias de hoje nesta zona da Terra.

Nestas condições climáticas, a alteração dos minerais de muitas rochas das terras emersas é imensa, quer nos continentes (granitos calcoalcalinos, granodioritos, dioritos e gabros, entre ouros), quer nas ilhas vulcânicas (sobretudo, andesitos e e basaltos). Muitos minerais dessas rochas (plagioclases, horneblenda e augite, entre outros) contêm cálcio nas respectivas composições.

Por um processo químico conhecido por hidrólise, aqui apresentado, como se disse, de forma muito esquemática, (essencial à compreensão do mesmo), a água no estado líquido, morna e abundante, como é próprio destas latitudes, dissocia os iões destes minerais (mais intensamente do que em qualquer outra zona climática), entre eles o catião cálcio, bivalente positivo (Ca2+) que transporta, através dos rios, a caminho do mar e dos lagos. 

Também a calcite (carbonato de cálcio) dos calcários e a dolomite (carbonato de cálcio e magnésio) dos dolomitos, existentes nas terras emersas se deixam dissolver pelas águas gasocarbónicas da chuva, que, como é sabido, contêm dióxido de carbono em solução, libertando o dito catião. Recorde-se aqui que, juntamente com a água, o dióxido de carbono comporta-se como um ácido. Para que os seres vivos “fabriquem” o carbonato de cálcio dos respectivos esqueletos, têm de juntar o catião Ca2+ ao anião carbonato (CO32-) sempre presente e abundante na água do mar, uma vez que esta dissolve o dióxido de carbono (CO2) do ar, no imenso contacto que tem com a atmosfera. Uma vez na água, o dióxido de carbono dá origem ao referido anião. O carbonato de cálcio surge então da combinação:
Ca2++ CO32- → CaCO3

Quando atacamos o calcário com um ácido, como, por exemplo, o ácido clorídrico diluído em água (a 10%) a efervescência, ou seja, o borbulhar gasoso que se produz corresponde à libertação, sob a forma de dióxido de carbono, do oxigénio e do carbono da atmosfera contemporânea da sua formação. O cálcio envolvido nesta reacção química fica dissolvido na água sob a forma de cloreto de cálcio, segundo o esquema:
2HCl + CaCO3 → CaCl2 + H2O + CO2

Representando a imensa maioria dos calcários, os classificados de biogénicos resultam directa ou indirectamente da actividade de seres vivos, em águas litorais pouco profundas e mornas, mais precisamente, nas zonzas neríticas (do grego nerítes, alusivo a conchas, moluscos), das regiões intertropicais. Referidos por alguns como calcários neríticos, uns são o produto da acumulação seguida da diagénese (petrificação ou litificação) de restos esqueléticos ricos em carbonato de cálcio, acumulados mecanicamente, por gravidade e, nesta medida, são ditos bioacumulados. Outros resultaram da actividade de certos organismos fixos, construtores de recifes, sendo, por isso, referidos como bioconstruídos ou bioedificados.

A EDUCAÇÃO NÃO PODE SER UM PRODUTO COMERCIALIZÁVEL

A conferência e a entrevista que indico de seguida aconteceram há alguns meses mas vale a pena revê-la/relê-la (e guardá-las) pela orientação que nelas se vê da educação escolar: suportada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é afirmada como bem público e comum, sublinhando-se a responsabilidade dos Estados na sua concretização.

O contexto foi uma das Conferências Futuros da Educação realizadas no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e a conferencista foi Farida Shaheed, relatora especial para o direito à educação das Nações Unidas.
 
O discurso desta organização é, na matéria em causa, substancialmente diferente do discurso da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), sendo que é esta que mais protagonismo tem nos sistemas de ensino.

Eis um extrato da entrevista realizada pelo jornalista Jorge Andrade do Diário de Notícias:

Teme que os sistemas educacionais se estejam a tornar produtos e serviços comercializáveis? Estou profundamente preocupada com o facto de a educação parecer ter um objetivo cada vez mais restrito de desenvolver pessoas que possuam competências comercializáveis, em vez de nutrir a criatividade humana, proporcionando oportunidades e um ambiente de aprendizagem para pensar de forma crítica e diferente, para questionar, para explorar e realizar ao longo da vida o potencial de aprendizagem. Estou também preocupada com a redução do financiamento para a educação, ou para certas disciplinas não consideradas “dignas de mercado”, o que restringe a criatividade humana. A redução do financiamento também obriga as instituições educativas a procurarem fundos noutros locais, abrindo a porta a uma influência crescente de intervenientes empresariais que têm agendas específicas, bem como de instituições educativas privadas com fins lucrativos que atendem a grupos demográficos específicos, excluindo ainda mais os marginalizados.

Referiu a questão das tecnologias digitais. Como as vê enquanto ferramenta ao dispor da educação? Alarma-me a opinião generalizada de que a digitalização é uma panaceia para o fracasso educativo. Primeiro, a tecnologia digital é apenas isso: uma tecnologia, e o que importa é como ela é utilizada. Em segundo lugar, a chamada digitalização “gratuita” disponibilizada durante a covid-19 não era gratuita, os estudantes, os seus amigos e familiares pagaram o preço através da invasão da sua privacidade e da recolha de dados. Terceiro, a digitalização provavelmente aumentará a divisão entre pessoas, comunidades e países que possuem boa conectividade e dispositivos e aqueles que não os possuem. Em quarto lugar, na urgência para se tornar digital, não é dada atenção suficiente aos efeitos que isto pode ter no bem-estar psicológico e nos sentimentos de isolamento dos alunos, bem como na saúde física e no desenvolvimento. A inteligência artificial (IA), especialmente a IA generativa, traz novos desafios. Embora existam muitos aspetos positivos na IA, o perigo surge quando confiamos nela para a tomada de decisões ou para a normalização de, por exemplo, testes. A utilização de IA generativa pelos alunos levanta a questão de como avaliar se a aprendizagem ocorreu. Em termos de utilização da IA para padronização, um problema sério é que os metadados, nos quais os algoritmos se baseiam, excluem as realidades dos marginalizados. Os algoritmos em que confiamos cada vez mais são, portanto, tendenciosos e discriminam os já marginalizados, que podem então ser penalizados. 

Estas e outras ideias são desenvolvidas no vídeo (a partir do 25 minuto - aqui)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A NOVA PAISAGEM ALENTEJANA

Por A. Galopim de Carvalho
 
Relativamente ao clima, excepção feita à grande irregularidade verificada nos últimos anos, o Alentejo (e também o Algarve) tem um clima de características marcadamente mediterrâneas, onde a seara de trigo, o olival, a vinha e o porco alentejano, a “tetralogia mediterrânea”, no dizer de Alfredo Saramago, foram base de uma economia rudimentar, limitada ao todo nacional. Nas últimas décadas, desta tetralogia” apenas o azeite e o vinho têm alcançado desenvolvimentos, com importância considerável na economia nacional e expressão no mercado externo. O porco alentejano, de que falaremos mais tarde, tem uma importância bem mais modesta e a seara de trigo está em via de extinção.
 
É do domínio comum que a produção cerealífera no Alentejo, tem vindo decrescer substancialmente. Vivemos hoje de trigo importado, na ordem de mais de um milhão de toneladas/ano.

Em contrapartida, o olival, a vinha e, também, o amendoal (uma inovação no panorama agrícola local) ganharam lugares cimeiros na economia desta vasta região do país.

“Uma açorda comida por estes dias dificilmente será confecionada com pão de trigo alentejano. Em contrapartida, a possibilidade de ser temperada com azeite da região aumentou, e muito, nos últimos anos”. Esta expressiva e feliz frase do jornalista Aníbal Fernandes, do Diário do Alentejo, tem o aroma dos poejos e diz, com palavras a condizer, uma realidade que estamos a viver.

Em aproveitamento da água da barragem do Alqueva, o maior lago artificial da Europa Ocidental, assegurando, em 2022, cerca de 120 mil hectares de regadio”, em crescimento, temos assistido, nos últimos anos, à substituição da “seara de pão”, não só pelo olival (ocupando mais de 70 mil hectares e em crescimento), como também por outras culturas de regadio, como o amendoal (com cerca de 20 mil hectares), o girassol, o milho, as pastagens e as forragens (azevém, luzerna e sorgo). 

Falemos agora do olival.

O olival de que falam Orlando Ribeiro e Alfredo Saramago é o que hoje chamamos de olival antigo. Antigo, porque há um novo, dito moderno. Em uma trintena de anos, passou-se de um trabalho tradicional, duro, da colheita manual no chão, feita no inverno, para uma colheita mecanizada, onde a azeitona é colhida em verde, sem ser batida, nem cair ao chão, permitindo a produção de azeites de alta qualidade.

Introduzido, na Península, por gregos e fenícios e alargado pelos invasores romano e árabe, o olival a que se referiram os citados autores, resiste, meio disperso na paisagem, com oliveiras, muitas vezes, centenárias e, algumas, milenárias. Foi durante séculos base de uma exploração de sequeiro, tradicional, e de uma indústria meio artesanal, incapazes de prover às necessidades de consumo nacional. Durante as três últimas décadas, o olival português transformou-se num olival de regadio, de exploração intensiva, elevando o Alentejo à região do país com maior produção de azeitona, na ordem das 10 a 12 toneladas por hectare. De país importador, Portugal passou a país exportador de azeite de qualidade superior que ganha prémios no estrangeiro.
 

 
Fala-se hoje deste olival moderno, como uma autêntica revolução no panorama agrícola nacional, graças ao “milagre” da água da Barragem do Alqueva. Vastas áreas do Alentejo são hoje um tapete verde, devido ao plantio superintensivo (no dizer dos ambientalistas) do olival de regadio. Os opositores a esta “revolução” falam de destruição de biodiversidade, de esgotamento de recursos hídricos e de poluição atmosférica. Do outro lado de interesses, os agricultores contrapõem que o olival moderno é responsável por mais de 85% do total da produção de azeite nacional, um valor em crescimento, uma vez que a área de plantio tem vindo a aumentar. Contrapõem, ainda, que é uma cultura com baixas exigências hídricas, que degrada menos o solo e que, pelo contrário, lhe aumenta a quantidade de matéria orgânica, que sequestra mais CO2 da atmosfera (presentemente estimada em cerca de 540 mil toneladas/ano), sendo, portanto, mais sustentável, havendo quem o defenda como o expoente máximo da tecnologia ao serviço da qualidade do azeite e da sustentabilidade ambiental.

Inclino-me para o lado dos ambientalista e duvido sempre das boas intenções destes superemprendimentos.

O Homem: questão para si mesmo. 11 - Máquinas com consciência?

 Parte final do artigo de Anselmo Borges no DN de sábado, que me cita:

«Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência.

O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da Manhã, precisamente à volta da Inteligência Artificial.uma famosa aposta precisamente sobre a consciência: “Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada ‘Em direcção a uma base científica da consciência’.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência ‘o problema difícil’.”

Passados quatro anos, os dois reencontraram-se e, mantendo as suas posições, fizeram uma aposta: o primeiro apostou com o segundo uma caixa de garrafas de vinho que, nos próximos 25 anos, os cientistas iam descobrir um comportamento neuronal claramente responsável pela noção do “eu”.

Numa reunião da Associação para o Estudo Científico da Consciência realizada em Nova Iorque, em fins de Junho passado, os dois voltaram a encontrar-se. O antigo modelo de Koch estava ultrapassado, havendo outros em contenda. Mas nenhum deles era claro, dando uma resposta inequívoca, disse Chalmers.

O neurologista teve de admitir: “É claro que as coisas não são claras.” E foi buscar uma caixa de garrafas de vinho português, no qual se destacava uma de Madeira antigo.

O perdedor, pretendendo desforrar-se, propôs que repetissem a aposta: “Apostou que daqui a mais 25 anos o assunto estará finalmente claro. Chalmers aceitou com um sorriso.”

E Carlos Fiolhais, com o seu humor: “Os cientistas gostam de fazer apostas. Mas é por saber que os cientistas perdem apostas que sigo um precioso conselho da minha avó: ‘Teima, teima, mas nunca apostes’.” E acrescenta: “Estou em crer que as máquinas só terão consciência no Dia de São Nunca.”

Tenho a mesma opinião.»

Anselmo Borges

Entrevista Professor Carlos Fiolhais à revista Contextual, da Associação de Solidariedae Social dos Professores

 A ASSP preocupa-se com muitas das vertentes da nossa vida pública, com destaque para o seu cruzamento com as questões da Ciência e da Educação. É neste terreno que privilegiamos a sua opinião sobre os seguintes pontos:

1.    Ciência e Tecnologia sempre desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento das sociedades. Qual a influência que a divulgação da Ciência, através de todos os meios disponíveis, pode ter na promoção do interesse pelo conhecimento destas áreas?

CF- Não pode haver criação e aplicação da ciência e tecnologia se a sociedade não reconhecer a relevância desses processos. Estou em crer que, em todo o mundo, mais nuns sítios do que noutros, o papel da ciência e da tecnologia é reconhecido: é graças a estas que vivemos hoje mais e melhor. Mas há muito espaço para progresso: muita gente não tem ainda suficiente consciência do valor da ciência. E a maioria das pessoas que a têm podem ter mais. Somando-se ao papel imprescindível da escola, a divulgação da ciência desempenha um papel essencial na compreensão da ciência pelo público.  Onde há mais ciência é também onde há mais divulgação científica, alimentando-se as duas uma à outra.  Chama-se cultura científica a essa penetração da ciência da sociedade. Melhores índices de cultura científica significam a melhoria do conhecimento do mundo, incluindo o conhecimento de nós próprios.

2.    Que papel pode o ensino da Ciência desempenhar nas questões ambientais?

Sem ensino das ciências, feito a seu tempo na escola, não pode haver cultura científica. Sem acabar nela, a ciência deve começar na escola, e começar o mais cedo possível, logo no jardim de infância, quando as crianças alargam o seu contacto com o mundo. Hoje vivemos grandes desafios ambientais, derivados do sobreaquecimento do planeta causado pelas nossas emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. Do ponto de vista científico compreendemos bem a questão e também desenvolvemos algumas soluções, designadamente substituir as energias provenientes de combustíveis fósseis por energias ditas alternativas. Tudo isso deve ser ensinado e discutido nas escolas, porque estas servem para preparar para a vida. Deve ser transmitido não só o estado do planeta, mas também os métodos que usámos e usamos para conhecer esse estado, porque a ciência, mais do que um corpo de conhecimentos, é um método para os obter. Contudo, o referido desafio ambiental não tem solução fácil, porque, para além da ciência, há questões sociais, económicas e políticas, que dividem os países. A escola também devia transmitir essa realidade humana, para além da realidade da Natureza, ligando as ciências exactas e naturais com as ciências sociais e as humanidades. E a consciência ambiental não pode acabar na escola, desempenhando os media um papel fulcral, para que os cidadãos possam fazer escolhas quando fazem intervenções políticas.

3.    Que avaliação faz da situação atual da Educação em Portugal?

Temos grandes problemas nessa área. À partida e desde logo a progressiva desconsideração dos professores, cujo papel importa valorizar. Cheios de trabalho, não apenas pedagógico, mas infelizmente também burocrático, e mal pagos, os professores estão desmotivados. Muitos querem reformar-se o mais cedo possível. E foram cometidos erros de planeamento (ou houve falta dele…), descurando a formação de professores para ocupar vagas em aberto ou que vão abrir. É preciso que o corpo docente volte a ter estímulos, sendo o maior o reconhecimento pela sociedade da sua nobre tarefa de educar. Depois, há questões organizativas – como os currículos, o espaço escolar, os meios pedagógicos (incluindo os computadores)), etc. – que nem sempre têm sido bem tratadas. Vários governos têm tentado conduzir políticas que por vezes se «atropelam» umas às outras, confundindo quem está na escola e fora dela.

4.    O ensino das Ciências está a cumprir a sua função de estimular conhecimento, curiosidade e sentido crítico na Educação básica?

A educação básica é básica: nela assenta todo o edifício escolar. Respondendo de forma sumária, sim, está, mas pode fazer melhor.  Os educadores e professores dão todos os dias o seu melhor para estimular a curiosidade natural dos mais novos. Mas as distrações são muitas – incluindo as distrações dos telemóveis e da Internet – e o seu trabalho não é fácil.  Fez-se já um grande caminho de integração de elementos de ciência no ensino básico, mas pode-se fazer melhor: por exemplo, as boas práticas do ensino experimental deviam ser mais conhecidas e os bons exemplos deviam ser premiados.

5.    Considera que atualmente há uma boa ligação entre a Ciência, a Tecnologia e as Empresas?

A actividade da maioria das empresas assenta hoje, de uma forma ou de outra, na ciência e na tecnologia. Estas empregam os jovens que o ensino superior forma. As instituições de ensino superior têm tentado aprofundar a sua ligação às empresas. Mas há aqui um amplo espaço para melhoria: ainda há alguma desconfiança mútua e alguns entraves burocráticos a projectos conjuntos. As estatísticas dizem que a maior parte da investigação científica e tecnológica é feita no sector privado, nas empresas, mas julgo que esses dados estão um pouco inflacionados. As empresas podem e devem, para seu próprio benefício, investir mais em ciência e tecnologia e devem fazê-lo em boa integração com os centros de investigação, que na sua grande maioria estão ligados ao ensino superior. Isto é, há que multiplicar os contactos entre as instituições de ensino superior e as empresas. Têm objectivos diferentes (por exemplo, as instituições de ensino superior não têm de ter lucro), mas complementares.

6.    Se não, o que falta fazer? Qual o papel dos dois subsistemas do ensino superior neste processo?

O ensino superior está, pelo menos desde os tempos do ministro Veiga Simão, no regime anterior, articulado em ensino universitário e politécnico (uma divisão que existe tanto no sector público como no sector privado). Falamos, por isso, de um sistema dual. Mas o certo é que essa divisão não é nítida - por exemplo há universidades com ensino politécnico e politécnicos com ensino universitário. E, além disso, cada vez mais os politécnicos reclamam uma parte do q1ue era apenas  estatuto universitário. A referida dualidade, que, num país muito desigual, liga muito à questão do desenvolvimento regional, devia ser debatida. E não deveria haver medo de fazer mudanças se estas forem julgadas necessárias. 

7.    Qual a avaliação que faz do incremento que a Inteligência Artificial está a ter nas sociedades em geral?

A Inteligência Artificial está em explosão por via do desenvolvimento da sua modalidade generativa: isto é, programas como o ChatGPT, permitem criar obras que parecem humanas. A sociedade tem aqui também um grande desafio. Haverá mudanças que não sabemos ainda bem quais são – alguns trabalhos humanos passarão a ser automatizados, por exemplo, como de outros modos já aconteceu no passado. Mas há, claramente, alguns perigos, designadamente a capacidade de fazer e espalhar concepções virtuais que muitos podem confundir com reiais. O real e o virtual estão cada vez mais difíceis de distinguir e isso acarreta perigos sociais. È cada vez mais fácil sermos enganados.

8.    Qual o papel que a Inteligência Artificial pode ter no Ensino Básico/Secundário e nas Universidades e Politécnicos?

Sei que há algumas tentativas em curso do seu uso e a experiência devem ser avaliadas. O papel dessa Inteligência será maior nas Universidades e Politécnicos do que no básico e secundário. Há mudanças que se antecipam: por exemplo, a avaliação por escrito terá de ser feita com mais critério. Sendo a favor da inovação, não posso deixar de chamar a atenção para a cautela que é sempre preciso quando se introduzem novidades no ambiente educativo. A escola pode e deve ser inovadora, mas tem também de ser conservadora. Não pode trocar o certo pelo duvidoso. E vejo muitos estudos hoje que põem em causa o excessivo uso de ecrãs na escola. A pandemia mostrou-nos que, se os ecrãs são uteis, a presença pessoal tem componentes insubstituíveis. Estou em crer que os professores nunca serão substituídos por máquinas, porque a escola é acima de tudo um lugar de promoção da humanidade.

9.    Os manuais escolares estão a ser substituídos pelo digital. Considera essa substituição positiva do ponto de vista dos protagonistas da Educação?

O digital tem o seu papel, se me é permitido o trocadilho. Mas eu sou, por formação, um leitor e autor do papel. Aprendi por manuais em papel e acho que este tem enormes vantagens. Sou autor de vários manuais, dos quais há versões digitais, que terão uma vantagem ou outra, por exemplo a leveza ou a procura rápida de texto. Ensaios feitos em países mais desenvolvidos estão a desfazer uma «ilusão tecnológica» que foi criada apregoando a total superioridade do digital. Para os governos há a tentação de supor que os problemas da educação se curam com tecnologia. Mas não: a educação é um problema humano, que se cura, ou melhor que temos de procurar curar, com mais humanidade, em especial formando melhor os nossos professores e confiando mais neles.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...