terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL:

Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão de amêndoas e de um bolo recebidos pelo correio na sua casa da Rua das Flores, no Porto, na Páscoa de 1870. Uma delas, Mário Sampaio, de treze anos, veio a falecer. As crianças foram logo assistidas pelo seu tio, o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto Vicente Urbino de Freitas (1849-1913), que lhes mandou administrar clisteres. As últimas palavras de Mário foram: «O clister do tio matou-me e eu não quero morrer.» O médico não tardou a ser preso, sendo as suspeitas agravadas por um alibi falso sobre a autoria da expedição da encomenda (pretendeu estar em casa do escritor Adolfo Coelho em Lisboa).

Ao fim de um processo muito publicitado foi, em 1893, condenado a oito anos de prisão celular, seguidos de 20 anos de degredo. O apelo feito pela defesa não resultou: levou até ao agravamento da pena para nove anos. O professor Urbino de Freitas ficou preso na Penitenciária de Lisboa até 1901, quando uma amnistia parcial lhe permitiu iniciar o degredo em Angola, onde gozou de alguma liberdade, voltando a exercer a sua profissão. Um perdão do rei D. Carlos concedeu-lhe em 1905 total liberdade, ainda que no exílio: rumou ao Brasil, onde também exerceu medicina. Finalmente, em 1913, já depois da instauração da República, regressou a Portugal. Visitou então o Porto, onde já não ia há duas décadas, mas morreu repentinamente passadas escassas semanas de pneumonia.

Decisivo no desfecho do processo foi o aparecimento de uma testemunha credível que afirmou que Urbino tinha sido o mandante do envio da encomenda fatal. A acusação também se serviu do facto de ele poder lucrar com o crime, uma vez que a sua mulher, Maria das Dores, filha de um rico negociante de linhos, ficaria a única herdeira. De facto, já tinha havido um outro envenenamento na família: José António de Sampaio Júnior, irmão de Maria das Dores, morrera em circunstâncias estranhas no início de 1890, com a assistência de Urbino, tendo mais tarde surgido a acusação, não provada após os exames dos restos do cadáver, de que ele seria responsável por mais essa morte. A sogra de Urbino foi veemente em tribunal: «Foi este homem o envenenador do meu querido Mário. Como foi o do nosso José. Juro-o, Sr. Juiz! Juro-o, Srs. Jurados!»

Urbino de Freitas, formado em Medicina na Universidade de Coimbra, era um conceituado clínico antes do processo, com consultório montado no centro do Porto. Era, tal como o seu irmão, João António de Freitas Fortuna, amigo de Camilo Castelo Branco, que se suicidou em 1890 dois meses depois do crime da rua das Flores (o irmão era muito próximo do escritor, a ponto de os três estarem sepultados no mesmo jazido no cemitério da Lapa no Porto). Camilo expressou o desejo de que Urbino fosse inocentado. Outros escritores, como Raul Brandão e Júlio Dantas, também escreveram sobre o assunto. Alguns médicos e químicos de Coimbra defenderam Urbino, assim como peritos estrangeiros consultados pela defesa, ao contrário de um grupo de médicos e químicos do Porto que examinaram as provas toxicológicas no corpo de Mário Sampaio: havia, de facto, substâncias tóxicas. 

Nessa altura a química forense estava a dar os seus primeiros passos entre nós, inaugurando um frutuoso caminho de colaboração entre justiça e ciência. Os jornais da época contaram o drama. Foram escritos vários livros, uns contra e outros a favor de Urbino, mais contra do que a favor. E ainda hoje o processo faz correr rios de tinta. Será Urbino inocente (ele, a sua mulher e o irmão sempre sustentaram essa inocência) ou culpado (como as provas apresentadas em tribunal indiciaram)?

Dois livros muito esclarecedores sobre o caso foram escritos pelo professor de Engenharia José Manuel Martins Ferreira, que ensinou na Universidade do Porto e hoje ensina na Universitet i Sorost Norge, na Noruega. Num processo de «arqueologia literária» levado a cabo nos alfarrabistas portuenses, coleccionou tudo o que achou sobre o crime e consultou o processo nos arquivos judiciais. O minucioso resultado encontra-se nos livros Urbino de Freitas. Um médico ou um monstro? (Húmus, 2020) e Urbano de Freitas. As manobras de bastidores, este acabado de sair na mesma editora. 

Se o primeiro livro trazia na capa o retrato de Urbino em vestes doutorais, o segundo traz o jovem Urbino com capa de estudante, acabado de se formar na Lusa-Atenas. Os dois têm muitas fotografias e um design muito cuidado da responsabilidade da editora de Vila Nova de Famalicão, que tantas boas obras tem produzido. O segundo livro, que, como é explicado pelo autor, pode ser lido independentemente do primeiro, traz novas e importantes achegas. Há sempre coisas a descobrir sobre crimes, mesmo que antigos. Um conjunto de cerca de 200 cartas que estiveram na posse do irmão de Urbino, Freitas Fortuna, falecido em 1899. Graças à família, o autor pôde aceder a essa documentação que ele expõe com rigor, incluindo cuidadas transcrições dos documentos mais relevantes. 

Há cartas de vários tipos: algumas são relativamente banais por documentarem a estratégia da defesa que é bem conhecida (o irmão foi o grande mentor dessa defesa, tendo nisso gastado parte da sua fortuna: curioso o nome dele), outras são cartas que o autor chama confidenciais porque mostram relações corruptas com jornalistas que pediam dinheiro em troca de notícias favoráveis, e ainda outras são secretas, porque tratam do arrolamento de testemunhas falsas, o que é incriminado por lei. O desenrolar do processo é apresentado de modo a ir aumentando o suspense nos leitores, tal como num bom livro policial. No final, fiquei com a ideia de que Urbino não pode ser considerado inocente. Tem demasiados rabos de palha.

Saber-se-á agora tudo sobre este «crime do século»? Sabe-se mais, mas não se sabe tudo. Por que razão um homem inteligente como Urbino se enredou nesta trama que tantas dores lhe trouxe assim como à sua família (curioso o nome da mulher)? Teria tido cúmplices? Esta história dava um bom filme da Netflix se houvesse por aí um produtor atento.

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