Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:
Se não se sabe ao certo quando nasceu Luís de Camões, apontando-se para 1524, já se sabe bem quando morreu Vasco da Gama, o comandante da armada que descobriu o caminho marítimo para a Índia em 1498: foi a 24 de Dezembro de 1524, vai agora fazer 500 anos, em Cochim, na Índia. É uma coincidência curiosa que entre o poeta e o navegador celebrado por ele no seu poema maior exista esta coincidência de datas. O poema Os Lusíadas, publicado em 1572, canta essa viagem e Camões não se poupa a encómios quando refere Gama: «nobre Gama» (o que era literal, pois Gama veio da pequena nobreza alentejana), «forte Gama», «ilustre Gama», «sublime Gama», «felice Gama», «forte capitão», «valeroso capitão», «capitão ilustre», «nosso capitão esclarecido», «sábio capitão», «facundo capitão», «grande capitão», etc. A Gama, após ter consumado a sua proeza com a chegada a Calecut, é dada por Camões a glória, no canto X, de contemplar, na utópica Ilha dos Amores, a «máquina do mundo», mostrada pela ninfa Tétis: «Vês aqui a grande máquina do Mundo,/ Etérea e elemental, que fabricada/ Assim foi do Saber, alto e profundo,/ Que é sem princípio e meta limitada.»
Camões não foi o único poeta a celebrar Gama. Logo em 1580 o italiano Torquato Tasso fez um soneto onde não só enaltece Gama como fala de Camões. O romântico alemão Friedrich Hölderlin fala de Gama num poema em anda em torno de Colombo. O mesmo se passou com o francês Stéphane Mallarmé, um precursor da modernidade poética. Entre os portugueses, Fernando Pessoa enaltece Gama na Mensagem, o seu único livro publicado em vida, Camilo Pessanha fala das naus de Gama que realizaram a viagem à Índia, e Miguel Torga tem um poema intitulado «Vasco da Gama». Nos nossos dias, Os Lusíadas foi uma inspiração para Gonçalo M. Tavares escrever a sua epopeia Uma Viagem à Índia, onde não há deuses e o viajante é um homem comum.
No reportório de música erudita, encontra-se uma ópera em cinco actos intitulada L'Africaine, composta em 1865 pelo alemão Giacomo Meyerbeer sobre libreto do francês Eugène Scribe, que tem como personagem Vasco da Gama. O famoso tenor Plácido Domingo interpretou esse papel em 1989 na San Francisco Opera. Por sua vez, outro compositor do século XIX, o francês Louis-Alberta Bourgault-Ducoudray, compôs em 1872 uma ópera também baseada na vida e viagens de Gama.
A viagem da primeira chegada dos europeus por mar à Índia, protagonizada por Vasco da Gama entre 1477 e 1479, foi a primeira das três viagens que ele fez àquela região. Foi uma aventura temerária em que só regressaram duas das quatro embarcações que partiram e onde pereceram cerca de dois terços dos tripulantes (o próprio irmão mais velho de Vasco da Gama, Paulo da Gama, que comandava uma das naus, morreu no regresso, tendo ficado sepultado na ilha Terceira, nos Açores). Como prémio pelo seu sucesso, Vasco da Gama recebeu do rei D. Manuel I, que tinha ordenado a expedição, o título de «almirante-mor dos Mares das Índia», o título de Dom, duas vilas (Sines e Vila Nova de Milfontes), e uma renda de 300 mil réis anuais. Não foi longo o seu repouso, pois em 1502 voltaria a partir, por ordem do mesmo rei, para a Índia, agora à frente de uma armada maior, a fim de reforçar a presença lusa no Oriente. Instalou uma feitoria portuguesa em Cochim, cidade onde mais tarde viria a morrer. Foi nessa segunda viagem que cometeu o acto bárbaro de incendiar um navio de peregrinos muçulmanos.
Finalmente, após um longo período de descanso e após ter sido, em 1919, nomeado Conde da Vidigueira, fez uma terceira viagem à Índia em 1524, na condição agora de vice-rei (o terceiro) e governador (o sexto). O seu filho Estêvão da Gama (tinha o mesmo nome do pai de Vasco da Gama) haveria de ser também governador. Pouco depois de chegar à Índia, o vice-rei Vasco da Gama foi apanhado pela malária, que o vitimou em poucos dias. Não teve tempo para desenvolver a sua acção política. Sepultado na Igreja de São Francisco em Cochim, foi transladado para a Vidigueira em 1539 e, em 1880, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde hoje está.
Para assinalar os 500 anos da morte de Vasco da Gama, o Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta organizou em Sines em 16 de Dezembro, em colaboração com o município local o simpósio «Vasco da Gama. Construtor da Globalização». O título tem cabimento. A primeira viagem de Gama permitiu iniciar a «carreira da Índia», que assegurou o comércio de especiarias do Oriente para Ocidente por mar. Até então existia já um comércio de especiarias, mas ele pelo menos em parte tinha de ser feito por via terrestre (o canal de Suez só foi aberto no final do século XIX). A presença muçulmana no Médio Oriente e na Ásia Menor dificultava ou impedia mesmo a ligação entre a Europa, a Índia e o Extremo Oriente. Vasco da Gama mudou as rotas do comércio global, afirmando-se como um dos protagonistas maiores do que se chama «primeira globalização» (outros são Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, o segundo a chegar à Índia por mar).
Basta ler Os Lusíadas (o canto V em particular) para se perceber que a observação, a experimentação e o raciocínio, que são ingredientes essenciais do moderno método cientifico, já estavam presentes nos navegadores portugueses. Leia-se, por exemplo, esta estância: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pola aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal entendidos.»
Sem comentários:
Enviar um comentário