sábado, 28 de dezembro de 2024

ROBERT HOOKE E A FORÇA ELÁSTICA

Meu prefácio ao livro Lições de Potentia Restitutiva ou da Mola, de Robert Hooke, com introdução, tradução e notas de Isadora Monteiro, Instituto de Estudos Filosóficos, 2024: 

O físico inglês Robert Hooke, contemporâneo de Isaac Newton, é uma das maiores figuras da Revolução Científica, isto é, da criação da ciência moderna que ocorreu nos séculos XVI e XVII. Entre as suas principais contribuições para a ciência está a descoberta da lei da força elástica, que hoje tem o seu nome: a força de deformação de uma mola é directamente proporcional ao deslocamento da sua posição de equilíbrio. Esta lei – descoberta segundo o próprio em 1660, anunciada em 1676 sob a forma de u m anagrama em latim e publicada em 1678 no livro Lições de Potentia Restitutiva ou Da Mola, escrito no original em inglês  e publicado pela Royal Society de Londres, cuja primeira parte está aqui traduzida - é de enorme relevância não só para a física, mas também para a ciência de materiais, que só haveria de surgir no século XIX. Foi encontrada por Hooke por via experimental, sendo por isso um dos primeiros resultados obtidos por aplicação do método científico. De facto, muitas outras forças têm, para além da elástica, comportamento perto do equilíbrio que é descrito pela lei de Hooke.

Experimentalista exímio, Hooke notabilizou-se para além das experiências com molas, por ter observado ao microscópio a estrutura da cortiça, tendo sido o descobridor das células da vida. O seu livro Micrographia (1665), também publicado pela Royal Society, é um dos monumentos maiores da edição científica. Hooke estudou óptica, aprimorando o microscópio e defendendo uma teoria ondulatória da luz. Outros instrumentos passaram pelas mãos de Hooke, que foi curador de experiências na Royal Society: o relógio portátil de corda (que pode ser visto como uma aplicação prática da lei de Hooke), o barómetro (que ele inventou de raiz), o higrómetro e o anemómetro (sem os quais não haveria meteorologia), etc. Aperfeiçoou a bomba de vácuo, usada pelo seu colega Robert Boyle, também activo na referida sociedade, para estudar gases, e o telescópio, que usou para descobrir a primeira estrela binária e para se aperceber das rotações de Marte e de Júpiter. Foi, pode dizer-se, um homem dos «sete instrumentos», consciente de que os instrumentos eram absolutamente essenciais para a «nova ciência». Dotado de uma curiosidade excepcional, gostava de saber tudo e mais alguma coisa. O seu biógrafo Stephen Inwood, chamou-lhe o «homem que sabia demais» (The Man who new too much. The inventive life of Robert Hooke, 1635 – 1703, Macmillan, 2003).

Para além de experimentalista, foi um especulador. A ele se deve a ideia da força da gravitação universal, mais tarde matematizada de forma  exacta por Newton na lapidar fórmula da gravitação universal que ele apresentou nos Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1687). H oke f oi pioneiro na descrição quantitativa desta força que não só nos prende ao solo como liga os planetas, prioridade que Newton ignorou. A aversão entre os dois sábios era profunda, o que não admira já que o autor dos Princípios não ficou conhecido por cultivar as relações com os seus colegas. A disputa mais acesa entre os dois teve a ver precisamente com a precedência a respeito da lei da gravitação universal. Mas já se tinham oposto em questões de óptica: Newton defendia uma teoria corpuscular da luz, oposta à ondulatória. Há uma frase famosa atribuída a Newton - «Se vi mais longe é porque estava aos ombros de gigantes» - que está, segundo alguns historiadores de ciência, directamente relacionada com o autor da lei da força elástica de uma maneira nada lisonjeira para Newton. Não havendo retratos de Hooke, conta quem conviveu com ele que era atarracado. Ora, Newton, numa disputa sobre a luz, com aquela frase estava a chamar-lhe anão. Não podia estar aos «ombros» dele…

Esta primeira tradução em português de Hooke é uma bem-vinda contribuição para a cultura científica portuguesa. Devíamos ter na nossa língua versões dos textos mais importantes da história da ciência e esta tardou. Quem estiver de fora da história da ciência desta época, ao ler esta tradução de Isadora Monteiro, muito bem prefaciada e anotada, poderá aprender dois factos pouco conhecidos.

Primeiro, que a elasticidade das molas foi aproveitada por Hooke, pendurando pesos em molas, para tentar medir a diminuição da força da gravidade com o afastamento da Terra, embora sem resultados inequívocos. Segundo, e mais espantoso, Hooke ensaiou nesta obra uma teoria microscópica da elasticidade, baseada na ideia de partículas constituintes da matéria em perpétuo movimento. No fundo, apresentou aqui a primeira teoria cinética da matéria. A teoria cinética dos gases é, tal como a ciência dos materiais, do século XIX, estando associado a nomes da termodinâmica e mecânica estatística como Ludwig Boltzmann e James Clerk Maxwell. Porém, a ideia de calor como forma de energia, associada ao movimento de partículas, é de Hooke, muito antes de haver termodinâmica!

Sendo um polímata, o sábio inglês contribuiu também para a geologia e para a biologia. A Terra, segundo ele, era um planeta muito mais antigo do que a Bíblia dava a entender, tendo sofrido transformações lentas (por exemplo, as montanhas tinham-se elevado em processos naturais) e tinha havido extinção de algumas espécie, no longo percurso da evolução biológica. E ele foi ainda um exímio colaborador do arquitecto Christopher Wren, um dos sócios fundadores da Royal Society em 1660, na reconstrução de Londres depois do grande incêndio de 16 66.

Vivia-se no tempo em que a física, sob o nome de filosofia natural, se emancipava da filosofia. E desde logo se percebeu (o filósofo Francis Bacon terá sido o primeiro, no início do século XVII) que a filosofia natural ia ter um tremendo impacto na vida humana. Conhecendo a Natureza era possível minimizar alguns dos seus perigos. 

Hooke foi, portanto, um génio. É um pequeno texto de um grande génio que o leitor encontrará a seguir. Vai ler um texto genial, onde a observação, a experimentação e o raciocínio se cruzam, guiados por uma intuição criativa. O autor não via as partículas, que Demócrito na Grécia Antiga tinha imaginado, mas não hesitou em usá-las no seu modelo do mundo material. Ao ler este ensaio o leitor estará a assistir a um «passo de gigante» na história da física, ainda que o seu autor tivesse fisicamente uma pequena estatura.

Coimbra, 28 de Agosto de 2 024

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