segunda-feira, 30 de maio de 2022

À LA RECHERCHE DU TEMPS PAS PERDU (IL ÉTAIT UNE FOIS EN AFRIQUE…)

Nas partes escondidas dos quintais,
nas caves tenebrosas, com lagartos,
nossas brincadeiras transcendentais
descobriam mundos fora dos quartos:

no saboroso dos sítios ocultos,
a tímidos toques, se desvelava
o fulgor incrível e os tumultos
que o outro sexo nos provocava!

Era uma aprendizagem selvagem
e navegávamos sem astrolábio:
cada descoberta era uma viagem

que tornava nosso corpo mais sábio!
Meninas que queriam conhecer,
como nós, a invenção do prazer.

Eugénio Lisboa

DESCAMINHOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Dora Ramos Fonseca, professora do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro, publicou hoje um texto muito esclarecedor acerca das múltiplas "pressões que se exercem sobre a formação de professores" (aqui). Pela sua clareza e enorme pertinência, tomamos a liberdade de o reproduzir de seguida (Maria Helena Damião e Isaltina Martins)


"Na década de 80, a falta de professores provocada pela massificação escolar trouxe para a educação muitos indivíduos de outras áreas profissionais sem as habilitações pedagógicas e científicas necessárias para o exercício da ação docente. Programas sucessivos de remediação da situação, que se agravara, foram implementados em três fases: a profissionalização em exercício, a formação em serviço e a profissionalização em serviço. 

Não obstante, vários estudos desenvolvidos revelavam que esses programas não eram suficientes para introduzir as mudanças necessárias do ponto de vista concetual, curricular e pedagógico que permitissem colmatar as lacunas identificadas nos processos formativos desses professores e, em simultâneo, contrariar, efetivamente, a tendência da visão de desqualificação da profissão docente, que se havia instalado. 

A pressão, induzida pela Comunidade Económica Europeia, para a modernização do país e a utilização da educação como garante de crescimento económico viria a contribuir, também, para o reforço de processos educativos mais curtos e de feição tecnológica e utilitarista, visando, especialmente, a inserção qualificada no mundo do trabalho. 

Os diferentes caminhos previstos para a formação de professores, a excessiva balcanização do conhecimento, a perspetiva da valorização de determinadas áreas do saber e numa lógica fragmentada, as fragilidades identificadas, em alguns casos, na componente pedagógica e a débil integração de práticas supervisionadas em contexto, contribuíram para dificultar a construção, efetiva, de um corpo docente com uma identidade específica que partilhasse princípios pedagógicos e científicos. 

A visão tecnocrática de educação amplamente difundida no discurso político-normativo, embora, por vezes, de forma implícita, condicionou o desenvolvimento da capacidade crítica, emancipatória e autonómica dos professores. 

Estamos, agora, novamente, a atravessar um período especialmente crítico que nos leva a temer o regresso aos processos do passado, embora com novos contornos. 

A falta de professores, em Portugal e em muitos outros países da Europa, leva a que se equacionem medidas emergenciais para responder ao problema. Por outro lado, a União Europeia assume a educação como um instrumento central para o desenvolvimento económico e os professores como elementos centrais nesse processo. A urgência para resolver os desafios que se colocam à Europa poderá “justificar” determinadas medidas avulsas, já veiculadas, de certa forma, nas orientações produzidas por entidades supranacionais, e que legitimam a tomada de decisões para a formação de professores nos diferentes países. 

As recomendações apresentadas, por exemplo, pelo Conselho Europeu, expressas na “Resolução do Conselho para o quadro estratégico para a cooperação europeia no domínio da educação e da formação rumo ao Espaço Europeu da Educação e mais além (2021-2030)”, publicada em 2021, levam-nos a recordar o “velho” discurso da necessidade de modernização dos sistemas educativos para ampliar a competitividade e fortalecer as economias, assumindo-se, naturalmente, a educação ao serviço da construção de um espaço europeu mais forte no panorama mundial, percebendo-se o risco de revisitar os caminhos erróneos do passado. 

A hipervalorização de determinadas áreas do conhecimento pré-definidas a priori como as áreas STEAM, a centralidade da ligação da educação à economia e da sua exacerbada adequação às exigências do mundo do trabalho e, ainda, a emergência da construção de uma identidade europeia com a finalidade de tornar este espaço mais coeso e competitivo, poderá encaminhar, de novo, a formação de professores para abordagens tecnicistas mascaradas de inovadoras. 

A centralidade de determinadas áreas consideradas de excelência e a possibilidade de múltiplos caminhos de formação, incluindo a utilização de microcredenciais, na lógica de benchmarking, tão ao gosto das tendências do mercado competitivo educacional, poderá contribuir para um retrocesso significativo na formação de professores, na medida em que nos afastamos de preocupações centrais na área da educação como a ação educacional no plano social e comunitário. 

Os fenómenos emergentes sociais e educacionais exigem professores com bases consistentes do ponto de vista científico e pedagógico na área das ciências sociais e humanas, nomeadamente no campo das ciências de educação e da didática, áreas nucleares na formação de profissionais especializados na área da educação. 

Para além das áreas científicas, exige-se elevada capacidade de autorreflexão crítica e identidade profissional consolidada que permita construir uma profissão com elevada responsabilidade social e que estabeleça, de algum modo, contra regulações na progressiva instrumentalização e subordinação da educação à esfera económica. 

Exige-se que os professores continuem a contribuir para a construção de sociedades mais igualitárias, justas e democráticas com consciência ecológica e ecopolítica e que sejam capazes de promover o espírito crítico das gerações futuras para que enfrentem as descontinuidades e ruturas inerentes aos tempos contemporâneos em que o consumismo, a competição, o inovacionismo e o imediatismo parecem ter assumido lugar de destaque na educação e substituído funções centrais na formação dos indivíduos como a problematização e desenvolvimento da dimensão humana, questões centrais na construção do ser e estar no mundo contemporâneo, em permanente devir."

Reduflação: sabe o que significa o “palavrão”?

Reproduzimos um texto de grande interesse do Professor Mário Frota

Só agora a comunicação social, que ignorou as nossas tomadas de posição no último semestre de 2021, “descobriu” a reduflação e se espraiou em considerações sobre o tão decantado fenómeno da redução do produto e da manutenção do preço

Com efeito, como sempre, numa porta está o “ramo” e na outra se vende o “vinho”… Velho aforismo popular que serve à maravilha!

O que quer significar que há quem se aproveite das ideias dos outros para “vender o seu produto” e disso tirar vantagens em detrimento do “concorrente”!

Eis, entre outros, o artigo que a 28 de Outubro de 2021, um dia antes de deixarmos a presidência da apDC, démos à estampa num dos diários de Coimbra e bem assim os comunicados, sem qualquer repercussão, que difundíramos com exemplos e remetemos, aliás, sem saber, entretanto, das consequências, à Autoridade de Segurança Alimentar e do Mercado…

Eis o texto:

“Reduflação é o processo mediante o qual os produtos diminuem de tamanho ou quantidade, enquanto o preço se mantém inalterado ou regista um acréscimo. Tal efeito é uma consequência do aumento do nível geral dos preços dos bens, manifestado por unidade de peso ou volume, causado por inúmeros factores, principalmente a perda do poder aquisitivo da moeda e a queda do poder de compra dos consumidores e/ou do aumento do custo das matérias primas, cuja resposta da oferta é a redução do peso ou tamanho dos bens transaccionados. A expressão resulta de uma tradução literal do termo ‘shrinkflation’, um neologismo inglês, cunhado por Pippa Malmgren e Brian Domitrovic, na obra editada em 2009 Econoclasts: The Rebels Who Sparked the Supply-Side Revolution and Restored American Prosperity (lit. Econoclastas = Os Rebeldes que despoletaram a revolução da Oferta e Restauraram a Prosperidade Americana), que resulta da aglutinação de «shrink» ‘reduzir, encolher’ e «(in)flaction» ‘(in)flação’.” 

Sardi-Antasan alertava, há dias, num periódico europeu de grande circulação, que nos tempos que correm a reduflação (shrinkflation) parece haver assentado arraiais com ‘armas e bagagens’.

O fenómeno tem tido uma enorme repercussão na Grã-Bretanha em consequência do Brexit, ao que afiançam outras fontes.

“Reduzir quantidades sem diminuir preços na grande distribuição”: eis a receita miraculosa dos capitães da indústria agro-alimentar – repercutir (de modo discreto) o aumento dos custos das matérias-primas no preço dos produtos.

Tal inflação, dissimulada, revela-se algo complexa à luz do dia:

“É muito difícil surpreender os produtores no acto porque há que lograr encontrar o produto (o mesmo produto), no mesmo espaço físico, em espaços temporais distintos: antes da operação de “maquilhagem” e após a operação de redução da quantidade ou do volume.

“Nos últimos dois anos, identificámos com sucesso dois casos do estilo, explica Camille Dorioz, directora da campanha da Foodwatch.

“As nossas armas? O nome e a exprobação (o vexame) nas redes sociais.

Produtores e distribuidores, porém, vêm ‘sacudindo a água do capote’.

A indústria apresenta-se demasiado opaca. Portanto, de escassos dados de suporte se dispõe”. Em particular porque a reduflação (“shrinkflation”) não é ilegal, desde que haja de todo compatibilidade entre a composição do produto e a rotulagem.”

Registe-se que o álcool é o único produto cuja concentração por unidade é estritamente regulamentada. Para evitar decepções, é preferível ‘monitorar’ os preços por unidade de medida, parâmetro que muitos dos consumidores já vêm adoptando, para além de se tornar imperioso despertar para eventuais mudanças susceptíveis de ocorrer nas embalagens.

(Há dias, no Mercado da Figueira da Foz, um dos comerciantes ali estabelecido fazia passar por 1 Kg. 800 gramas de nozes pré-embaladas… com uma “destreza” incalculável e com um enorme despudor, ignorando que havia ali, no espaço da sua banca, duas ou três balanças de que os consumidores se poderiam socorrer para a confirmação do peso…)!

Camille Dorioz chega a citar “uma das práticas mais tortuosas do marketing que consiste, aliás, em esperar que um produto fique bem “preso” ao carrinho de compras do consumidor para se degradar a qualidade e / ou jogar com a quantidade, paulatinamente. Um tal processo, fundado na habituação e na “confiança no produto”, pode levar de 3 a 5 anos a maturar. Os consumidores ficam naturalmente menos atentos e de todo sem reacção ao processo ‘degenerativo’ em curso!”.

“90% dos produtos consumidos na Europa são importados. E quando não se ignora que trazer um contentor de 40 ’ da Ásia custa quatro vezes mais do que há 18 meses, cerca de US $ 15.000 ( 12 882€), a factura a pagar é elevada. Daí que atribuir a ‘encolha’ (a redução) a uma resposta de curto ou a uma estratégia de longo prazo dos industriais, seja algo difícil de dizer ”, comenta Arthur Barillas, CEO da Oversea.

O debate está, portanto, longe da sua conclusão.

Como assevera Sardi-Antasan, as associações de interesse económico do agro-alimentar não se pronunciam. Nanja as marcas. Nem sequer as empresas de pesquisa especializadas, que para tanto não dispõem de dados: o que revela o quão difícil é o fenómeno, longe de um consenso do ponto de vista científico. Aos consumidores uma recomendação: “gato escaldado de água fria tem medo”!

Nada nos diz que no que tange ao papel higiénico ou aos rolos de cozinha tal não esteja já a ocorrer…

No Reddit há denúncias da redução no tamanho dos ‘cookies’ Pringles ou da embalagem do gel de banho da Dove…”

Pois este alerta “ficou no tinteiro”, caiu em saco roto e só agora a comunicação social desperta para o fenómeno…

Mas um conselho: não percam tempo”! Se detectarem casos destes, vão directamente à ASAE… É que a Deco não é nenhuma inspecção dos mercados nem autoridade dotada de fé pública. E está ligada a uma central de interesses belgas que, para além do mais, explora a ingenuidade dos consumidores portugueses e lhes trata da saúde, vende-lhe colchões macios com nome de avestruz, adormece-os com os vinhos das suas prateleiras e ainda lhes concede cartões de crédito, sabe-se lá se mediante contratos pejados de cláusulas abusivas! Ah! E também lhes impinge seguros de saúde! Como vê, sempre a tratar-lhes da saúde! Não tarda, estará também ligada a uma das fileiras dos produtos milagrosos tipo - “Cogumelo da Chuva” (que os há já do Sol e do Tempo, no Brasil e em Portugal)!

E já tomou conta dos condomínios: os condóminos já ali têm ficha, sob controlo belga…

Uma advertência para os mais distraídos: ainda não vende vinho a copo… Mas não tardará decerto, dada a saída para esquecer das amarguras do quotidiano!

Mário Frota
Presidente emérito da apDC - Direito do Consumo - Coimbra

Ensinar na Universidade entre o desinteresse e o desconcerto

Quim Brugué, professor de Ciência Política na Universidade de Girona, com trinta anos de carreira, escreveu, recentemente, um artigo de opinião para a revista Política & Prosa sobre o preocupante estado a que o ensino superior chegou. Tem o cuidado de dizer que se trata de uma reflexão pessoal, subjectiva, a partir da qual “procura partilhar receios e expectativas, abrir um debate”. Fazendo nossa a sua opinião, apresentamos uma síntese desse artigo, que vale a pena ler na íntegra.

Maria Helena Damião e Isaltina Martins

À medida que as universidades se modernizaram e entraram nos rankings internacionais, o ensino foi-se diluindo e perdendo prestígio. Os professores progridem segundo critérios bem estabelecidos, que os têm levado a encarar a actividade docente com desinteresse e desconcerto. 
O desinteresse explica-se pela irrupção de um modelo académico que levou a docência para um lugar marginal; o desconcerto tem a ver com a falta de ligação à realidade. 
Quando um professor tem sucesso – medido a partir das publicações que faz e dos euros que consegue para financiar investigação –, o prémio é a redução da carga docente. Logo, o bom professor é aquele que, por fim, consegue deixar de ver alunos e de dar aulas. 
Esta situação é-me particularmente dolorosa porque entendo o ensino não como uma sobrecarga, mas como uma das profissões mais importantes em qualquer sociedade. A dedicação do ensino não pode ser um estorvo; é uma dádiva e, portanto, reclama vocação e compromisso. Professor – ouvi dizer uma vez – é aquele que explica o que sabe, mas ensina o que é. Uma responsabilidade enorme. 
A docência teria de ser o centro da nossa vida académica, mas não é. Isto tem-se tornado cada vez mais verdade e mais perturbador. 
Recordo-me de na última década do século XX nos reunirmos semanalmente, durante horas, no claustro, a falar das disciplinas e dos alunos; na década seguinte, já só discutíamos os concursos para conseguirmos recursos de investigação e estratégias para publicarmos em revistas indexadas; e ultimamente, a impressão que tenho, é que só tratamos de aspectos administrativos. 
A progressiva irrelevância da docência não aconteceu por vontade dos professores, mas pela imposição de um certo modelo universitário. Para fazer carreira é preciso direccionar os esforços para o que importa: investigação de impacto internacional. A dedicação à docência é uma perda de tempo e pode ter consequências nefastas no próximo concurso. 
O modelo baseia-se num sistema de incentivos e na crescente precarização laboral. A carreira está refém de um conjunto de indicadores que se concentram na quantidade de artigos publicados em determinadas revistas. O trabalho docente não conta e, portanto, melhor, perturba o ritmo competitivo que domina na academia. O mesmo sucede com os processos de acreditação dos cursos, que tendem a marginalizar a actividade docente, difícil de medir. 
A crescente precarização faz com que os professores não possam desviar-se das directrizes estabelecidas, sobretudo se estão no início da carreira: têm de focar-se no que conta, e a docência claramente não conta. 
Reverter esta situação implicaria modificar o modelo de universidade que se foi impondo e também reverter a precarização laboral. 
É um modelo que introduz no ensino uma ortodoxia rígida no que respeita aos conteúdos e aos métodos. Não envolve os alunos, oferece-lhes veritas científicas num tempo de profundas incertezas e, claro, isso não resulta. Uma academia que se desvincula do mundo tem pouco para ensinar. Não fazemos ideia de quem são os alunos a quem nos dirigimos, do que precisam. Alunos que se transformaram e que deixámos de conhecer, de maneira que não sabemos o que devemos ensinar-lhe nem porquê. 
Temos professores que se sentem cada vez mais frustrados pois a universidade bloqueia o seu potencial. Para sair daqui não bastam os esforços pessoais – que existem e são muito meritórios –, é preciso revolucionar a universidade. 
Nessa revolução é preciso ter bem presente que se trata de uma instituição geradora de conhecimento, que deve aspirar a melhorar o mundo. Por isso é preciso transmiti-lo a quem o irá fazer: os alunos. 

BALANÇOS

 Novo poema de Eugénio Lisboa:


BALANÇOS

 

Chega, enfim, a hora dos balanços,

as contas certas a deixar aos vivos:

o deve e o haver sem esquivanços,

tudo exacto e sem paliativos.

 

Agitámo-nos talvez demasiado?

Produzimos provavelmente pouco?

Deram-nos mais do que por nós foi dado?

Quem nos amou, amámos nós tão pouco?

 

Quanto aprendemos, tanto ensinámos?

Nem sempre dissemos o que sentimos?

Fomos nós generosos, quando amámos?

 

Foram muitas as vezes que mentimos?

Tudo isto tem de estar no balanço,

porque, só assim, parto em descanso

Eugénio Lisboa.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Prima Bette de Honoré de Balzac

[A Prima Bette é o último romance de Honoré de Balzac. Aproveitando que tinha começado a ler uma versão muito elegante do livro publicada recentemente que estava na Casa da Cultura na pilha dos "livros que foram proibidos" e que eu próprio estava de quarentena dei um grande avanço à obra. Devo dizer que esta é de domínio público e pode ser encontrada como audiobook gratuito aqui (ouvi uma parte na versão inglesa). e refiro mais uma vez que em Coimbra temos duas bibliotecas com depósito legal, ou seja tudo o que é publicado em Portugal vai lá parar no espaço de um ou dois anos.]

Trata-se de uma história de uma grande complexidade, cheia de voltas e reviravoltas, personagens fascinantes e profundas e frases fantásticas sobre a natureza humana e o mundo. Não vou aqui fazer um resumo da história nem fazer uma análise desta sociedade que já não existe. Leiam o livro que vale a pena. Mas deixo aqui algumas notas: há um momento em que é dito “o amor na minha idade custa 30 mil francos” ou noutro em que se filosofa sobre uma “jovem bonita casar sem dote assustar os maridos”. Há bastantes passagens racistas, antissemitas e misoginas, para não falar das que seriam consideradas imorais ainda hoje ou ilegais. Mas é preciso lembrar que o livro foi escrito em 1846. Era uma altura em que havia muito poucos trabalhos decentes para mulheres, mas um artista já era um “príncipe não coroado”. Um mundo muito mais inseguro e cruel, em que a prostituição se podia iniciar aos quinze anos, mas havia, apesar de tudo, já alguma liberdade feminina e da população em geral. Curiosamente, uma das personagens femininas tem como emprego bordar a ouro em ornamentos de uniformes. Esse é outro aspeto interessante do livro. Na sociedade pós-napoleónica, toda uma economia social baseada em monges, freiras e padres é substituída por uma sociedade de funcionários e soldados. A natureza humana não muda muito apesar de tudo, mas o sociedade sim. Balzac, numa das suas muitas frases fantásticas diz, a propósito da bondade e do perdão, que Napoleão foi coroado imperador por metralhar o povo, mesmo ao lado do sítio onde Luís XVI perdeu a cabeça por não ter querido fazer algo parecido. Claro que as frases nunca são absolutas, há muitos contextos, mas é interessante esta reflexão. Proponho-me aqui referir alguma da ciência, em particular da química, presente (ou não) no livro.   

Nas muitas reviravoltas da história, há um momento em que uma personagem tem um marido, dois amantes mais velhos, rivais, um amante mais novo que acabou de chegar do Brasil e um amante ocasional. Todos são informados que são pais. E em passagens muito cómicas estão todos juntos num jantar. O marido (que sabia não ser o pai) refere em privado que são os cinco pais (padres) da igreja. Hoje em dia esse problema seria facilmente resolvido fazendo uma análise de paternidade. Parece haver já algum tipo de contraceção pois a ideia da gravidez desaparece mais tarde. De qualquer forma, a pílula que permitirá uma muito maior liberdade feminina só foi inventada mais de um século depois nos anos 1950 e só começou a ser comercializada nos anos 1960. De forma paralela, o preservativo como o conhecemos hoje só apareceu no início do século XX. Bem, e os estes de paternidade fiáveis só surgem com a descoberta do DNA nos anos 1950 e só se tornam comuns muito mais tarde.   

Outra coisa interessante, é a doença de que são acometidas duas das personagens. É dito que é uma doença desaparecida que existia na Idade Média, que tem cura em zonas mais quentes e nos negros e americanos por terem peles diferentes, sendo transmitida pelo brasileiro. Esta doença faz pensar na peste negra e na sífilis, mas estas não tinham cura também nos trópicos. Não é com certeza sífilis que é de evolução muito mais lenta e raramente mortal, embora muito dos sintomas descritos sejam da fase final da doença. Nesta altura não era ainda conhecida a teoria dos micróbios nem havia antibióticos que só irão aparecer nos anos 1940. Mas existe essa espécie de religião perante a ciência. “Um verdadeiro médico apaixona-se pela ciência” diz um médico que procura ajuda junto do seu amigo, o famoso químico, professor Duval. É curioso que quase não haja referência à sífilis no livro, mas há um momento em que uma das personagens refere de forma metafórica que alguém entre dois metais escolheu o mercúrio (o outro deveria ser o ouro ou a prata).

Há um momento em que é referido que uma das personagens pintou os cabelos louros com um líquido que lhes deu um tom cinzento (no original francês “cheveux cendrés”) pois não queria parecer loura como a mulher de outro. Mesmo as personagens femininas mais recatadas pintam os cabelos. 

Na versão portuguesa não se nota tanto, mas na inglesa são referidas muitas cores que evocam materiais (cor de limão, enxofre, laranja, ouro, cereja, cobre, chocolate, entre outras). Várias cartas e bilhetes são escritos a lápis. Nesta altura ainda não havia canetas de tinta permanente e os escritos a tinta precisavam de penas e aparos. O lápis era assim muito mais prático.

Há muitas referências às roupas e rendas caras. Estas eram complexas, difíceis de elaborar. Não havia tecidos sintéticos nem fios elásticos. Também a iluminação que usam (essencialmente velas e grupos de velas) é interessante. Parece que não se tinha popularizado ainda aqui o candeeiro de Argand, mas a luz elétrica está ainda muito longe de aparecer.

Em resumo, um livro pode levar-nos a enredos, ambientes e mundos passados. Permite-nos refletir sobre a natureza humana e sobre o mundo, mas também sobre como ele era e como se modificou com a ciência.         

    

quinta-feira, 26 de maio de 2022

NOVOS CLASSICA DIGITALIA

 
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.

 
NOVIDADES EDITORIAIS


Série “Autores Gregos e Latinos” [textos]

- Maria de Fátima Silva, Pausânias. Descrição da Grécia. Livro II. Introdução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022). 236 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2271-2

[Pausânias é o nosso único testemunho de literatura periegética e o autor de um relato precioso sobre a Grécia da época de ocupação romana (séc. II d.C.). A sua descrição é a de alguém que viajou e sintetiza o que ‘viu’, com um olhar que não é só o de um turista curioso, mas de um intelectual que dispõe de uma sólida formação cultural e de uma informação ampla, em resultado de uma recolha criteriosa de todo o tipo de fontes, orais e escritas. Para com Pausânias mantemos em aberto uma enorme dívida: a de ter salvado um lastro de monumentos, de acontecimentos históricos, de figuras e de tradições que, sem ele, se teriam em definitivo apagado da memória dos homens.]

Série “Portugaliae Monumenta Neolatina” [texto latino, tradução e comentário]


 - Maria da Conceição Camps, Mário Santiago de Carvalho & Sebastião Pinho, O Curso Aristotélico Jesuíta Conimbricense: Tomo IV: De Anima. Parte I [Manuel de Góis]. Fixação do texto latino, introdução, tradução, notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022) 722 p.

DOI:  https://doi.org/10.14195/978-989-26-2217-0  

[Este volume inclui o comentário aos Livros I e II da obra aristotélica Acerca da Alma (Peri Psychés/De Anima).]

 

O GÉNIO NA CIÊNCIA E NA ARTE

 


Meu artigo no n.1 da revista ÁRVORE DAS VIRTUDES da Cooperativa Árvore do Porto:

O que é um génio? Uma pessoa com uma mente excepcional, que, graças a ela, consegue criar obras radicalmente inovadoras. Não sendo fácil distinguir o excepcional do normal, ninguém objectará que, na ciência, Galileu, Newton, Maxwell e Einstein são génios. Também ninguém objectará que, na literatura, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe o são. Ordenei-os, em cada área, por ordem cronológica de nascimento, por ser impossível construir uma escala de genialidade em cada área ou de âmbito universal. Não faltou quem tentasse realizar essa tarefa, baseado numa avaliação quantitativa da capacidade mental, mas todos esses ensaios são muito discutíveis e os seus resultados largamente insatisfatórios. 

Falarei aqui das marcas qualitativas da genialidade, com foco na ciência, mas não esquecendo a arte. Procurarei explicitar características comuns que se podem encontrar nessas duas dimensões do espírito humano, contribuindo para aproximar as “duas culturas” cuja separação Charles Snow sublinhou. 

Na Antiga Roma genius era um espírito que tutelava uma pessoa, uma família ou um lugar. Portanto, o génio começa por estar ligado à magia e ao mistério: manifestando-se no mundo, um génio vinha de fora dele. A palavra, que se relaciona com os verbos latinos gignere e generare deriva do radical indo-europeu ǵenh (gerar, nascer, procriar). A palavra “gene”, que designa a unidade física da hereditariedade, veio no início do séc. XX do alemão Gen, também com origem em ǵenh. Os indivíduos excepcionais que pareciam ter uma aura inata passaram, na modernidade, a ser conhecidos por génios. Eram pessoas com um talento extraordinário e não demiurgos por trás deles. Mas resultará o génio humano de uma herança ou de um trabalho? 

 A resposta que hoje a psicologia e as neurociências fornecem é que ele resulta da combinação dos dois factores, com predomínio do segundo: a pessoa tem, à partida, uma capacidade mental fora do comum, mas esta terá de ser desenvolvida na interacção com o ambiente. A capacidade de trabalho afigura-se essencial já que sem ela qualquer talento perece. Há decerto factores genéticos na construção da mente – a genética é acaso e necessidade – mas é preciso saber aproveitar as condições externas disponíveis num certo espaço e tempo –e aí volta a haver acaso e necessidade. 

 Vejamos, na ciência, o que um génio faz de genial. Galileu propôs o método científico que exercitou através da observação (o telescópio), da experiência (o plano inclinado) e da matemática (a lei da queda dos graves). Mas foi Newton quem ligou a física da terra e a física do céu, que para Galileu estavam disjuntas, com a lei da gravitação universal. Maxwell, por sua vez, uniu as leis da electricidade e do magnetismo, alcançando uma descrição unificada num conjunto de quatro equações. Apercebeu-se que da sua combinação resultava a existência de uma onda: era a luz, cuja natureza foi assim revelada. Einstein, por sua vez, ao procurar conciliar as leis do movimento de Galileu e Newton com as leis do electromagnetismo de Maxwell, teve de modificar as primeiras. Mas fez mais: explicou a lei da gravidade com base na deformação do espaço, que obriga a luz a curvar-se. A novidade inesperada foi: “A luz pesa.” 

O trabalho destes génios ilustra bem o processo cumulativo na ciência. Conforme disse Newton: “Se consegui ver mais longe foi porque estava aos ombros de gigantes.” Na arte essa passagem de testemunho, existindo, não é tão evidente. Goethe leu Shakespeare, mas este não leu Dante nem Cervantes, seu contemporâneo (tal como Galileu). O mais notável é que todos os referidos génios científicos revelaram relações ocultas. Duas partes do mundo, que pareciam a priori diferentes, passaram a estar associadas: por exemplo, a maçã de Newton e a Lua eram atraídas pela Terra segundo uma mesma lei. A Natureza compraz-se em apresentar-se de múltiplas formas e feitios, mas algumas mentes obtiveram unificações simples e elegantes. 

O paralelo entre arte e ciência é claro: nas duas, ligam-se coisas que pareciam estranhas uma à outra. Um cientista procura ligar coisas diversas e um artista, à sua maneira, faz o mesmo. Por exemplo, um escritor, ao criar uma metáfora está a associar dois conceitos que pareciam arredados. A Divina Comédia está recheada de metáforas e é toda ela uma metáfora sobre a vida. A frase “O mundo é um palco” em Como vos Aprouver associa sociedade e teatro de um modo lapidar. A luta contra os moinhos de vento no Dom Quixote é uma metáfora da loucura. O Fausto é uma denúncia metafórica dos riscos da ciência. Escreveu Jacob Bronowski, matemático e literato, num artigo da Scientific American (1958): “Um ser humano torna-se criativo, seja ele um artista ou um cientista, quando encontra uma nova unidade na variedade da natureza. Faz isso encontrando uma semelhança entre coisas que antes não eram pensadas como semelhantes, e isso dá-lhe um sentimento de enriquecimento e de compreensão. A mente criativa procura a semelhança inesperada.” Ele já tinha expresso essa ideia no seu ensaio Science and Human Values (1956): “Quando Coleridge tenta definir beleza, regressa sempre a um pensamento simples e profundo: a beleza é ‘unidade na diversidade’. A ciência não é mais do que a busca da unidade na variedade desordenada da Natureza – ou, mais exactamente, na diversidade da nossa própria experiência. A poesia, a pintura, as artes em geral, são o mesmo”. 

 Fala-se muito da beleza na arte, mas fala-se pouco dela na ciência. E, no entanto, a beleza está omnipresente no trabalho científico. O físico David Bohm, no seu livro On Creativity (1996), explicou: “Em ciência, vemos e sentimos a beleza de uma teoria apenas se esta for ordenada, coerente, harmoniosa com todas as partes a surgirem naturalmente de princípios simples e com todas as partes concertadas para formar uma estrutura total unificada. Mas estas propriedade são necessárias não só por causa da beleza de uma teoria, mas também da sua verdade… Para o cientista tanto o Universo como uma teoria que ele faz dele são belos no mesmo sentido em que uma obra de arte é bela – esta também deve ser um todo coerente.“ 

A identidade da verdade e beleza foi assinalada por John Keats num seu poema (“A beleza é a verdade, a verdade é a beleza”). Talvez ele conhecesse o lema latino Pulchritudo splendor veritatis (“A beleza é o esplendor da verdade”). De facto, é muitas vezes o brilho de belo que permite reconhecer o verdadeiro. A beleza, nesses casos, não é uma resposta arbitrária de um espectador, mas uma realidade que se impõe. O matemático Henri Poincaré enfatizou o princípio estético que move os cientistas em Le Valeur de la Science (1905): "O cientista não estuda a Natureza porque tal é útil. Estuda-a porque tem prazer nisso; e tem prazer nisso porque ela é bela." 

 Ao contrário do que normalmente se julga, a imaginação é um recurso indispensável tanto aos cientistas como aos artistas. Einstein louvou-a: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação dá a volta ao mundo." É usando a imaginação que os cientistas colocam hipóteses a respeito do mundo. E só os génios têm as grandes epifanias que alargam e aprimoram a nossa visão do mundo. Poder-se-á pensar que a imaginação científica, confinada como está pela adequação à realidade física, é bem mais limitada do que a imaginação artística, designadamente a literária. Porém, o nosso mundo tem desafiado e continua a desafiar a imaginação humana. A imaginação da Natureza é bem maior do que a nossa. No futuro, haverá decerto mais génios.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Várzea

Daqui a algumas horas, há de ser noite e um filamento iluminará o mar e lerei até um livro tombar no meu peito. Entretanto, os choupos rejuvenesceram de um dia para o outro. À beira do caixote do lixo, um sofá, pútrido e esburacado, está à espera de alguma alma, e só pela vindima sou feliz, quando as uvas e as almas sobem pelos taludes dos vinhateiros. Na minha meninice, as uvas sabiam-me melhor, depois de atravessar o longo carreiro para casa, entre tojo, arbustos, silvas, pinheiros bravos e carvalhos; depois de pernoitar, com os meus primos, e, com um sacho, as mãos e uma lanterna, fazermos terreiros rente aos sulcos de água nos milheirais e voltados para as oliveiras, para as figueiras gigantescas, cobertas de musgos, e para os vergueiros rente à vala da várzea; depois de armarmos os costelos e de vermos as lagartas do milho a rabiarem, de um lado para o outro, para se desprenderem. Naquele tempo, a terra era amanhada e havia muitos taralhões saltitando, sôfregos, nas oliveiras, melros corricando entre canoulos, piscos-de-peito-ruivo e cartaxos nas moiteiras; havia muitos pássaros e muitos homens a rabiarem na terra, lado a lado.

...

Há dias em que uma rapariga sussurra: – Isto é uma pessoa!? Há dias em que a fadiga dos nervos em mim ressoa. Há dias em que ninguém me responde, quando indago a estrela ou a giesta. O telhado do curro vive no chão, porque as bátegas minaram os esteios, e não me resolvo a chamar o porvir. Permaneço no passado. É aí que nós estamos. É aí que o cabo elétrico se estende, até às vigas, e uma lâmpada guia os bácoros para as tetas úberes da mãe. É aí que colhes, pai, o pão da aurora, que a bicicleta-pasteleira bate na escada de argamassa e franqueia prudentemente as pedras. É aí que, enorme e inexpugnável, vergastas os ramos da oliveira mais alta do olival da várzea, A Torre, dizias com espanto, perdendo o olhar no azul do céu. É aí que, com um serrão, traçamos os toros de pinheiro, assentes em um xis e noutro xis, e vemos a lâmina ensaboada, puxada pelos braços para cá e para lá, e a serradura a cair para cá e para lá. É aí que nos aquecemos ao borralho adusto, nas noites gélidas, onde o fogo se ergue e a cinza se amontoa da cor do lápis de grafite que vai e volta, entre linhas, até à extinção.

domingo, 22 de maio de 2022

Cosmos em Português

MEU ARTIGO NO ÚLTIMO JL: 

 São muitos e alguns deles muito bons os livros de divulgação científica sobre o Cosmos em português. Podemos hoje chamar clássicos aos que saíram nos anos de 1980 na Gradiva, como Cosmos, de Carl Sagan, e Os Primeiros Três Minutos, de Steven Weinberg, dois autores que já não estão entre nós. Continuam a sair livros sobre o mesmo tema, devidamente actualizados, já que a ciência está como o Universo em expansão: acaba de ser publicado, nas Edições 70, Uma Breve História do Universo, de Neil deGrasse Tyson, Michael Strauss e J. Richard Gott, e não tardará a surgir, na Gradiva, O Pequeno Livro da Cosmologia, de Lyman Page. 

 Como a ciência conheceu também entre nós um período de expansão acelerada (graças sobretudo a clarividência de José Mariano Gago, que faria agora 74 anos, não fora o seu falecimento prematuro), é natural que apareçam obras de divulgação da cosmologia e astrofísica escritos por cientistas portugueses. Acabam de sair dois excelentes livros de autores nacionais: um incidindo mais sobre cosmologia – isto é, o início, a dinâmica e a estrutura geral do Cosmos – e o outro mais sobre astrofísica – isto é, o seu enchimento com estrelas de vários tipos, agrupadas em galáxias. O primeiro, que se intitula simplesmente O Universo, com o subtítulo mais longo Do Big Bang aos Buracos Negros, é o n.º 121 da colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigida por António Araújo. É seu autor o cosmólogo Paulo Crawford, professor aposentado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Curiosamente, Crawford, que escreveu a primeira tese doutoral sobre cosmologia no nosso país foi, quando era mais jovem (ainda é!), o autor do prefácio e notas da tradução portuguesa de Os Primeiros Três Minutos. O segundo dos novos volumes tem por título Qual é o Nosso Lugar no Universo?, com o subtítulo mais comprido Uma viagem pelo mundo da astronomia e das nossas origens pela mão de um astrofísico, saiu do prelo da Planeta. O seu autor é David Sobral, mais jovem que Paulo Crawford, doutorado na Universidade de Edimburgo e hoje professor de Astrofísica na Universidade de Lancaster (no Reino Unido) depois de ter sido investigador no Observatório de Leiden (na Holanda) e no Observatório Astronómico de Lisboa, associado à referida Faculdade de Ciências. Crawford é físico teórico, especialista na Teoria da Relatividade Geral de Einstein, na qual assenta a cosmologia, ao passo que Sobral é um astrónomo observacional que tem usado os maiores telescópios do mundo, incluindo o Telescópio Espacial Hubble. Ficou justamente famoso em 2015 pela sua descoberta de uma galáxia brilhante, nos confins do Universo, a que deu o nome de CR7: não, o CR não significa Cristiano Ronaldo 7, mas sim Cosmos Redshift 7, uma medida da posição no tempo cósmico. Os dois autores têm evidente talento para divulgarem a ciência que tão bem conhecem e fazem. 

O Universo, com 121 páginas, depois de um prefácio e uma introdução, tem cinco capítulos em prosa clara, que são seguidos por uma curta bibliografia. Começa pela Via Láctea, contando como se descobriram outras galáxias para além da nossa, continua com a teoria de Einstein e os modelos cosmológicos nela baseados, conta a seguir como as observações do afastamento das galáxias e da radiação cósmica do fundo tornou verosímil uma das soluções das equações de Einstein, fala na sequência dos constituintes mais exóticos do Universo (incluindo buracos negros e as ondas gravitacionais que as suas colisões originam), e, finalmente, discute questões em aberto como a expansão acelerada do Universo (que obriga a postular a energia escura) e a possibilidade de universos paralelos.

 Por sua vez, a pergunta Qual é o Nosso Lugar no Universo? é respondida, depois de um preâmbulo e antes de uma bibliografia, num total de 245 páginas, que se repartem por 14 capítulos, numa prosa que por vezes tem ressonância literária (ou não tivesse o autor escrito no DN Jovem e publicado ficção). Alguns tópicos são os mesmos que no livro de Crawford, como a descoberta do universo extra-galáctico e do afastamento das galáxias por Hubble, num movimento que hoje sabemos ser acelerado, mas Sobral debruça-se também sobre a vida e a morte das estrelas, a matéria escura (que existe nos halos de todas as galáxias), os buracos negros supermaciços (que estão nos centros das galáxias, desde logo a nossa), o que ele chama a «crise cósmica» (que significa o actual declínio da formação de estrelas), e, quase no fim, a sua descoberta da CR7. Sobral, que invoca Álvaro de Campos logo no inicio («Não sou nada,/ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo»), fala da influência que teve na sua vida a oferta da Poesia Completa desse poeta quando andava na escola secundária, o triunfo num concurso juvenil de ciência e a aventura que foi para um rapaz do Barreiro fazer a primeira viagem aérea a Dublin para representar Portugal. Haveria de ir mais longe ao Havai e ao Chile, para ver o céu. No capítulo final fala não daquilo que se sabe, mas daquilo que falta saber e que talvez se venha a saber, usando novos instrumentos, nos quais sobressai o Telescópio Espacial James Webb . 

Recomendo vivamente os dois livros. Deixo um pouco do «sabor» da prosa dos dois autores. Escreve Crawford, no início: «Ao admitir que o mais simples é considerar a organização autónoma da natureza, direi que, no caso de um cientista que não seja crente o mais natural é ignorar a pergunta sobre a origem das leis físicas e supor simplesmente a existência do universo». Por seu lado, Sobral, quase no fim, revela o que é a ciência em acção, impregnada pelas reacções humanas, ao insurgir-se contra as invectivas que um investigador japonês fez, a ele e à sua equipa, a propósito da descoberta da CR7: «Quando uns putos da Europa, sem recursos, sem dinheiro, e por isso vulneráveis a ataques descobriram galáxias e obtiveram resultados que acabariam por transformar o campo de investigação, deu-se uma reacção emocional quase imparável.» 

 Os dois livros mostram que o Cosmos não só pode ser contado em português, como pode ser descoberto na língua de Álvaro de Campos. Basta sonhar e perseguir o sonho.

 CARLOS FIOLHAIS

quarta-feira, 11 de maio de 2022

JÁ LÁ VÃO TREZE ANOS, VENHAM MAIS TREZE

Meu depoimento no número de aniversário da revista «As Artes entre as Letras»:

O tempo é um grande mistério. Passa inexoravelmente e nós com ele. Sempre do passado para o futuro: fazemos história com o passado e não podemos fazer história do futuro (o padre António Vieira foi a excepção que confirmou a regra). A fundação da revista «As Artes entre as Letras» pela jornalista Nassalete Miranda no ano de 2009 já faz parte da nossa história cultura e, pese embora todas as incertezas, está-lhe destinado um bom futuro. Desaparecidos os suplementos literários dos jornais, fazia e faz falta uma revista no Norte que plasmasse a riqueza e variedade cultura que abunda nessa região do país.

Orgulho-me de ter estado desde o início do empreendimento, participando em tudo o que me foi pedido. Hoje e desde há já algum tempo (nem me lembra quando) participo com uma coluna mensal em que falo de livros e temas de ciência – e não só, porque a ciência não é uma ilha e comunica com imensos territórios. Colaborei sempre com o maior gosto. Sinto-me parte de uma comunidade que aprecia e defende as artes e as letras (e também, como mostra a minha coluna, a ciência, pois esta, sendo parte da cultura, gosta de estar no meio das artes e as letras). É-me grato verificar que existe um público interessado na cultura, que amiúde colabora na revista com as suas próprias produções. A cultura – na forma de letras, artes ou ciências - é um bem comum.

2009 foi ontem, mas parece que foi há muito tempo. Foi o ano em que Barack Obama começou o seu primeiro mandato de presidente dos Estados Unidos (nesse mesmo ano ganhou o Prémio Nobel da Paz). Foi o ano em que ainda se sentia no mundo a grave crise económica de 2008 (em Portugal chegaria de forma violenta em 2011). Foi o ano em que a Rússia cortou o fornecimento e gás natural à Europa através da  Ucrânia. Foi o ano em que entrou formalmente em vigor o tratado e Lisboa. Foi o ano da gripe suína, uma pandemia global que assustou muita gente. Foi o Ano Internacional da Astronomia, comemorando os 400 anos das primeiras observações com o telescópio realizadas por Galileu. Foi o ano em que um piloto americano fez uma bem-sucedida aterragem de emergência no rio Hudson, em Nova Iorque. Foi o ano em que foi reparado o telescópio Hubble. Foi o ano em que o filme mais popular – e um dos mais populares de sempre – foi o «Avatar», de James Cameron (que tem formação em Física).  Foi o ano em que morreu Michael Jackson. Ainda se lembram?

Em Portugal, o ano de 2009 foi dominado por eleições europeias ganhas com alguma surpresa pelo PSD e pela vitória muito clara nas eleições  legislativas do PS, encabeçado por José Sócrates, embora perdendo a maioria absoluta que tinha ganho quatro anos antes (o CDS de Paulo Portas teve 10,4% dos votos…).

Em 2022, no fim de uma pandemia, estamos a assistir a uma guerra assustadora entre a Rússia e a Ucrânia. Na economia internacional cresce a inflação. E estamos confrontados com um dos maiores problemas da humanidade -  as alterações climáticas – que nos desafiam a todos. Em Portugal começou o seu mandato de um governo de  maioria absoluta, que dispõe de mundos e fundos vindos da União Europeia.

Não é apenas a cultura, incluindo nela a ciência, que nos vai valer, abrindo-nos as luzes do futuro. É preciso, nestes tempos incertos, encontrar em nós a esperança necessária. A esperança é, de resto, um dos alicerces da cultura. Longa vida ao «As Artes entre as Letras»!

Carlos Fiolhais


 

O CLIMA E O HOMO SAPIENS

 Minha contribuição para o livro «1001 Vozes pela Sustentabilidae» (Oficina do Livro/ISCTE):

A Humanidade está confrontada com um dos maiores desafios da sua história. Graças à acumulação de inúmeros trabalhos científicos, compilados e analisados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da Organização das Nações Unidas - ONU, não restam hoje dúvidas de que:

1)      O nosso planeta está a aquecer. A temperatura média à sua superfície é de 1,2 graus Celsius (ºC) acima do nível pré-industrial.

2)      Esse aumento deve-se à acção humana, designadamente à emissão maciça dos gases de efeito estufa, dos quais os mais importantes são o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso.

Os registos são seguros e a física das alterações climáticas está bem estabelecida: o japonês Syukuro Manabe e o alemão Klaus Hasselmann, autores de modelos computacionais suficientemente realistas para sustentar as conclusões atrás formuladas, foram justamente premiados com o Nobel da Física de 2021.

Os chamados negacionistas das alterações climáticas, aos quais de vez em quando os média continuam a dar voz, ignoram tanto os dados, que estão à disposição de todos, como o método científico, que infelizmente só uma minoria compreende. O consenso na comunidade científica é, nesta altura, bastante sólido, apesar de haver uma ou outra «ovelha tresmalhada». E esse consenso tem sido transmitido à sociedade, apesar de haver, fora da ciência, quem persista quer em rejeitar a ciência quer em invocar a ciência em defesa das suas desrazoáveis posições. Nesta como em tantas outras questões da nossa vida, há interesses instalados que fazem tudo o que podem para se manterem. Na comunidade científica e na larga faixa da população que nela confia, a questão não é, neste momento, nem a realidade das alterações climáticas nem a sua origem, mas apenas as melhores medidas a tomar e o grau de otimismo ou pessimismo que se pode ter a respeito da sua boa e rápida execução.

Estamos ainda a tempo impedir o que pode ser uma catástrofe: se a temperatura do planeta subir 3 ºC  acima do referido nível, prevê-se que haja uma razia de cerca de 70 por cento da actual biodiversidade. Muito provavelmente, nesse cenário a espécie humana não perecerá, dada a sua enorme capacidade de adaptação, mas teria de viver de um modo muito diferente de hoje, já que estamos absolutamente dependentes do nosso meio ambiente, em particular dos seres vivos que partilham esse meio connosco.

No Acordo de Paris, assinado em 2015, tinha ficado estabelecido que o acréscimo da temperatura média do planeta não deveria em caso algum subir acima do limiar de 2 ºC, não indo desejavelmente além de 1,5 ºC acima do nível pré-industrial. Ora, actualmente esse acréscimo de temperatura é 1,2 ºC e, segundo o relatório divulgado em Agosto passado pelo grupo de Ciências Físicas do IPCC, que servirá de base ao próximo relatório deste organismo, o sexto, a sair em 2022, o objectivo de 1,5 ºC encontra-se seriamente comprometido.

Sabendo o que sabemos, porque é os países não reduzem as suas emissões de gases de efeito estufa, em particular as de dióxido de carbono? Há tentativas mais ou menos generalizadas para abrandar essas emissões, caminhando em direção ao chamado «net zero» de dióxido de carbono (situação em que as emissões para a atmosfera compensam as absorções). Mas, no conjunto do planeta, essas emissões continuam a subir, sendo difícil prever quando começará a imprescindível descida. Esse pico depende de medidas que têm necessariamente de ser tomadas à escala global. Vimos, em 2021, na COP26, realizada em Glasgow, as grandes dificuldades de entendimento entre os vários países. O acordo foi mínimo, embora tivesse sido positiva a referência explícita à redução do uso de carvão, um combustível fóssil na base de boa parte do dióxido de carbono libertado, e a lembrança de ajudas financeiras aos países menos desenvolvidos. Desenvolvimento significa consumo de energia. Com efeito, o nosso bem estar depende do funcionamento de centrais de energia, da disponibilidade de combustíveis para veículos de vários tipos e da prática de processos agrícolas e industriais de larga escala: todas essas actividades implicam emissões de gases de efeito de estufa. Os países menos desenvolvidos aspiram naturalmente a desenvolver-se, como outros já fizeram, e, por isso, têm protelado os seus prazos de net zero. Por seu lado, os países mais desenvolvidas já em Paris tinham prometido aos outros ajudas, que ainda não concretizaram.

Apesar de todos os avanços com a disponibilização de energias alternativas, veículos «amigos» do ambiente e de processo agrícolas industriais sustentáveis, não há que ter ilusões: ainda não dispomos de meios que nos permitam substituir completamente os processos tradicionais que têm provocado o aquecimento global. Mas é lícita a confiança no aprofundamento de um caminho comum no sentido da mitigação das alterações climáticas, um caminho que poderá ser ajudado por soluções inovadoras que entretanto surjam. A necessidade sempre aguçou o engenho.

Por muitas iniciativas individuais, locais ou regionais que possam ser tomadas – e elas são e serão sempre louváveis – medidas à escola global afiguram-se imperiosas. Por muito difícil que seja, é preciso celebrar um acordo como o de Paris, mas de conteúdo mais pormenorizado e de execução mais monitorizada. É preciso que a Humanidade, composta por mais de sete mil milhões de indivíduos divididos em cerca de 200 países, actue de uma forma mais concertada e eficaz. As dificuldades que a ONU enfrenta são o natural reflexo da fragmentação política do mundo. Será preciso, contrariando todas as divergências regionais e locais, unirmo-nos para responder a um desafio que diz afinal respeito a todos. Como não há outro planeta para onde ir no futuro previsível, temos de cuidar daquilo que o papa Francisco chamou «casa comum». A ciência fornece conhecimentos, a tecnologia instrumentos, mas o governo da «casa comum» é um assunto de política e não de ciência nem de tecnologia.

O problema das alterações climáticas é mais grave em Portugal em comparação com outros países europeus, por nos situarmos no Sul da Europa, uma região muito vulnerável a períodos de seca (que estão associados a maior risco de incêndios florestais), e por possuirmos uma extensa zona costeira, exposta a tempestades e sujeita ao aumento dos nível das águas do mar. Se é certo que temos algumas condições naturais para substituir energias convencionais por energias alternativas (hídricas, eólicas e solares), não é menos verdade que só demos alguns passos num longo caminho. Os problemas são múltiplos e complexos. De resto, não dependemos só de nós: os países ou se salvam em conjunto ou pura e simplesmente não se salvam, pois o sistema climático não conhece fronteiras.

O sector da ciência, tecnologia e ensino superior, ao qual estou mais ligado, tem dado valiosos contributos para o reconhecimento e resolução do problema das alterações climáticas, mobilizando-se tanto para fazer diagnósticos como para propor soluções. Esse sector deve continuar a fazer o que faz melhor, isto é, deve continuar a fazer ciência e tecnologia, transmitindo-a não só às gerações mais novas, mas também a todos os cidadãos, fazendo com que o conhecimento seja apropriado pela sociedade em geral. Mais do que medidas voluntaristas – como deixar de oferecer carne nas cantinas – o mais importante será conceber e concretizar políticas científicas em cada instituição que levem em conta as alterações climáticas, dando especial atenção ao alargamento da cultura científica. Tão importante como fazer ciência é transmiti-la a uma sociedade que depende criticamente dela, embora nem todos tenham consciência disso.

As instituições portuguesas podem, claramente, fazer mais. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que tem a tutela das unidades de investigação e das escolas de ensino superior, tem andado bastante alheado do problema, deixando-o principalmente entregue a dois outros Ministérios, o do Ambiente e Acção Climática e o da Economia e Transição Digital. Os governos têm enchido a boca de ciência e tecnologia, mas, de facto, não têm feito muito por elas. Basta reparar na posição baixa de Portugal no ranking das nações europeias no que respeita ao investimento em ciência e tecnologia: segundo os números mais recentes, Portugal investe apenas 1,6 por cento do PIB, ao passo que a União Europeia investe em média 2,3 por cento. Há em Portugal um discurso oficial, oriundo da União Europeia, que mantém a questão climática na agenda pública, mas não há o correspondente investimento na ciência e tecnologia. O que é preciso fazer?  Investir mais em ciência e tecnologia, usando para isso os fundos comunitários que estão à nossa disposição, e definir uma política nacional de ciência e tecnologia que contemple as alterações climáticas como uma área prioritária. Esse investimento tem de ser público, mas tem também de ser privado, pois a contribuição em investigação e desenvolvimento do nosso sector empresarial ainda deixa a desejar no cotejo com o quadro europeu.

Concluo com uma nota optimista, tentando contrariar algum alarmismo excessivo que por vezes se ouve. Os cientistas tendem a ser optimistas porque sabem que o conhecimento se acumula e que surge amiúde conhecimento disruptivo com consequências sociais de grande alcance (é isso precisamente o que significa «inovação»). Como morei na Hölderlinstrasse em Frankfurt am Main, na Alemanha, quando fiz o doutoramento em Física no início dos anos 1980, prefiro dar voz ao poeta romântico alemão, Friedrich Hölderlin, que disse: «Onde cresce o perigo surge também a salvação». Esse é precisamente o título de um livro do astrofísico e ecologista franco-canadense Hubert Reeves (Gradiva, 2020), que alerta para a falta de «saúde» da Terra. Temos a obrigação de ser fiéis ao nome da nossa espécie, homo sapiens. Não se entenderia se não usássemos a nossa inteligência em nossa defesa… O mundo está um sítio perigoso? Sim, mas se formos sábios, poderemos salvá-lo, salvando-nos.

 

Carlos Fiolhais

Carlos Fiolhais (n. 1956) licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra, UC (1978) e doutorou-se em Física Teórica na Universidade Goethe, Frankfurt (1982). É professor catedrático aposentado de Física da UC. É autor de mais de 60 livros pedagógicos e de divulgação científica e de centenas de artigos científicos, pedagógicos e de divulgação. Foi director da Biblioteca Geral da UC e Coordenador da Área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Dirige o Rómulo - Centro Ciência Viva da UC e a colecção Ciência Aberta da Gradiva. Ganhou, entre outros, os prémios: José Mariano Gago da SPA (2018), Ciência Viva-Montepio (2017), o Globo de Ouro de Mérito e Excelência em Ciência da SIC (2005) e a Ordem do Infante D. Henrique (2005).

NOVA ATLANTIS

 “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à informação.

Imprensa da Universidade de Coimbra

Atlantís - review

v. 45 (2022)

Sumário

https://impactum-journals.uc.pt/atlantis/index

[Recensão a] MONTERO, Santiago: Prodigios en la Hispania romana, Madrid, Edição de Guillermo Escolar, 2020, 350 pp. ISBN: 978-84-18093-58-6

José d'Encarnação

[Recensão a] CURRÁS REFOJOS, Brais Xosé: Las sociedades de los castros entre la Edad del Hierro y la dominación de Roma. Estudio del Paisaje del baixo Miño, Bibliotheca Praehistorica Hispana, Vol. XXXV, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2019, 541 pp. ilustradas, ISBN: 978-84-00-10592-1

João Pimenta

[Recensão a] DJURSLEV, Christian Thrue: Alexander the Great in the Early Christian Tradition. Classical Reception and Patristic Literature, London, Bloomsbury Publishing, 2020, X + 232 pp. ISBN: 978-1788311649

Aurelio Pérez Jiménez

[Recensão a] ROBERTS, Julia, SHEPPARD, Kathleen, HANSSON, Ulf R. & TRIGG, Jonathan R. (eds.): Communities and Knowledge Production in Archaeology, Manchester University Press, 2020. 272 p. ISBN: 978-152-613-45-54

Sérgio Alexandre da Rocha Gomes

Renato Pereira Brandão - Expansão Ultramarina Portuguesa

domingo, 8 de maio de 2022

Retorno do Mar

Retorno do mar e subo a ladeira da Fonte, com a mãe a gritar na lomba: Devia estar um dia de calor...! e o pai todo teso e cheio de nove horas a responder-lhe: – És uma isolada! Não sabes o que é mundo! Um dia em cheio de praia! Até a areia queimava nos pés! Subimos para a aldeia à ilharga da cidade, cansados e ignorando o porvir. Subimos para o céu azul-escuro, com o sol perecendo atrás de nós num vermelho-papoila. Neste alto, o que parte e se perde volta assiduamente: a este, uma torre branca sobre uma outra colina; no poente, o sol, e, na estrada sinuosa, os homens. Neste alto, o sol foge-nos, ao fundo, do rosto, os ventos vergam os cedros e os ciprestes, e, teimosamente, fustigam os estores e são temidos pelo peito. Na aldeia, há um homem imaculado que está vivo e desce, agora, a escada exterior para a serventia da casa. É levado, nos ombros dos conterrâneos, para a eternidade. Um homem que quis a vida, que escondeu dos meus olhos os gritos e as lágrimas. Esse homem iletrado é o poeta que sussurrava à mãe que antes queria andar a cavar ao sol mais ardente, que me reprimia com um sorriso, enquanto, agonizante, eu lhe fazia a barba na sala do hospital de Chão de Peniscos: Não tremas, rapaz! Ó tremeliques… O passado é esta oliveira que vejo permanentemente sob o céu; esta oliveira, centenária e buliçosa, com um manto de flores miúdas ao redor; esta oliveira, amanhã azeitona...Chorei tanto, em novembro, depois de morreres! No reboque do trator, carregado de sacos de azeitona e folhas, pelos caminhos enlameados e pelo frio cortante do ocaso, chorei tanto! Com os braços moídos, abatidos pelas varas de eucalipto, chorei tanto! Deitado, sobre os sacos e de olhos fechados, chorei tanto para dentro de mim! Por vezes, abria os olhos e via, de soslaio, a tristeza da mãe. A poesia és tu, pai, são os teus passos. Eu escrevo para que a chuva me leve às nuvens, a escuma do mar me leve para lá da linha do horizonte, o sol-pôr no mar me leve à serra e as flores dos jacarandás me levem ao fundo da terra. É para Deus que me volto nas injustiças e na imperfeição do mundo, procurando, inutilmente, respostas. Um dia, um professor contou-me que, no seu estágio, deu aulas ao sétimo ano de escolaridade. Nesse ano, teve um aluno que padecera de um tromboembolismo, durante o parto, e ficara com uma parte do corpo paralisado. Como era ansioso, escrevia e apagava logo o que escrevia, no quadro, enquanto o menino se lamentava, numa voz arrastada: Ó professor, não apague o quadro! O professor disse-lhe, então, para passar pelo seu colega do lado. No final da aula, o menino virou-se às murraças e às palmadas à mesa, quase até lhe faltar o fôlego, e a gemer:Ó professor, qualquer dia parto-o todo… O professor ficou siderado, impassível e nada fez. Quando a atmosfera da sala de aula amainou, dirigiu-se ao menino e perguntou-lhe: Porque fizeste isto? Com as lágrimas a caírem-lhe dos olhos, sob os óculos graduados, a soluçar e apontando para o olho, ele disse:Eu sou quase cego de um olho! Eu escrevo só com uma mão!, enquanto na palma da mão esquerda e próximo do dedo mindinho, mostrava uma escoriação que ia inchando. Quando o professor saiu da escola, era de noite, as lágrimas caíam-lhe pelo rosto, e, como um cego, questionava, em vão, Deus. Estava no início do ano letivo...Volto à frondosidade das oliveiras perenes, aos campos, em baixo, ao barro que é o leito das ondas de luz, o peito com a cruz cinérea, o manto da névoa do alvor e o canto da pedra à chuva. 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Figueira da Foz

Tremi o queixo, depois de sair dos lavabos municipais da Figueira da Foz, de me olhar, demoradamente, no espelho e de me pentear. Com a toalha, um livro de J. D. Salinger, o creme, um jornal diário, os pedúnculos dos morangos, os caroços das nectarinas e uma garrafa de água, caminho, de fresco, de camisola preta de manga curta, calção azul e com as baianas a criarem-me foles nos pés, pela avenida do Brasil, evitando as sereias, pétreas e concupiscentes, espalmadas na calçada, perdendo-me no silêncio sigiloso dos patos, prostrados no lago, glauco e artificial, do areal, nos braços ébrios das palmeiras às revoadas de vento e no tropel, no ir e vir, demoníaco. Vou tamborilando os dedos no parapeito da parede da marginal, ainda com o rosto a arder do sol que apanhei durante o fim da manhã e a tarde. A marginal é longa e adumbrada aqui e ali por choupos. Antes de visitar a feira do livro, nos fundos do porto, por detrás dos guinchos das gaivotas e dos escolhos negros, compro um gelado, desço uma escada de madeira e entro numa barraca com um toldo de lona. Com a temperatura ainda altíssima, rodopio, entre os livros expostos nas bancas, gotas caem-me dos cabelos pela face e esparramam-se no chão de terra batida. Abro e fecho livros. Hesito nos livros de Nietzsche, comparo preços e acabo por levar Beloved de Toni Morrison por apenas dois euros. Pergunto a hora à senhora da caixa, uma mulher roliça com sardas nas faces, dentes grandes, nariz de narinas bem abertas, como se estivessem a inspirar o ar todo da barraca enquanto arfo e suo, cabelos castanhos, soltos e espigados, e voz aveludada de senhora ínclita, munificente: – Olhe, são seis e meia. e, como se eu não ouvisse bem: – Falta meia hora para as sete. Tresandando a suor, volto a subir a escada e lajeio o estuário do rio: as asas refulgentes e os barcos ancorados em limos, a tinta estalada e os mastros, as velas, brancas e azuis, no céu etéreo, os cabeços ferruginosos, os pescadores arriscando os ossos, pescando por detrás dos escolhos onde o mar bate, veementemente e ensurdecedor, e os gritos irascíveis de advertência e, concomitantemente, de ameaça entre marujos. Sigo as águas, cada vez mais intemeratas, até ver uma ponte parda com pilares, descomunais e vermelhos, cortar o azul do céu. O pai vai comigo e diz-me a sorrir, com a boina basca pendente na mão endurecida, a perna direita tensa e a esquerda tenuemente dobrada, que isto é tudo maravilhoso, que ainda virá mais uma vez este ano. Eu oiço-o na corrente impercetível e um espasmo corre-me o corpo todo.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

FREI BENTO DOMINGUES


Novo texto de Eugénio Lisboa:

Frei Bento Domingues é uma figura rara: misto improvável de bonomia, grande cultura, inteligência acutilante, límpida intrepidez e aliciante conversa, mesmo para quem não bebe nas mesmas fontes de religião e fé. Porque não preciso para nada de acreditar que Jesus Cristo ressuscitou ao terceiro dia, para me alimentar da conversa culta e de alcance universal, que Frei Bento Domingues nos serve, aos domingos, no Público. A sua conversa é rica e sedutora e tem o encanto adicional daquele “franc parler” que Stendhal tanto prezava, mas não é exibicionista: a sua coragem é limpa e não afrontosa, o seu saber roça quase sempre a sua asa pela sabedoria do mais alto quilate. 

Frei Bento Domingues é um católico cuja serventia vai muito para além de uma clientela católica. É um católico que nunca se deixou ficar refém de nenhum poder, nem mesmo do poder da Igreja que professa. Espírito luminoso, de uma bondade alegre e destemida, ele não teme o exame nem os resultados deste. 

Dizia G. K. Chesterton que quem acende uma luz é o primeiro a beneficiar dela. Ao longo da sua vida de discreto mas grande estudioso, Frei Bento Domingues tem acendido muitas luzes.

Há já muitos anos, tive o privilégio de estar com ele, por mais de uma vez, em mesas redondas: o cristão e o ateu. Demo-nos muito bem. Fiquei a tê-lo como amigo, mesmo que nunca mais nos tivéssemos visto. Há amigos assim: considero Montaigne meu amigo e nunca nos vimos e nem sequer vivemos no mesmo século. 

A luz que a candeia deste frade emite dá para todos, não apenas para os residentes de uma paróquia de reduzida dimensão. É a luz universal dos sábios e dos bons. 

 Eugénio Lisboa

terça-feira, 3 de maio de 2022

GEOLOGIA E GEOGRAFIA NA TOPONÍMIA DE PORTUGAL


 

MEU PREFÁCIO AO NOVO LIVRO DE GALOPIM DE CARVALHO:

 

Já um dia chamei ao Professor António Galopim de Carvalho o «Mestre das Pedras e das Palavras», dado o seu enciclopédico conhecimento de tudo o que diz respeito a rochas e minerais e a sua comprovada habilidade do uso das palavras para transmitir o seu conhecimento. Mas, mais apropriadamente e de forma mais sumária, quero agora chamá-lo «Mestre da Terra», pois a Terra não tem apenas pedras, tem os resultados da desagregação das pedras pela prolongada força erosiva da água e dos ventos e tem, evidentemente, água – aliás a maior parte da sua superfície é coberto por água. Galopim de Carvalho conhece, como poucos, a Terra que pisamos, que é o resultado de um longuíssimo processo histórico. Para um geólogo o tempo mede-se em milhões de anos ou mesmo em milhares de milhões de anos, em nítido contraste com o nosso tempo histórico, que se estende apenas por milhares de anos. Assim, as palavras que criámos para designar os lugares da Terra não poderiam deixar de estar marcados pelos resultados das transformações que moldaram todas as paisagens. A história da Terra, estudada pelas Ciências da Terra, marca significativamente o nome das terras.

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Este livro  – como todos os outros que o Mestre nos tem generosamente dado – é feito de palavras que têm a ver com a Terra. Em Geologia e Geografia na Toponímia de Portugal estão reunidos, por ordem alfabética, nomes de terras portuguesas que, de uma maneira ou de outra, se relacionam  com o local particular da Terra onde se situam: ora são «bairros», porque têm argila, ora são «gândaras», por terem areias, ora são «montes», por serem elevados, ora são «vales», por estarem em depressões, ora são «pauis», por terem pântanos, ora são «penas», «penhas» ou «peras» (ou ainda «fragas», «rochas» ou «seixos») por terem pedras de vários feitios e tamanhos, ora são «portelas», por oferecerem passagem entre os montes. Nomes relacionados com a água também há uma enxurrada deles:  as «fontes», as «fozes», as «lagoas», as «pontas», as «rias», as  «ribeiras», etc. É toda uma multidão de topónimos portugueses que aqui está cuidadosamente catalogada pela mão do Mestre, com a indicação em numerosos casos da etimologia,  a mor das vezes do latim, mas por vezes do árabe.

 

Este livro não é apenas uma fonte documental, digna de figurar na colecção dos livros à mão de semear de um erudito ou simples curioso, por a sua consulta ser útil quando se lê ou escreve. É também uma valiosa contribuição para a cultura nacional, tratando de juntar letras e ciências, que teimam amiúde em aparecer separadas ou mesmo desavindas. E é ainda uma pedrada nas águas paradas do quotidiano das nossas vidas, por vezes demais  nos esquecermos que pertencemos à Terra, que somos, como dizia Camões, um «bicho da terra tão pequeno». Bicho da terra? Sim, e bicho da Terra!

 

Aprendi muito ao folhear este livro. Às vezes coisas que são óbvias, mas nas quais nunca tinha reparado, como, por exemplo, o facto de Belmonte, a terra de Pedro Álvares Cabral na Beira Alta, significar, como não podia deixar de ser, «belo monte». É tão óbvio como «Monsanto» significar «monte santo». Mas aprendi o mais das vezes coisas menos evidentes: por exemplo, que Cascais vem das cascas de bivalves que se apanham nas areias da praia ou que Algés vem do gesso que encontra numa mina local explorada em tempos ancestrais ou ainda, para não sair das cercanias de Lisboa, que Odivelas significa «rio escuro».  Os leitores poderão encontrar aqui o significado do nome da terra onde nasceram ou onde vivem.

 

Só podemos estar agradecidos ao Mestre por ele ter sedimentado neste livro uma parte muito interessante do seu vasto conhecimento da Terra, feito não só de leituras, mas de longa experiência com os pés bem assentes na terra e os olhos bem abertos. Bem haja!

 

Carlos Fiolhais

Coimbra, 14 de Fevereiro de 2022

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...