Minha contribuição para o livro «1001 Vozes pela Sustentabilidae» (Oficina do Livro/ISCTE):
A Humanidade está confrontada com um dos maiores
desafios da sua história. Graças à acumulação de inúmeros trabalhos
científicos, compilados e analisados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental
para as Alterações Climáticas da Organização das Nações Unidas - ONU, não
restam hoje dúvidas de que:
1) O nosso planeta está a aquecer. A temperatura média à
sua superfície é de 1,2 graus Celsius (ºC) acima do nível pré-industrial.
2) Esse aumento deve-se à acção humana, designadamente à
emissão maciça dos gases de efeito estufa, dos quais os mais importantes são o
dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso.
Os registos são
seguros e a física das alterações climáticas está bem estabelecida: o japonês
Syukuro Manabe e o alemão Klaus Hasselmann, autores de modelos computacionais suficientemente
realistas para sustentar as conclusões atrás formuladas, foram justamente
premiados com o Nobel da Física de 2021.
Os chamados
negacionistas das alterações climáticas, aos quais de vez em quando os média continuam
a dar voz, ignoram tanto os dados, que estão à disposição de todos, como o
método científico, que infelizmente só uma minoria compreende. O consenso na
comunidade científica é, nesta altura, bastante sólido, apesar de haver uma ou
outra «ovelha tresmalhada». E esse consenso tem sido transmitido à sociedade,
apesar de haver, fora da ciência, quem persista quer em rejeitar a ciência quer
em invocar a ciência em defesa das suas desrazoáveis posições. Nesta como em
tantas outras questões da nossa vida, há interesses instalados que fazem tudo o
que podem para se manterem. Na comunidade científica e na larga faixa da
população que nela confia, a questão não é, neste momento, nem a realidade das
alterações climáticas nem a sua origem, mas apenas as melhores medidas a tomar
e o grau de otimismo ou pessimismo que se pode ter a respeito da sua boa e
rápida execução.
Estamos ainda a tempo
impedir o que pode ser uma catástrofe: se a temperatura do planeta subir 3 ºC acima do referido nível, prevê-se que haja uma
razia de cerca de 70 por cento da actual biodiversidade. Muito provavelmente,
nesse cenário a espécie humana não perecerá, dada a sua enorme capacidade de adaptação,
mas teria de viver de um modo muito diferente de hoje, já que estamos
absolutamente dependentes do nosso meio ambiente, em particular dos seres vivos
que partilham esse meio connosco.
No Acordo de Paris,
assinado em 2015, tinha ficado estabelecido que o acréscimo da temperatura média
do planeta não deveria em caso algum subir acima do limiar de 2 ºC, não indo
desejavelmente além de 1,5 ºC acima do nível pré-industrial. Ora, actualmente
esse acréscimo de temperatura é 1,2 ºC e, segundo o relatório divulgado em
Agosto passado pelo grupo de Ciências Físicas do IPCC, que servirá de base ao
próximo relatório deste organismo, o sexto, a sair em 2022, o objectivo de 1,5
ºC encontra-se seriamente comprometido.
Sabendo o que
sabemos, porque é os países não reduzem as suas emissões de gases de efeito
estufa, em particular as de dióxido de carbono? Há tentativas mais ou menos
generalizadas para abrandar essas emissões, caminhando em direção ao chamado «net
zero» de dióxido de carbono (situação em que as emissões para a atmosfera compensam
as absorções). Mas, no conjunto do planeta, essas emissões continuam a subir,
sendo difícil prever quando começará a imprescindível descida. Esse pico
depende de medidas que têm necessariamente de ser tomadas à escala global.
Vimos, em 2021, na COP26, realizada em Glasgow, as grandes dificuldades de
entendimento entre os vários países. O acordo foi mínimo, embora tivesse sido
positiva a referência explícita à redução do uso de carvão, um combustível
fóssil na base de boa parte do dióxido de carbono libertado, e a lembrança de
ajudas financeiras aos países menos desenvolvidos. Desenvolvimento significa consumo
de energia. Com efeito, o nosso bem estar depende do funcionamento de centrais
de energia, da disponibilidade de combustíveis para veículos de vários tipos e da
prática de processos agrícolas e industriais de larga escala: todas essas
actividades implicam emissões de gases de efeito de estufa. Os países menos
desenvolvidos aspiram naturalmente a desenvolver-se, como outros já fizeram, e,
por isso, têm protelado os seus prazos de net zero. Por seu lado, os
países mais desenvolvidas já em Paris tinham prometido aos outros ajudas, que
ainda não concretizaram.
Apesar de todos os avanços
com a disponibilização de energias alternativas, veículos «amigos» do ambiente
e de processo agrícolas industriais sustentáveis, não há que ter ilusões: ainda
não dispomos de meios que nos permitam substituir completamente os processos
tradicionais que têm provocado o aquecimento global. Mas é lícita a confiança no
aprofundamento de um caminho comum no sentido da mitigação das alterações
climáticas, um caminho que poderá ser ajudado por soluções inovadoras que
entretanto surjam. A necessidade sempre aguçou o engenho.
Por muitas
iniciativas individuais, locais ou regionais que possam ser tomadas – e elas são
e serão sempre louváveis – medidas à escola global afiguram-se imperiosas. Por
muito difícil que seja, é preciso celebrar um acordo como o de Paris, mas de
conteúdo mais pormenorizado e de execução mais monitorizada. É preciso que a
Humanidade, composta por mais de sete mil milhões de indivíduos divididos em
cerca de 200 países, actue de uma forma mais concertada e eficaz. As dificuldades
que a ONU enfrenta são o natural reflexo da fragmentação política do mundo. Será
preciso, contrariando todas as divergências regionais e locais, unirmo-nos para
responder a um desafio que diz afinal respeito a todos. Como não há outro
planeta para onde ir no futuro previsível, temos de cuidar daquilo que o papa Francisco
chamou «casa comum». A ciência fornece conhecimentos, a tecnologia
instrumentos, mas o governo da «casa comum» é um assunto de política e não de
ciência nem de tecnologia.
O problema das
alterações climáticas é mais grave em Portugal em comparação com outros países
europeus, por nos situarmos no Sul da Europa, uma região muito vulnerável a
períodos de seca (que estão associados a maior risco de incêndios florestais),
e por possuirmos uma extensa zona costeira, exposta a tempestades e sujeita ao
aumento dos nível das águas do mar. Se é certo que temos algumas condições
naturais para substituir energias convencionais por energias alternativas (hídricas,
eólicas e solares), não é menos verdade que só demos alguns passos num longo
caminho. Os problemas são múltiplos e complexos. De resto, não dependemos só de
nós: os países ou se salvam em conjunto ou pura e simplesmente não se salvam,
pois o sistema climático não conhece fronteiras.
O sector da ciência,
tecnologia e ensino superior, ao qual estou mais ligado, tem dado valiosos
contributos para o reconhecimento e resolução do problema das alterações
climáticas, mobilizando-se tanto para fazer diagnósticos como para propor soluções.
Esse sector deve continuar a fazer o que faz melhor, isto é, deve continuar a
fazer ciência e tecnologia, transmitindo-a não só às gerações mais novas, mas
também a todos os cidadãos, fazendo com que o conhecimento seja apropriado pela
sociedade em geral. Mais do que medidas voluntaristas – como deixar de oferecer
carne nas cantinas – o mais importante será conceber e concretizar políticas
científicas em cada instituição que levem em conta as alterações climáticas,
dando especial atenção ao alargamento da cultura científica. Tão importante
como fazer ciência é transmiti-la a uma sociedade que depende criticamente dela,
embora nem todos tenham consciência disso.
As instituições
portuguesas podem, claramente, fazer mais. O Ministério da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior, que tem a tutela das unidades de investigação e das escolas
de ensino superior, tem andado bastante alheado do problema, deixando-o principalmente
entregue a dois outros Ministérios, o do Ambiente e Acção Climática e o da Economia
e Transição Digital. Os governos têm enchido a boca de ciência e tecnologia,
mas, de facto, não têm feito muito por elas. Basta reparar na posição baixa de
Portugal no ranking das nações europeias no que respeita ao investimento
em ciência e tecnologia: segundo os números mais recentes, Portugal investe apenas
1,6 por cento do PIB, ao passo que a União Europeia investe em média 2,3 por
cento. Há em Portugal um discurso oficial, oriundo da União Europeia, que mantém
a questão climática na agenda pública, mas não há o correspondente investimento
na ciência e tecnologia. O que é preciso fazer? Investir mais em ciência e tecnologia, usando para
isso os fundos comunitários que estão à nossa disposição, e definir uma
política nacional de ciência e tecnologia que contemple as alterações
climáticas como uma área prioritária. Esse investimento tem de ser público, mas
tem também de ser privado, pois a contribuição em investigação e
desenvolvimento do nosso sector empresarial ainda deixa a desejar no cotejo com
o quadro europeu.
Concluo com uma nota
optimista, tentando contrariar algum alarmismo excessivo que por vezes se ouve.
Os cientistas tendem a ser optimistas porque sabem que o conhecimento se
acumula e que surge amiúde conhecimento disruptivo com consequências sociais de
grande alcance (é isso precisamente o que significa «inovação»). Como morei na Hölderlinstrasse
em Frankfurt am Main, na Alemanha, quando fiz o doutoramento em Física no
início dos anos 1980, prefiro dar voz ao poeta romântico alemão, Friedrich Hölderlin,
que disse: «Onde cresce o perigo surge também a salvação». Esse é precisamente
o título de um livro do astrofísico e ecologista franco-canadense Hubert Reeves
(Gradiva, 2020), que alerta para a falta de «saúde» da Terra. Temos a obrigação
de ser fiéis ao nome da nossa espécie, homo sapiens. Não se entenderia
se não usássemos a nossa inteligência em nossa defesa… O mundo está um sítio
perigoso? Sim, mas se formos sábios, poderemos salvá-lo, salvando-nos.
Carlos Fiolhais (n. 1956) licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra, UC (1978) e
doutorou-se em Física Teórica na Universidade Goethe, Frankfurt (1982). É
professor catedrático aposentado de Física da UC. É autor de mais de 60 livros
pedagógicos e de divulgação científica e de centenas de artigos científicos,
pedagógicos e de divulgação. Foi director da Biblioteca Geral da UC e
Coordenador da Área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Dirige o Rómulo - Centro Ciência Viva da UC e a colecção Ciência Aberta da
Gradiva. Ganhou, entre outros, os prémios: José Mariano Gago da SPA (2018),
Ciência Viva-Montepio (2017), o Globo de Ouro de Mérito e Excelência em Ciência
da SIC (2005) e a Ordem do Infante D. Henrique (2005).
2 comentários:
Cito o ilustre cientista : "Os chamados negacionistas das alterações climáticas, aos quais de vez em quando os média continuam a dar voz".
É pena que seja só de vez em quando, pois o método científico não se exerce através de intervenções ocasionalmente permitidas a quem discorda de teses politicamente correctas...
Jorge Pacheco de Oliveira
Caro Jorge Oliveira,
Este Fiolhais não é cientista coisa nenhuma, quando muito ele é "cientista" , daquela ciência que se tornou religião, com dogmas e tudo. Agora até o dogma escatológico foi adoptado. Ou fazes o que os sumos sacerdotes te dizem para fazer ou é o fim do mundo
Rui Silva
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