quarta-feira, 11 de maio de 2022

O CLIMA E O HOMO SAPIENS

 Minha contribuição para o livro «1001 Vozes pela Sustentabilidae» (Oficina do Livro/ISCTE):

A Humanidade está confrontada com um dos maiores desafios da sua história. Graças à acumulação de inúmeros trabalhos científicos, compilados e analisados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da Organização das Nações Unidas - ONU, não restam hoje dúvidas de que:

1)      O nosso planeta está a aquecer. A temperatura média à sua superfície é de 1,2 graus Celsius (ºC) acima do nível pré-industrial.

2)      Esse aumento deve-se à acção humana, designadamente à emissão maciça dos gases de efeito estufa, dos quais os mais importantes são o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso.

Os registos são seguros e a física das alterações climáticas está bem estabelecida: o japonês Syukuro Manabe e o alemão Klaus Hasselmann, autores de modelos computacionais suficientemente realistas para sustentar as conclusões atrás formuladas, foram justamente premiados com o Nobel da Física de 2021.

Os chamados negacionistas das alterações climáticas, aos quais de vez em quando os média continuam a dar voz, ignoram tanto os dados, que estão à disposição de todos, como o método científico, que infelizmente só uma minoria compreende. O consenso na comunidade científica é, nesta altura, bastante sólido, apesar de haver uma ou outra «ovelha tresmalhada». E esse consenso tem sido transmitido à sociedade, apesar de haver, fora da ciência, quem persista quer em rejeitar a ciência quer em invocar a ciência em defesa das suas desrazoáveis posições. Nesta como em tantas outras questões da nossa vida, há interesses instalados que fazem tudo o que podem para se manterem. Na comunidade científica e na larga faixa da população que nela confia, a questão não é, neste momento, nem a realidade das alterações climáticas nem a sua origem, mas apenas as melhores medidas a tomar e o grau de otimismo ou pessimismo que se pode ter a respeito da sua boa e rápida execução.

Estamos ainda a tempo impedir o que pode ser uma catástrofe: se a temperatura do planeta subir 3 ºC  acima do referido nível, prevê-se que haja uma razia de cerca de 70 por cento da actual biodiversidade. Muito provavelmente, nesse cenário a espécie humana não perecerá, dada a sua enorme capacidade de adaptação, mas teria de viver de um modo muito diferente de hoje, já que estamos absolutamente dependentes do nosso meio ambiente, em particular dos seres vivos que partilham esse meio connosco.

No Acordo de Paris, assinado em 2015, tinha ficado estabelecido que o acréscimo da temperatura média do planeta não deveria em caso algum subir acima do limiar de 2 ºC, não indo desejavelmente além de 1,5 ºC acima do nível pré-industrial. Ora, actualmente esse acréscimo de temperatura é 1,2 ºC e, segundo o relatório divulgado em Agosto passado pelo grupo de Ciências Físicas do IPCC, que servirá de base ao próximo relatório deste organismo, o sexto, a sair em 2022, o objectivo de 1,5 ºC encontra-se seriamente comprometido.

Sabendo o que sabemos, porque é os países não reduzem as suas emissões de gases de efeito estufa, em particular as de dióxido de carbono? Há tentativas mais ou menos generalizadas para abrandar essas emissões, caminhando em direção ao chamado «net zero» de dióxido de carbono (situação em que as emissões para a atmosfera compensam as absorções). Mas, no conjunto do planeta, essas emissões continuam a subir, sendo difícil prever quando começará a imprescindível descida. Esse pico depende de medidas que têm necessariamente de ser tomadas à escala global. Vimos, em 2021, na COP26, realizada em Glasgow, as grandes dificuldades de entendimento entre os vários países. O acordo foi mínimo, embora tivesse sido positiva a referência explícita à redução do uso de carvão, um combustível fóssil na base de boa parte do dióxido de carbono libertado, e a lembrança de ajudas financeiras aos países menos desenvolvidos. Desenvolvimento significa consumo de energia. Com efeito, o nosso bem estar depende do funcionamento de centrais de energia, da disponibilidade de combustíveis para veículos de vários tipos e da prática de processos agrícolas e industriais de larga escala: todas essas actividades implicam emissões de gases de efeito de estufa. Os países menos desenvolvidos aspiram naturalmente a desenvolver-se, como outros já fizeram, e, por isso, têm protelado os seus prazos de net zero. Por seu lado, os países mais desenvolvidas já em Paris tinham prometido aos outros ajudas, que ainda não concretizaram.

Apesar de todos os avanços com a disponibilização de energias alternativas, veículos «amigos» do ambiente e de processo agrícolas industriais sustentáveis, não há que ter ilusões: ainda não dispomos de meios que nos permitam substituir completamente os processos tradicionais que têm provocado o aquecimento global. Mas é lícita a confiança no aprofundamento de um caminho comum no sentido da mitigação das alterações climáticas, um caminho que poderá ser ajudado por soluções inovadoras que entretanto surjam. A necessidade sempre aguçou o engenho.

Por muitas iniciativas individuais, locais ou regionais que possam ser tomadas – e elas são e serão sempre louváveis – medidas à escola global afiguram-se imperiosas. Por muito difícil que seja, é preciso celebrar um acordo como o de Paris, mas de conteúdo mais pormenorizado e de execução mais monitorizada. É preciso que a Humanidade, composta por mais de sete mil milhões de indivíduos divididos em cerca de 200 países, actue de uma forma mais concertada e eficaz. As dificuldades que a ONU enfrenta são o natural reflexo da fragmentação política do mundo. Será preciso, contrariando todas as divergências regionais e locais, unirmo-nos para responder a um desafio que diz afinal respeito a todos. Como não há outro planeta para onde ir no futuro previsível, temos de cuidar daquilo que o papa Francisco chamou «casa comum». A ciência fornece conhecimentos, a tecnologia instrumentos, mas o governo da «casa comum» é um assunto de política e não de ciência nem de tecnologia.

O problema das alterações climáticas é mais grave em Portugal em comparação com outros países europeus, por nos situarmos no Sul da Europa, uma região muito vulnerável a períodos de seca (que estão associados a maior risco de incêndios florestais), e por possuirmos uma extensa zona costeira, exposta a tempestades e sujeita ao aumento dos nível das águas do mar. Se é certo que temos algumas condições naturais para substituir energias convencionais por energias alternativas (hídricas, eólicas e solares), não é menos verdade que só demos alguns passos num longo caminho. Os problemas são múltiplos e complexos. De resto, não dependemos só de nós: os países ou se salvam em conjunto ou pura e simplesmente não se salvam, pois o sistema climático não conhece fronteiras.

O sector da ciência, tecnologia e ensino superior, ao qual estou mais ligado, tem dado valiosos contributos para o reconhecimento e resolução do problema das alterações climáticas, mobilizando-se tanto para fazer diagnósticos como para propor soluções. Esse sector deve continuar a fazer o que faz melhor, isto é, deve continuar a fazer ciência e tecnologia, transmitindo-a não só às gerações mais novas, mas também a todos os cidadãos, fazendo com que o conhecimento seja apropriado pela sociedade em geral. Mais do que medidas voluntaristas – como deixar de oferecer carne nas cantinas – o mais importante será conceber e concretizar políticas científicas em cada instituição que levem em conta as alterações climáticas, dando especial atenção ao alargamento da cultura científica. Tão importante como fazer ciência é transmiti-la a uma sociedade que depende criticamente dela, embora nem todos tenham consciência disso.

As instituições portuguesas podem, claramente, fazer mais. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que tem a tutela das unidades de investigação e das escolas de ensino superior, tem andado bastante alheado do problema, deixando-o principalmente entregue a dois outros Ministérios, o do Ambiente e Acção Climática e o da Economia e Transição Digital. Os governos têm enchido a boca de ciência e tecnologia, mas, de facto, não têm feito muito por elas. Basta reparar na posição baixa de Portugal no ranking das nações europeias no que respeita ao investimento em ciência e tecnologia: segundo os números mais recentes, Portugal investe apenas 1,6 por cento do PIB, ao passo que a União Europeia investe em média 2,3 por cento. Há em Portugal um discurso oficial, oriundo da União Europeia, que mantém a questão climática na agenda pública, mas não há o correspondente investimento na ciência e tecnologia. O que é preciso fazer?  Investir mais em ciência e tecnologia, usando para isso os fundos comunitários que estão à nossa disposição, e definir uma política nacional de ciência e tecnologia que contemple as alterações climáticas como uma área prioritária. Esse investimento tem de ser público, mas tem também de ser privado, pois a contribuição em investigação e desenvolvimento do nosso sector empresarial ainda deixa a desejar no cotejo com o quadro europeu.

Concluo com uma nota optimista, tentando contrariar algum alarmismo excessivo que por vezes se ouve. Os cientistas tendem a ser optimistas porque sabem que o conhecimento se acumula e que surge amiúde conhecimento disruptivo com consequências sociais de grande alcance (é isso precisamente o que significa «inovação»). Como morei na Hölderlinstrasse em Frankfurt am Main, na Alemanha, quando fiz o doutoramento em Física no início dos anos 1980, prefiro dar voz ao poeta romântico alemão, Friedrich Hölderlin, que disse: «Onde cresce o perigo surge também a salvação». Esse é precisamente o título de um livro do astrofísico e ecologista franco-canadense Hubert Reeves (Gradiva, 2020), que alerta para a falta de «saúde» da Terra. Temos a obrigação de ser fiéis ao nome da nossa espécie, homo sapiens. Não se entenderia se não usássemos a nossa inteligência em nossa defesa… O mundo está um sítio perigoso? Sim, mas se formos sábios, poderemos salvá-lo, salvando-nos.

 

Carlos Fiolhais

Carlos Fiolhais (n. 1956) licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra, UC (1978) e doutorou-se em Física Teórica na Universidade Goethe, Frankfurt (1982). É professor catedrático aposentado de Física da UC. É autor de mais de 60 livros pedagógicos e de divulgação científica e de centenas de artigos científicos, pedagógicos e de divulgação. Foi director da Biblioteca Geral da UC e Coordenador da Área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Dirige o Rómulo - Centro Ciência Viva da UC e a colecção Ciência Aberta da Gradiva. Ganhou, entre outros, os prémios: José Mariano Gago da SPA (2018), Ciência Viva-Montepio (2017), o Globo de Ouro de Mérito e Excelência em Ciência da SIC (2005) e a Ordem do Infante D. Henrique (2005).

2 comentários:

Jorge Oliveira disse...

Cito o ilustre cientista : "Os chamados negacionistas das alterações climáticas, aos quais de vez em quando os média continuam a dar voz".

É pena que seja só de vez em quando, pois o método científico não se exerce através de intervenções ocasionalmente permitidas a quem discorda de teses politicamente correctas...

Jorge Pacheco de Oliveira

Anónimo disse...

Caro Jorge Oliveira,
Este Fiolhais não é cientista coisa nenhuma, quando muito ele é "cientista" , daquela ciência que se tornou religião, com dogmas e tudo. Agora até o dogma escatológico foi adoptado. Ou fazes o que os sumos sacerdotes te dizem para fazer ou é o fim do mundo

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