sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Prima Bette de Honoré de Balzac

[A Prima Bette é o último romance de Honoré de Balzac. Aproveitando que tinha começado a ler uma versão muito elegante do livro publicada recentemente que estava na Casa da Cultura na pilha dos "livros que foram proibidos" e que eu próprio estava de quarentena dei um grande avanço à obra. Devo dizer que esta é de domínio público e pode ser encontrada como audiobook gratuito aqui (ouvi uma parte na versão inglesa). e refiro mais uma vez que em Coimbra temos duas bibliotecas com depósito legal, ou seja tudo o que é publicado em Portugal vai lá parar no espaço de um ou dois anos.]

Trata-se de uma história de uma grande complexidade, cheia de voltas e reviravoltas, personagens fascinantes e profundas e frases fantásticas sobre a natureza humana e o mundo. Não vou aqui fazer um resumo da história nem fazer uma análise desta sociedade que já não existe. Leiam o livro que vale a pena. Mas deixo aqui algumas notas: há um momento em que é dito “o amor na minha idade custa 30 mil francos” ou noutro em que se filosofa sobre uma “jovem bonita casar sem dote assustar os maridos”. Há bastantes passagens racistas, antissemitas e misoginas, para não falar das que seriam consideradas imorais ainda hoje ou ilegais. Mas é preciso lembrar que o livro foi escrito em 1846. Era uma altura em que havia muito poucos trabalhos decentes para mulheres, mas um artista já era um “príncipe não coroado”. Um mundo muito mais inseguro e cruel, em que a prostituição se podia iniciar aos quinze anos, mas havia, apesar de tudo, já alguma liberdade feminina e da população em geral. Curiosamente, uma das personagens femininas tem como emprego bordar a ouro em ornamentos de uniformes. Esse é outro aspeto interessante do livro. Na sociedade pós-napoleónica, toda uma economia social baseada em monges, freiras e padres é substituída por uma sociedade de funcionários e soldados. A natureza humana não muda muito apesar de tudo, mas o sociedade sim. Balzac, numa das suas muitas frases fantásticas diz, a propósito da bondade e do perdão, que Napoleão foi coroado imperador por metralhar o povo, mesmo ao lado do sítio onde Luís XVI perdeu a cabeça por não ter querido fazer algo parecido. Claro que as frases nunca são absolutas, há muitos contextos, mas é interessante esta reflexão. Proponho-me aqui referir alguma da ciência, em particular da química, presente (ou não) no livro.   

Nas muitas reviravoltas da história, há um momento em que uma personagem tem um marido, dois amantes mais velhos, rivais, um amante mais novo que acabou de chegar do Brasil e um amante ocasional. Todos são informados que são pais. E em passagens muito cómicas estão todos juntos num jantar. O marido (que sabia não ser o pai) refere em privado que são os cinco pais (padres) da igreja. Hoje em dia esse problema seria facilmente resolvido fazendo uma análise de paternidade. Parece haver já algum tipo de contraceção pois a ideia da gravidez desaparece mais tarde. De qualquer forma, a pílula que permitirá uma muito maior liberdade feminina só foi inventada mais de um século depois nos anos 1950 e só começou a ser comercializada nos anos 1960. De forma paralela, o preservativo como o conhecemos hoje só apareceu no início do século XX. Bem, e os estes de paternidade fiáveis só surgem com a descoberta do DNA nos anos 1950 e só se tornam comuns muito mais tarde.   

Outra coisa interessante, é a doença de que são acometidas duas das personagens. É dito que é uma doença desaparecida que existia na Idade Média, que tem cura em zonas mais quentes e nos negros e americanos por terem peles diferentes, sendo transmitida pelo brasileiro. Esta doença faz pensar na peste negra e na sífilis, mas estas não tinham cura também nos trópicos. Não é com certeza sífilis que é de evolução muito mais lenta e raramente mortal, embora muito dos sintomas descritos sejam da fase final da doença. Nesta altura não era ainda conhecida a teoria dos micróbios nem havia antibióticos que só irão aparecer nos anos 1940. Mas existe essa espécie de religião perante a ciência. “Um verdadeiro médico apaixona-se pela ciência” diz um médico que procura ajuda junto do seu amigo, o famoso químico, professor Duval. É curioso que quase não haja referência à sífilis no livro, mas há um momento em que uma das personagens refere de forma metafórica que alguém entre dois metais escolheu o mercúrio (o outro deveria ser o ouro ou a prata).

Há um momento em que é referido que uma das personagens pintou os cabelos louros com um líquido que lhes deu um tom cinzento (no original francês “cheveux cendrés”) pois não queria parecer loura como a mulher de outro. Mesmo as personagens femininas mais recatadas pintam os cabelos. 

Na versão portuguesa não se nota tanto, mas na inglesa são referidas muitas cores que evocam materiais (cor de limão, enxofre, laranja, ouro, cereja, cobre, chocolate, entre outras). Várias cartas e bilhetes são escritos a lápis. Nesta altura ainda não havia canetas de tinta permanente e os escritos a tinta precisavam de penas e aparos. O lápis era assim muito mais prático.

Há muitas referências às roupas e rendas caras. Estas eram complexas, difíceis de elaborar. Não havia tecidos sintéticos nem fios elásticos. Também a iluminação que usam (essencialmente velas e grupos de velas) é interessante. Parece que não se tinha popularizado ainda aqui o candeeiro de Argand, mas a luz elétrica está ainda muito longe de aparecer.

Em resumo, um livro pode levar-nos a enredos, ambientes e mundos passados. Permite-nos refletir sobre a natureza humana e sobre o mundo, mas também sobre como ele era e como se modificou com a ciência.         

    

1 comentário:

Anónimo disse...

Ótimo post, obrigado pela sugestão, se vier a ler será pela personagem do Brasil.
Apetece comentar mais.. É isso, Balzac expõe bem a sociedade pós-napoleónica : a estranha sensação do aparecimento de Napoleão em plena rua (um homem poderoso; um semi-deus adotado depois pelos filósofos alemães), a descrição pública da extravagância dos interiores aristocráticos... Balzac também conhece saudosos do Antigo Regime e esse novo lugar de eleição seria o Brasil do Rei-Imperador; mais as referências portuguesas, como o perfume de encantamento, que consolidará o termo 'fetiche'..
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