Meu artigo no n.1 da revista ÁRVORE DAS VIRTUDES da Cooperativa Árvore do Porto:
O que é um génio? Uma pessoa com uma mente excepcional, que, graças a ela, consegue criar obras radicalmente inovadoras. Não sendo fácil distinguir o excepcional do normal, ninguém objectará que, na ciência, Galileu, Newton, Maxwell e Einstein são génios. Também ninguém objectará que, na literatura, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe o são. Ordenei-os, em cada área, por ordem cronológica de nascimento, por ser impossível construir uma escala de genialidade em cada área ou de âmbito universal. Não faltou quem tentasse realizar essa tarefa, baseado numa avaliação quantitativa da capacidade mental, mas todos esses ensaios são muito discutíveis e os seus resultados largamente insatisfatórios.
Falarei aqui das marcas qualitativas da genialidade, com foco na ciência, mas não esquecendo a arte. Procurarei explicitar características comuns que se podem encontrar nessas duas dimensões do espírito humano, contribuindo para aproximar as “duas culturas” cuja separação Charles Snow sublinhou.
Na Antiga Roma genius era um espírito que tutelava uma pessoa, uma família ou um lugar. Portanto, o génio começa por estar ligado à magia e ao mistério: manifestando-se no mundo, um génio vinha de fora dele. A palavra, que se relaciona com os verbos latinos gignere e generare deriva do radical indo-europeu ǵenh (gerar, nascer, procriar). A palavra “gene”, que designa a unidade física da hereditariedade, veio no início do séc. XX do alemão Gen, também com origem em ǵenh. Os indivíduos excepcionais que pareciam ter uma aura inata passaram, na modernidade, a ser conhecidos por génios. Eram pessoas com um talento extraordinário e não demiurgos por trás deles. Mas resultará o génio humano de uma herança ou de um trabalho?
A resposta que hoje a psicologia e as neurociências fornecem é que ele resulta da combinação dos dois factores, com predomínio do segundo: a pessoa tem, à partida, uma capacidade mental fora do comum, mas esta terá de ser desenvolvida na interacção com o ambiente. A capacidade de trabalho afigura-se essencial já que sem ela qualquer talento perece. Há decerto factores genéticos na construção da mente – a genética é acaso e necessidade – mas é preciso saber aproveitar as condições externas disponíveis num certo espaço e tempo –e aí volta a haver acaso e necessidade.
Vejamos, na ciência, o que um génio faz de genial. Galileu propôs o método científico que exercitou através da observação (o telescópio), da experiência (o plano inclinado) e da matemática (a lei da queda dos graves). Mas foi Newton quem ligou a física da terra e a física do céu, que para Galileu estavam disjuntas, com a lei da gravitação universal. Maxwell, por sua vez, uniu as leis da electricidade e do magnetismo, alcançando uma descrição unificada num conjunto de quatro equações. Apercebeu-se que da sua combinação resultava a existência de uma onda: era a luz, cuja natureza foi assim revelada. Einstein, por sua vez, ao procurar conciliar as leis do movimento de Galileu e Newton com as leis do electromagnetismo de Maxwell, teve de modificar as primeiras. Mas fez mais: explicou a lei da gravidade com base na deformação do espaço, que obriga a luz a curvar-se. A novidade inesperada foi: “A luz pesa.”
O trabalho destes génios ilustra bem o processo cumulativo na ciência. Conforme disse Newton: “Se consegui ver mais longe foi porque estava aos ombros de gigantes.” Na arte essa passagem de testemunho, existindo, não é tão evidente. Goethe leu Shakespeare, mas este não leu Dante nem Cervantes, seu contemporâneo (tal como Galileu). O mais notável é que todos os referidos génios científicos revelaram relações ocultas. Duas partes do mundo, que pareciam a priori diferentes, passaram a estar associadas: por exemplo, a maçã de Newton e a Lua eram atraídas pela Terra segundo uma mesma lei. A Natureza compraz-se em apresentar-se de múltiplas formas e feitios, mas algumas mentes obtiveram unificações simples e elegantes.
O paralelo entre arte e ciência é claro: nas duas, ligam-se coisas que pareciam estranhas uma à outra. Um cientista procura ligar coisas diversas e um artista, à sua maneira, faz o mesmo. Por exemplo, um escritor, ao criar uma metáfora está a associar dois conceitos que pareciam arredados. A Divina Comédia está recheada de metáforas e é toda ela uma metáfora sobre a vida. A frase “O mundo é um palco” em Como vos Aprouver associa sociedade e teatro de um modo lapidar. A luta contra os moinhos de vento no Dom Quixote é uma metáfora da loucura. O Fausto é uma denúncia metafórica dos riscos da ciência. Escreveu Jacob Bronowski, matemático e literato, num artigo da Scientific American (1958): “Um ser humano torna-se criativo, seja ele um artista ou um cientista, quando encontra uma nova unidade na variedade da natureza. Faz isso encontrando uma semelhança entre coisas que antes não eram pensadas como semelhantes, e isso dá-lhe um sentimento de enriquecimento e de compreensão. A mente criativa procura a semelhança inesperada.” Ele já tinha expresso essa ideia no seu ensaio Science and Human Values (1956): “Quando Coleridge tenta definir beleza, regressa sempre a um pensamento simples e profundo: a beleza é ‘unidade na diversidade’. A ciência não é mais do que a busca da unidade na variedade desordenada da Natureza – ou, mais exactamente, na diversidade da nossa própria experiência. A poesia, a pintura, as artes em geral, são o mesmo”.
Fala-se muito da beleza na arte, mas fala-se pouco dela na ciência. E, no entanto, a beleza está omnipresente no trabalho científico. O físico David Bohm, no seu livro On Creativity (1996), explicou: “Em ciência, vemos e sentimos a beleza de uma teoria apenas se esta for ordenada, coerente, harmoniosa com todas as partes a surgirem naturalmente de princípios simples e com todas as partes concertadas para formar uma estrutura total unificada. Mas estas propriedade são necessárias não só por causa da beleza de uma teoria, mas também da sua verdade… Para o cientista tanto o Universo como uma teoria que ele faz dele são belos no mesmo sentido em que uma obra de arte é bela – esta também deve ser um todo coerente.“
A identidade da verdade e beleza foi assinalada por John Keats num seu poema (“A beleza é a verdade, a verdade é a beleza”). Talvez ele conhecesse o lema latino Pulchritudo splendor veritatis (“A beleza é o esplendor da verdade”). De facto, é muitas vezes o brilho de belo que permite reconhecer o verdadeiro. A beleza, nesses casos, não é uma resposta arbitrária de um espectador, mas uma realidade que se impõe. O matemático Henri Poincaré enfatizou o princípio estético que move os cientistas em Le Valeur de la Science (1905): "O cientista não estuda a Natureza porque tal é útil. Estuda-a porque tem prazer nisso; e tem prazer nisso porque ela é bela."
Ao contrário do que normalmente se julga, a imaginação é um recurso indispensável tanto aos cientistas como aos artistas. Einstein louvou-a: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação dá a volta ao mundo." É usando a imaginação que os cientistas colocam hipóteses a respeito do mundo. E só os génios têm as grandes epifanias que alargam e aprimoram a nossa visão do mundo. Poder-se-á pensar que a imaginação científica, confinada como está pela adequação à realidade física, é bem mais limitada do que a imaginação artística, designadamente a literária. Porém, o nosso mundo tem desafiado e continua a desafiar a imaginação humana. A imaginação da Natureza é bem maior do que a nossa. No futuro, haverá decerto mais génios.
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