domingo, 18 de abril de 2021

"É o tango mais antigo do mundo": Um apontamento sobre a importância da memória no trabalho pedagógico


"Os jovens precisam do conhecimento que é adquirido 
sem o recurso único a rotinas de memorização."
Grupo de consultores do projecto OCDE, 2018 (aqui)

"Tudo isto, porque aprender melhor e com significado é crucial 
para termos jovens que exercem a sua cidadania de forma plena, 
alicerçada em conhecimento consolidado e não 
em vagas memórias de coisas que 'se deram' e não permaneceram". 
Secretário de Estado da Educação, 2018 (aqui). 

Há mais de um século que, mesmo sem recusarem liminarmente o papel da memória na aprendizagem, teóricos, educadores, políticos, órgãos de comunicação e sociedade em geral, têm vindo a menorizá-la, a desprezá-la, em favor da compreensão, da crítica e da criatividade. Isto como se a capacidade de reter e (re)organizar informação fosse contraproducente ou impedisse o desenvolvimento e a expressão dessas outras capacidades.

É assaz curioso notar que, depois dos anos sessenta, enquanto a memória era estudada por meios científicos modernos e, em virtude disso, declarada, como "aparelho de aprendizagem", o currículo escolar ocidental, oficial,   passava a negar-lhe, de forma muito alargada, o seu lugar no trabalho pedagógico. Esta dissensão foi crescendo, até ao presente: nunca soubemos tanto sobre essa ainda misteriosa capacidade, mas as reformas dos sistemas de ensino, talhadas segundo o modelo único da OCDE, replicam a ideia profundamente errada de que é possível, é desejável, conhecer sem que a memória seja colocada no centro desse trabalho.

Reproduzimos, com supressões e adaptações, um texto assinado por Emma Ferrand e publicado no Le Figaro - Étudiant do dia 11 deste mês, que contribui para desmistificar junto do público a névoa pedagógica em que a memória se encontra envolta, com prejuízo, claro está, da aprendizagem que os nossos alunos fazem (ou não fazem).

Maria Helena Damião e Isaltina Martins

"Considerada desactualizada pelos pedagogos contemporâneos, a aprendizagem que requer saber de cor volta a estar na moda. Os investigadores são claros: ao trabalharmos a memória, trabalharmos também a concentração e as habilidades organizacionais. 
Rosa rosa rosam, Rosae rosae rosa... É o tango mais antigo do mundo, aquele que as cabeças loiras trauteiam como uma canção de roda, ao aprenderem o seu latim”, cantava Jacques Brel que relembrava, com ferocidade, os seus tempos de colégio. Mas já vai longe o tempo em que os alunos recitavam as conjugações latinas e aprendiam a lista dos departamentos. 
"A aprendizagem pela memorização caiu em desuso a partir dos anos 60 e 70", explica Claude Lelièvre, historiador de educação e autor do livro L’école d’aujourd’hui à la lumière de l’histoire (éd. Odile Jacob). A partir daí, os alunos decoram alguns poemas, a tabuada e datas importantes. “Aos poucos, os franceses, sensíveis à modernidade, inclusive no que respeita à educação, vão abandonando o “saber de cor”, acrescenta. Hoje, apenas países como a China continuam a promover a memória. 
A importância da repetição 
Boas notícias, o “saber de cor" não está morto. Há sinais de um renovado interesse. Realizam-se, desde há vários anos (…) competições de eloquência organizadas pelas melhores universidades e escolas francesas. Exercícios em que a memória é muito solicitada (…). Desde 1991 há concursos de memória um pouco por todo o mundo.
Uma mudança na educação nacional [em muito devida ao trabalho de investigadores da psicologia cognitiva], em particular de Alain Lieury, que se dedicou ao assunto nos anos 90. No seu livro Memória e sucesso académico [Dunod, 1997] destaca um ponto essencial: fazer funcionar a memória com métodos comprovados é a chave do sucesso escolar. Em particular, reabilitou a repetição abandonada nos anos de 1970 em favor da "compreensão".
(…). Mais importante, os investigadores mostram que a memória faz funcionar outras partes do cérebro. Para Thomas Buttaci, neuropsicólogo, “trabalhando a memória, as crianças trabalham a concentração, as capacidades de organização e de planificação. “A poesia é benéfica para melhorar a expressão oral, o vocabulário e a autoconfiança, por exemplo”, explica. 
Para fixar, o cérebro precisa de estar “atento, de associar conhecimentos e de treino para os consolidar”, observa Sébastien Martinez, formador em estratégias de memorização e campeão de França da memória, em 2015. Para que o cérebro grave, também é necessário dar-lhe tempo, é preciso atender ao seu ritmo. “Mas os nossos professores hoje estão stressados com um programa que precisam de cumprir, pelo que os alunos não podem aprender adequadamente, acrescenta (…). 
Um ganho de tempo 
Ter boa memória é também vantajoso para o adulto. “Num engarrafamento, um taxista que saiba as estradas de cor é mais eficaz do que um que só use o GPS (…), explica Catherine Thomas-Anterion, neurologista. 
Para Sébastien Martinez, “recitar conhecimentos sem pensar é essencial. Há muitas informações que precisamos de usar de modo automático". 
Uma pedagogia ainda considerada reaccionária
Alguns professores, percebendo a importância do uso da memória, lamentam que tenha estado tanto tempo no purgatório. É o caso de Chantal, professora de Val-de-Marne que “tem pena que se tenha considerado que o conhecimento deveria vir da criança, deixando-a descobri-lo por si mesma. É uma perda de tempo. Cabe-nos a nós transmiti-lo” (…) “uma criança não consegue adivinhar as regras gramaticais enquanto realiza um exercício. É contraproducente (…). "
Os humanos foram concebidos para aprender
Não faz sentido pensar que “aprender de cor” é o reverso da compreensão. "Seria um disparate aprender apenas de cor. É preciso também compreender e reflectir (…)”, diz Catherine Thomas-Anterion. Mas a magia de decorar é que faz com a aprendizagem flua. “Os conhecimentos que já adquirimos constituem um terreno fértil para os próximos. Os humanos foram concebidos para aprender. E é excelente quando retiram daí prazer ”, conclui Sébastien Martinez.

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[1] https://greatsong.net/PAROLES-JACQUES-BREL,ROSA,102338641.html  

1 comentário:

Anónimo disse...

"O menino já vai à escola
Decora depressa e bem
Ele aprende a tornar-se um homem
E eu aprendo a ser mãe."

Ary dos Santos

A identidade dos indivíduos, e a dos povos, é feita de memórias.
No trabalho pedagógico, imaginem o que seria ensinar/ aprender História sem memorizar datas. Desconfio que nas Aprendizagens Essenciais já não devem constar as principais datas históricas anteriores ao 25 de abril de 1974. Para o perfil democrático do cidadão da escolaridade obrigatória de 18 anos, saber que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia nos anos de 1497 e 1498 é um conhecimento a evitar, pois revela pouca autonomia e baixo nível de criatividade do aprendente.
Eu sou da escola com memória:

"Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal"
Fernando Pessoa

"Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!"

Cesário Verde

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!"

Almeida Garrett.

Pedra filosofal

"Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."

António Gedeão

NOVA ATLÂNTIDA

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