sábado, 11 de março de 2017

OCEANOS versus MARES

À memória de Mário Ruivo, meu amigo e companheiro de adolescência.

Assim fomos abrindo aqueles mares
que geração alguma não abriu..."

(Luís de Camões)

Em linguagem corrente mar e oceano confundem-se muitas vezes, sendo estes dois termos usados quase sempre indiscriminadamente, numa ambiguidade que o rigor científico rejeita. Desde cedo, na escola, aprendendo geografia, interiorizámos que os oceanos são grandes e profundos e que os mares são mais pequenos, menos profundos, ladeando os continentes e, normalmente, sem limites que os separem daqueles.

O termo oceano evoca “Okeanós”, o deus do “grande rio que corre em torno da terra”, para lá das Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), tendo-nos chegado através do latim “oceanus”.
O termo mar radica no latim “mare”, a parte líquida do Mundo, em oposição a terra, a entidade sólida à superfície do planeta. Esta dualidade foi julgada existir no nosso satélite natural, cujas planuras basálticas, escuras, foram vistas como “maria” (mares, no plural), ao contrário das regiões montanhosas, mais claras e essencialmente constituídas por anortositos, designadas por “terræ” (terras, no plural).

De utilização erudita, traduzindo a ideia de oceano ou de mar, o termo grego “thalassa” (do nome da deusa grega do mar) encontra-se, por exemplo, na expressão talassoterapia, o tratamento de certas enfermidades através de banhos de mar. Pantalassa foi o nome dado ao oceano único que rodeava a Pangea no final do Paleozóico. Talassografia e Talassologia são sinónimos menos comuns de Oceanografia e Oceanologia, respectivamente.

Se alguns mares são bem definidos por estrangulamentos, como é o caso do Mediterrâneo (estrangulado pelo Estreito de Gibraltar e pelo canal de Suez), do Mar Negro (pelo Bósforo), do Mar Vermelho (pelo Bab-el–Mandeb) ou do Mar Báltico (pelo Skagerrak), outros são totalmente abertos ao largo, como são os mares do Norte, de Bering, das Caraíbas, da China, do Japão e outros.
Outras extensões marinhas poderiam, igualmente chamar-se mares, mas a tradição refere-as como golfos, alguns bem conhecidos, como o Golfo da Gasconha (ou da Biscaia), o Golfo do México, o Golfo Pérsico, o Golfo de Bengala.

O Mar Cáspio é hoje um lago, grande entre os maiores. À semelhança do Mediterrâneo, é o que resta do antigo oceano Tétis ou Mesogea, na sequência da colisão das Placas Africana e Eurasiática. Exceptuando este e o Aral, com a mesma origem e também ele um mar residual, todos os mares e oceanos da Terra estão ligados entre si numa única massa líquida a que chamamos Oceano Global, perfazendo cerca de 71% da superfície do planeta.

Na referida ambiguidade, também as expressões domínio marinho e domínio oceânico se confundem. No intuito de ultrapassar a indefinição dos termos “mar” e “oceano”, tanto no discurso vulgar como no erudito, têm surgido no glossário geológico expressões como mares epicontinentais ou mares marginais, aludindo aos mares pouco profundos, na periferia dos continentes. Com o mesmo propósito, o restante domínio marinho, o mais profundo e afastado dos continentes, passa a ser designado, não apenas por domínio oceânico, mas por domínio oceânico profundo, domínio onde se situam as bacias oceânicas profundas, duas expressões assim adjectivadas para fugir à citada ambiguidade.

Para os gregos, o Mediterrâneo era o mar onde navegavam, um mar rodeado de terra, no meio de terra, a que chamaram “Tethys”, o nome da deusa, esposa de “Okeanós”. O “grande rio” era o Oceano Atlântico, o único que conheciam. Esboça-se, já aqui, neste saber clássico, a diferença entre o mar, algo confinado à terra, e o oceano sem fim nem fundo, para lá de onde ela se acaba. Recorde-se que o nome Atlântico dado a este oceano pelos romanos, alude a Atlas, o nome da cadeia de montanhas do Norte de África, para lá da qual se abria sem fim que se conhecesse. Atlas, recorde-se ainda, era o gigante da mitologia grega que transportava o Mundo às costas, mais tarde petrificado naquelas montanhas.

O mar, no sentido mais amplo, é um sistema dinâmico e complexo, alimentado por forças incomensuráveis que quase nunca dominamos, cuja acção sobre o litoral busca, constantemente, um equilíbrio de coexistência nunca alcançado à escala do tempo geológico, embora aparentemente estável no tempo de vida humana.

O estudo científico dos mares, incluindo o dos seus fundos, desde as faixas litorais às profundidades ultra-abissais, teve início no século XIX com o navio oceanográfico “Challenger”, nas suas viagens de circum-navegação entre 1862 e 1939. Este estudo, em grande parte resultante de cooperação internacional, foi continuado, após a II Guerra Mundial, com o apoio de vários navios de diversos países, entre os quais se destacou o “Glomar Challenger”, bem equipado com material científico e de sondagens nos grandes fundos oceânicos, um laboratório flutuante que navegou e operou até finais do século XX. Este outro navio oceanográfico cumpriu um importante programa, conhecido pela sigla DSDP (“Deep Sea Drilling Project”), tendo-se-lhe seguido o navio “Joids Resolution”, com o “Ocean Drilling Project” (ODP), igualmente em apoio a projectos internacionais essencialmente na área da geologia marinha. Numa fase (anos 80 e 90) em que António Ribeiro, João Alveirinho Dias e eu, na qualidade de director do Museu Nacional de História Natural, dirigíamos vários projectos de Geologia Marinha, com o apoio de Mário Ruivo e o financiamento da JNICT, Portugal aderiu a este Projecto, através de um convénio assinado pelo então Ministro da Ciência e da Tecnologia, para nós, cientistas, nunca esquecido Prof. José Mariano Gago.

Centenas de perfurações e milhares de testemunhos de sondagens, estudados ao pormenor, dão-nos hoje uma visão bem mais ampla e precisa do que a que tínhamos em meados do século XX. A Geologia Marinha, ou Oceanografia Geológica, é hoje uma disciplina científica bastante desenvolvida, sendo interessante assinalar que foi a partir do estudo dos fundos oceânicos que se encontrou a explicação da dinâmica global da Terra, hoje bem interpretada na Teoria da Tectónica de Placas. Também os conhecimentos que hoje dispomos acerca da sedimentogénese marinha têm-nos permitido conhecer o significado da grande maioria das séries e sequências sedimentares litificadas, das mais antigas (Pré-câmbricas) às mais recentes, que integram a crosta continental. Nesta caminhada, a sedimentologia experimentou novos caminhos com a utilização de “sonars”, amostradores de sedimentos, obtenção de imagens através do ROV (“Remote Operate Vehicle”), reflexão sísmica contínua, mergulhos tripulados em submersíveis especiais e sondagens em quaisquer tipos de fundos.
A. Galopim de Carvalho

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