Meu Prefácio a O Abandono de Deus, que acaba de sair nas Edições Paulinas:
Embora não seja entendido
em teologia, considero o padre checo Tomás Halík um dos maiores teólogos
contemporâneos. Pelo menos é o autor que, na minha modesta opinião, mostra maior capacidade para se dirigir,
usando uma linguagem compreensível, a uma audiência vasta e variada, incluindo tanto
crentes como não crentes. Nascido no pós
guerra, em 1948, no seio de uma família checa sem prática religiosa, no tempo
em que o ateísmo era “religião oficial” na Checoslováquia, ele próprio tem a
experiência da transição de não crente a crente católico. Para isso
contribuíram leituras do escritor inglês, também ele convertido ao catolicismo,
G. K. Chesterton. O que o atraiu no catolicismo, confessa Halík, foi ela ser a “religião
do paradoxo”, tal como transparece em autores como Santo Agostinho (um outro
convertido), Blaise Pascal, Soren Kierkgaard, G. K. Chesterton ou Graham Greene.
Halík foi ordenado padre clandestinamente na Igreja Subterrânea do Leste europeu,
mas hoje, após a queda do muro de Berlim, é professor de Sociologia e de
Teologia na Universidade Charles em Praga, para além de capelão universitário. Recebeu
vários prémios e distinções, como recentemente o grau de doutor honoris causa na Universidade de Oxford,
no Reino Unido, juntamente com, entre outros, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar
e o economista americano Paul Krugman.
Chesterton escreveu sobre
a conversão: “Esta é uma das mais comuns
e enganadoras ilusões acerca do que acontece a um convertido. De modo
atabalhoado, as pessoas confundem o testemunho normal dos convertidos acerca
de terem encontrado a paz moral com a ideia de terem atingido o repouso mental,
no sentido em que o repouso tem de inacção... Porém, tornar-se católico não é
deixar de pensar, mas antes aprender a pensar.” Pode dizer-se que
a teologia de Halík é um bom exemplo do pensamento activo, ao contrário de
muita teologia que parece pensamento passivo (cito de novo Chesterton, “a teologia não passa do pensamento aplicado
à religião”). Pensar, a respeito da crença em Deus ou da sua falta, não
pode deixar de ser um processo multifacetado e de enorme complexidade, onde o
paradoxo acaba por ser uma solução inescapável. Neste livro, na senda de outros
seus livros publicados com merecido êxito em português (Paciência com Deus, A Noite do Confessor, O meu Deus é um Deus ferido
e Quero que Tu sejas!, todos eles
editados entre nós pela Editora Paulinas), Halík fala da falta de crença – o
ateísmo, ao qual podemos associar o agnosticismo - de um modo paradoxal.
Trata-se de um pensamento que provoca, que nos faz pensar: para ele, a crença
enriquece-se com a descrença, assim como a descrença se enriquece com a crença.
Para ele, uma pessoa poderá ser, em graus variáveis de indivíduo para indivíduo
e no mesmo indivíduo com o decurso do tempo, simultaneamente crente e descrente.
Quer dizer não há crentes e não crentes, há simplesmente pessoas.
Anselm Gruen, por seu
lado, é um monge beneditino que se tornou um dos teólogos actuais mais
conhecidos em todo o mundo. Nascido em 1945 entrou aos 19 anos na abadia de Münsterschwarzach, perto de Wuerzburgo,
na Alemanha, onde ainda hoje reside. Ao contrário de Halík, a sua família era
religiosa, podendo ter sido influenciado por um tio padre e duas tias freiras,
todos eles beneditinos. Estudou Filosofia, Economia e Teologia, tendo obtido um
doutoramento nesta disciplina sob a orientação do famoso jesuíta alemão Karl
Rahner. Em numerosos livros, cursos e palestras ganhou fama de excelente
comunicador. Tem o dom da palavra! Um bom
indicador é o facto de dezenas dos seus livros estarem traduzidos em 35 línguas
por esse mundo fora. Em Portugal (na Editora Paulinas, saíram até agora duas
dezenas de obras, incluindo Deus, Quem és
Tu?, O Que Vem Depois da Morte?, Que Fiz eu para Merecer Isto? e O Livro das Respostas, o que não passa
de uma pequena fracção dos seus mais de trezentos livros). Mais do que um pregador católico, é um conselheiro espiritual que consegue
ultrapassar as fronteiras da sua religião. Talvez isso explique que, em certos
círculos católicos, as suas posições, designadas por “humanismo transcendental”,
sejam vistas com alguma desconfiança.
Winfried Norhoff, nascido em 1951, estudou Germânicas
e Teologia na Universidade de Tuebingen para se tornar jornalista especializado
em temas religiosos e depois editor e autor nestes temas. É dele o mérito de reunir
duas figuras tão notáveis da teologia contemporânea, cujos textos sobre o teísmo
e o ateísmo se intercalam aqui para
desembocarem num diálogo entre os dois.
Diga-se desde já que
existe um grande acordo entre os dois autores principais sobre a relevância e
significado do ateísmo no quadro de um catolicismo aberto à realidade de hoje
que os dois representam. Partindo de experiências pessoais bastante distintas,
ambos pugnam por uma abertura da Igreja aos descrentes, isto é, aos mais descrentes
do que aqueles que se reconhecem na Igreja. Os mais crentes e os mais descrentes
ganham em falarem entre si. O subtítulo esclarece quanto à intenção comum: “Quando
a crença e a descrença se abraçam.”
Hálik começa por analisar o que significa
ateísmo: a-teísmo = recusa do teísmo. Mas pergunta ele logo de início: que Deus
se está a recusar? Para o padre checo não há dúvida de que existem ideias de
Deus perfeitamente recusáveis e que algumas dessas ideias estão ainda hoje
presente no interior da Igreja. Para ele é Deus mistério, o que implica evidentemente
procura, pelo que as certezas acerca de Deus poderão ser obstáculos à
verdadeira religião. Halík não receia não só ler com atenção como tentar perceber
os maiores descrentes. Parte até do famoso texto do louco de A Gaia
Ciência de Friedrich Nietzsche, escrita entre 1881 e 1887, que anuncia de
um modo poético mas imperativo a “morte de Deus”:
“O louco saltou para o meio deles e trespassou-os
com o olhar. ‘Para onde foi Deus?’, exclamou, ‘é o que eu lhes vou dizer.
Matámo-lo – vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos! Mas
como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja
para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos nós quando desprendemos a corrente
que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós
próprios? Longe de todos os sóis? Não
estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para
todos lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos
na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada
vez mais noites? Não será preciso acender
os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem
os coveiros que enterram Deus?
Nietzsche retomou o tema da
morte de Deus em Assim falava Zaratustra e
em Anti-Cristo. Ao contrário do que é
vox populi no mundo cristão, para
Halík o filósofo alemão que declarou o óbito da divindade pode ser uma luz para os crentes em vez de ser um
porta-voz das trevas: “Quando Nietzsche surge como um crítico do cristianismo,
essa crítica pode ser muito útil aos cristãos; quando Nietzsche se revela um
inimigo do cristianismo, então os cristãos devem alegrar-se por terem um tal
inimigo, um inimigo que perturba e faz pensar”. Num discurso que proferiu em 2016 na Capela da
Universidade de Coimbra, Halik estabeleceu mesmo um paralelo entre Nietzsche e
a sua contemporânea Teresa de Lisieux, a freira carmelita francesa mais conhecida
entre nós por Santa Teresinha do Menino Jesus. Tanto Nietzsche, que morreu
louco tal e qual o seu personagem, como Santa Teresinha viraram as costas a um
tempo que, do ponto de vist5ra religioso, se caracterizou pela ênfase no pecado
e na piedade. E, lembrou Halík em Coimbra (relembrando-o neste livro), Santa
Teresinha passou no período final da sua vida, quando estava atormentada pela
tuberculose, pela dura experiência da “noite escura da alma” (a expressão é do
poeta carmelita espanhol S. João da Cruz), que consistiu em imaginar-se a
partilhar a mesa e o pão com os descrentes, ela própria descrente não em Deus
mas na vida eterna concedida por Deus. Houve, portanto, momentos de íntima solidariedade
da crente com os descrentes. Declarou a mística, pouco antes de morrer aos 24
anos: “O meu Céu é sorrir a esse Deus que eu
adoro, quando Ele se quer esconder para testar a minha fé". Para Halík o combate entre crença e descrença
“não é o combate entre duas equipas equipadas com camisolas de cores
diferentes, mas sim e frequentemente um diálogo ou um conflito dentro de um
coração ou espírito humano.” Isto
porque, diz ele, “o mundo e a vida
são ambivalentes e polifacetados”. Modernamente, é conhecido o caso de Madre
Teresa de Calcutá, a freira albanesa que fundou a Congregação das Missionárias
da Caridade, que, sabe-se hoje, foi assediada pela descrença ao longo de mais
de quatro décadas. Declarou ela:
"Onde está minha fé? Mesmo lá no fundo ... não
há nada, mas vazio e escuridão... Se há Deus, por favor perdoa-me. Quando tento
levantar os meus pensamentos para o Céu,
há um vazio tão convincente de que esses mesmos pensamentos regressam
como facas afiadas e ferem a minha alma."
Essas dúvidas não impediram, contudo, a sua subida aos altares…
Gruen parte não de Nietzsche mas do filósofo alemão igualmente oitocentista
Ludwig Feuerbach, para quem a ideia de Deus não passaria de uma “projecção
humana” (o médico austríaco Sigmund
Freud diria mais quando falou de uma “ilusão humana”). Mas concorda no
essencial com Halík, como se deprende da
sua afirmação: “Tenho que estar consciente de que no meu coração existem sempre
dois pólos: crença e descrença.” Para
ele, assim como para o seu mestre Rahner, as provas clássicas da existência de
Deus não poderão nunca convencer um ateu. Para Rahner, Deus é um “mistério indescritível
e incompreensível”. A crença é atingida por meio de uma experiência interior, não
do tipo lógico-racional, mas de um tipo assaz diferente ao qual a teologia
chama graça, um dom que pode ser inato
ou adquirido. Que Deus está para lá da razão ficou claro após Santo Agostinho
ter escrito: “Se compreendeis não é Deus”.
Gruen cita o filósofo francês ateu de nossos dias André Comte-Sponville,
“o ateu pode renunciar a Deus, mas não à espiritualidade”, pelo que existe uma
espiritualidade sem Deus. O homem, para esse filósofo, é “finito, aberto ao infinito”, sendo a espiritualidade precisamente essa
abertura ao infinito. Faltará muito pouco ao ateu para chegar a Deus, parece
que apenas o nome de Deus. Claro que a questão não é assim tão simples, pois Deus
não é uma coisa, nem uma pessoa semelhante ao ser humano, apesar de, na Bíblia,
estar escrito que o homem foi feito “à imagem e semelhança de Deus”. Há várias
ideias de Deus para diferentes crentes. E algumas afastam-se bastante do ser humano.
Para Albert Einstein, o físico nascido na Alemanha que representa os mais altos
cumes do pensamento científico no século XX, não existia um Deus pessoal, capaz
de falar aos homens como podemos ler no Novo Testamento. O sábio, apesar de
descrente num Deus pessoal, era crente num Deus definido, à maneira do judeu
heterodoxo Bento Espinosa, como a harmonia universal, a beleza e simplicidade
das leis da física.
O Cristianismo é, para Halík, a religião dos paradoxos. Para Chesterton,
Jesus Cristo é o “melhor Deus para os ateus”, uma vez que, se estes tivessem de
escolher uma religião, deveriam preferir uma em que Deus, ainda que por um só momento,
se revelou ateu. O escritor refere-se ao
famoso momento quando Cristo exclama na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?” Halík, no Abandono de Deus, cita o cardeal e
teólogo jesuíta checo Tomás Spidlík para chamar aos cristão ex-ateus: “Também
nós cristãos fomos ateus durante 400 anos”, frase que significa que os cristãos
primitivos eram considerados ateus por recusarem a religião romana. Na mesma
linha paradoxística, Halík cita ainda Ernst Bloch, o filósofo alemão, marxista e
ateu: “Só um ateu pode ser um bom
cristão, sendo não menos certo que só um cristão pode ser um bom ateu”. Está
aqui bem patente a união dos contrários. Vêm-me à mente as palavras, num
contexto completamente diferente (o da filosofia da física quântica, no quadro
da qual uma onda é uma partícula e uma partícula é uma onda), do físico
dinamarquês Niels Bohr: “o oposto de uma
grande verdade é outra grande verdade.”
Gruen conclui muito justamente que, para crentes e não crentes, existem
espaços de trabalho conjunto, espaços de convivialidade e construção de futuro:
a espiritualidade decerto, mas também a protecção do ambiente (em defesa da
casa comum que é o planeta), a construção da paz, a procura da justiça e a solidariedade
e, finalmente, o gosto pela cultura e pela beleza. Sobre a justiça e a solidariedade,
Gruen não tem dúvidas de que “na luta
contra o sofrimento, na luta por um mundo mais justo, os cristãos e os os ateus
podem actuar em conjunto”. Dá um belo
exemplo retirado do romance A Peste
do francês Albert Camus. O médico ateu, o Doutor Rieux, luta contra a peste
bubónica, ao lado do padre católico Paneloux. Quando uma criança acaba por morrer,
não resistindo à enfermidade, o padre diz que acaba de compreender o que é a
graça. Responde-lhe o médico:
“– É o que eu não
tenho, bem sei. Mas não quero discutir isso consigo. Trabalhamos juntos por
qualquer coisa que nos une para além das blasfémias e das orações. Só isso é
importante”.
O resto do diálogo não está neste livro. Mas
eu, motivado pela leitura de Abandono de
Deus, fui reler Camus. A história continua
assim:
“Paneloux sente-se junto
de Rieux. Parecia comovido.
– Sim - disse ele -, é verdade, também o senhor trabalha para a salvação do
homem.
Rieux tentou sorrir.
– A salvação do
homem é, para mim, uma palavra demasiado grande.. Não vou tão longe. É a sua saúde que me
interessa, é a sua saúde em primeiro lugar.
Paneloux hesitou.
– Doutor... – disse
ele.
Mas deteve-se. Também
sobre a sua fronte o suor começava a correr. Depois murmurou: «Adeus» e os seus
olhos brilhavam quando se levantou. Ia partir quando Rieux, que reflectia, se levantou
também e deu um passo para ele.
– Perdoe-me, mais
uma vez. Isto não voltará a repetir-se.
Paneloux estendeu a mão
e disse com tristeza:
– E, contudo, não o
convenci.
– Que importância
tem isso? - respondeu Rieux. - O que eu odeio é a morte e o mal, bem sabe.
E, quer queira, quer não, estamos juntos para os sofrer e combater. - Rieux segurava a mão de Paneloux. – Bem,
vê, disse, evitando fixá-lo -, nem mesmo Deus pode agora separar-nos.”
Sim, lido este estimulante livro, fácil será concluir que nem o próprio Deus
pode separar crentes e descrentes.
1 comentário:
"Porém, tornar-se católico não é deixar de pensar de pensar, mas antes aprender a pensar.”
O autor deve achar que os ateus não sabem pensar. Vamos encontrar também no livro que não têm valores morais? Parece provável julgando pelo nível da argumentação.
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