quinta-feira, 2 de março de 2017

Os novos perfis da 5 de outubro


Na imagem: Zeus empunhando uma esfregona primitiva do tipo Vileda


Mais um governo — mais uma equipa educativa. Mais uns papéis; mais umas orientações. Agora é um perfil, a substituir umas metas.

Temos sorte: temos Deus a zelar pela instrução pública. Chama-lhe «Educação», para distinguir, para partilhar. (Partilha-se — Deus também partilha.)

 Deus assume, como cabe a todos os Deuses, variadas formas e tem variados nomes: é Lurdes, é Nuno, é Tiago. Destes Deuses (recentes) ainda recordo o nome. Dos antigos ainda vou lembrando Zeus (passa no cinema), Vénus (tipo de camisa), Neptuno (no largo da Estefânia) e Pelotão (na Volta à França).

 Os Deuses fazem o seguinte na «Educação»: pegam em questões simples (para início de conversa) — ensinar a ler; ensinar a escrever; ensinar a contar — e transmutam-nas em questões complicadas: educar para a cidadania; lançar projetos interdisciplinares; aprender a aprender; recusar visões fragmentadas com recurso à aprendizagem de metodologias de visão de conjunto. (Quê?: o terceiro olho? A visão à boca do caldeirão, na fumaça que se evola?)

 Os Deuses estão atentos às humanidades (é natural, sabendo nós quanto eles se marimbam para as desumanidades), o que se percebe logo quando exprimem o seu sobressalto perante o mundo em constante e rápida mudança. O facto de assim o exprimirem demonstra que não o entendem e se sentem inquietos. Isso, por sua vez, denota que não têm uma cultura Clássica, que perspetiva o Mundo por milénios, e não por minutos. É daí que lhes vem sentirem muito a falta das humanidades. Pensam que pôr umas horas de Escola Pública nas Humanidades, retirando-as do ensino das Ciências e das Matemáticas, é um bom ato divino. Bom: será um ato, o que já é qualquer coisa (dêmos 10 pela participação).

 Mas é um ato falhado — que Freud me perdoe a graçola —, porque um dos grandes dramas das Ciências e da Matemática é serem completamente, exclusivamente, «Humanidades». Não há mesmo mais «humanidade» do que isso que, no género, só é comparável ao amor pela História da Grécia, pelos sonetos de Camões ou pelas Partitas de Bach.

 Os Deuses parecem andar — tipo — perdidos, man. (MAN também é uma marca de camiões alemães; perdem-se, por vezes, no Paris-Dakar.) Mas olhem que não, soutoures, olhem que não: nós é que andamos todos perdidos, e Deus (o de agora, nem mais nem menos do que os outros) quer mesmo é o nosso bem… que só Ele sabe qual é. E o nosso bem é esta cidadania, é esta área de projeto, é este perfil, e este gastar de recursos humanos e financeiros a pagar a política do dia, que é aquela que é porque Deus sabe mais do que nós, mortais.

 E toca a deixar a indelével marca do Edgar Morin numa ou duas gerações de miúdos, em vez de os ensinar a amar a Literatura e as Artes Visuais, a Geometria e a Música, o Desporto e a Natureza, a Geografia e a História, a Aritmética e a Álgebra, e a comunicar discutindo, e desenhando, e narrando, e tocando, e — duma maneira geral — pintando a manta e crescendo COMO LHES CALHAR — e não como Deus quer!

 Este Deus não usa ceptro: é uma esfregona: a grande esfregona da 5 de outubro torna a atacar! De balde. Nunca debalde.

 Verguemo-nos, portanto, a mais este lavajar divino!

 Tal como os outros, ainda antes de aplicado, já começou a evaporar-se da memória.

 E venha outro Deus.

António Mouzinho

(professor recém-aposentado, no desfrute com mais uma evidência, por parte do Ministério da Educação, de que uma equipa de gente individualmente estimável pode produzir sem vergonha, na confusão coletiva, um documento vergonhoso de inanidade conceptual; e que, de novo — tendo já posto a nossa bolsa —, põe à prova a nossa paciência!)

4 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Parabéns, António Moutinho, pelo humor certeiro e pela indignação. Documento vergonhoso 'indeed'.

Mas esses deuses não passam de criaturas com cabeça de galinha - não de falcão como os antigos assírios - deuses de aviário para consumo rápido. Podem fazer muito mal, e têm feito, mas temos sempre a consolação que daqui a 4 anos vêm outros desfazer tudo, eh eh.

Pena tenho que escreva em acordês. "Ato" é tao feio, tão cabeça-de-galinha...

Mário R. Gonçalves disse...

Mouzinho, perdão :(

Tink disse...

De acordo com o António Moutinho, que sabe do que fala e fá-lo com graça, embora o assunto seja muito sério. Continuamos a fazer e desfazer para mal dos alunos e da Escola Pública. Quanto aos professores vai ser o costume- de início barafustam (uns mais do que outros...) e depois acomodam-se.

Estou de acordo com o Mário. Custa-me muito ver um texto em que se valoriza as "Humanidades" escrito em "Acordês". Mude lá o correCtor ortográfico. Ou também se acomodou às ordens da 5 de Outubro?

marina disse...

pois , é que esses deuses são deuses menores :) e recebem salários para ocupar postos redundantes , e há que disfarçar a inutilidade para justificar o salário... e então , vai daí , complicam o simples e transformam a educação ( e outras olimpos públicos ) no labirinto do minotauro .

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...