segunda-feira, 27 de março de 2017

PORQUE HÁ ALGO EM VEZ DE NADA


Meu artigo na última As Letras entre as Artes:

 O título de cima é o subtítulo de um livro que acaba de ser publicado na Gradiva, na sua colecção “Ciência Aberta”, da autoria do astrofísico norte americano Lawrence M. Krauss. O título do livro é “Um Universo vindo do nada”. O original saiu em 2012 na Atria Books, uma chancela da Simon Schuster, e, nos cinco anos que mediaram até à edição em Portugal, a obra desencadeou várias polémicas. A tese principal do autor é que a cosmologia moderna permite responder a uma velha questão filosófica, uma questão que começou a ser pensada por Parménides, no século V a.C. e que chegou até aos nossos dias, passando por Leucipo, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Sartre e Heidegger, entre outros grandes pensadores. A questão, uma das questões mais difíceis que a metafisica trata, consiste primeiro em saber o que é o nada e depois em saber se do nada se pode passar ao ser, uma vez que os dois parecem ser opostos. O pré-socrático Parménides achava que o nada não podia existir, ao passo que atomista Leucipo aceitava o vazio, no qual se movimentam os átomos (o seu seguidor Demócrito disse “Tudo e átomos e espaço vazio”). Para Aristóteles não existia o nada, mas sim o espaço como contentor do ser. Descartes, um não atomista, voltou a Parménides, negando a noção de vazio. Para Hegel, um dialéctico, “o absoluto é puro ser”, mas, contrastando essa tese com a contrária, “o absoluto é nada”, chegou à síntese: “o absoluto é transformação”. Para Kant a existência do nada era uma falsa questão. Para Sartre (autor de O Ser e o Nada), “o nada persegue o ser”, o que significa que o ser precede o nada. Finalmente, para Heidegger (autor de O Ser e o Tempo): “A ciência nada quer saber do nada”.

Ora a ciência moderna quer saber do nada. Ela fala do nada, identificando-o com o vazio ou vácuo. Para Krauss, o Universo terá surgido de uma flutuação espontânea do vazio primordial, uma espécie de pequena bolha que se alargou irreversivelmente. Perante a avalanche de questões que teve de enfrentar Krauss apercebeu-se, se é que o não sabia já, que o nada da filosofia era diverso do vazio da física. De facto, ao longo da história da ciência, muitos conceitos que eram apenas metafísicos passaram a ser físicos (por exemplo, o conceito de átomo). De acordo com o astrofísico, o Universo teve uma criação espontânea ou natural, sendo por isso Deus prescindível. Não admira por isso que o livro tenha suscitado tantos debates por esse mundo fora. A agravar o caso estava o facto de o biólogo Richard Dawkins, autor de O Relojoeiro Cego e de A Desilusão de Deus ter escrito um posfácio para o livro de Krauss comparando-o à Origem das Espécies de Darwin, uma comparação que o próprio autor considerou exagerada. Recorde-se que Dawkins tem sido um paladino do chamado moderno ateísmo, um ateísmo pretensamente baseado na ciência.

Krauss tenta enquadrar a sua discussão, afirmando no prefácio à nova edição:

“Quando perguntamos ‘Porque há algo em vez de nada?’, queremos de facto dizer ’Como é que há algo em vez de nada?’ Isto traz nos à segunda confusão gerada pela minha escolha de palavras. Existem muitos «milagres» aparentes da Natureza que parecem tão assustadores que muitos desistiram de tentar encontrar uma explicação para o modo como surgimos e, em vez disso, atribuem a responsabilidade a Deus. Mas o que realmente me interessa e que a ciência pode realmente abordar é a questão de saber como é que todas as «coisas» do Universo puderam vir de nenhuma «coisa», e como, se se preferir, a ausência de forma gerou forma. É isso que me parece tão espantoso e contra intuitivo. Parece violar tudo o que sabemos sobre o mundo — em particular o facto de a energia, nas suas várias formas, incluindo massa, ser conservada. O senso comum sugere que «nada», no sentido de ausência de «algo», deveria ter zero de energia total. Por conseguinte, de onde vieram os 400 mil milhões ou mais de galáxias que compõem o Universo observável?"

A resposta, dada no corpo do livro, é que o vácuo de onde o Universo veio tem energia. O vazio absoluto dos antigos atomistas foi substituído na ciência moderna por um vácuo quântico, um estado que que pode ter as tais flutuações espontâneas de energia. Respondeu aos filósofos e teólogos no prefácio da edição original ao sustentar que a ideia vaga de vazio tinha de ser substituída pelo vazio da física:

 “Da mesma forma, alguns filósofos e muitos teólogos definem e redefinem «nada» como não sendo qualquer uma das versões do nada que os cientistas descrevem actualmente. Mas, na minha opinião, é aí que reside a ruína intelectual de muita da teologia e de alguma da filosofia moderna. Pois ‘nada’ é seguramente tão físico como ‘algo’, especialmente se for definido como a ‘ausência de algo’. Cabe nos então compreender, de forma precisa, a natureza física de ambas as quantidades. E sem ciência qualquer definição não passa de meras palavras. Há um século, se alguém descrevesse ‘nada’ como o espaço vazio, sem qualquer entidade material real, talvez não enfrentasse grande oposição. Mas os resultados do século passado ensinaram nos que o espaço vazio está, na verdade, longe do nada intacto que supusemos antes de percebermos melhor como a Natureza funciona. Agora, os críticos religiosos dizem me que eu não me posso referir ao espaço vazio como «nada», mas antes como um ‘vácuo quântico’, para distingui-lo do «nada» idealizado dos filósofos ou teólogos."

 Um livro muito estimulante para ficar a conhecer quais são os actuais limites da física. Onde é que ela acaba e começa a filosofia? E onde é que a filosofia acaba para dar lugar a teologia?


-  Lawrence M. Krauss, “Um Universo Vindo do Nada”, Lisboa: Gradiva, 2017.

7 comentários:

Anónimo disse...

A gente lê isto e ... fica na mesma.
Por que razão existem coisas e o que significa existir?

Carlos Ricardo Soares disse...

Bem, decidam lá então, cientificamente, o que querem dizer com a palavra nada e depois conversamos.

Anónimo disse...

Em Matemática é fácil dar resposta: existe tudo aquilo que é precedido por um E virado ao contrário. Se estiver traçado, não existe.

Anónimo disse...

"E sem ciência qualquer definição não passa de meras palavras" - podiam definir ciência sem palavras? Qual é definição científica de ciência? Qual é a definição científica de "definição"? A definição de "nada" (ou melhor, vazio) é igual em todas as ciências? Um conjunto vazio é o mesmo que espaço vazio?

Será que não sabem que "nada", "vazio", "vácuo", "não-ser", "não-existir" são termos com significados distintos?

Anónimo disse...

1 - Ainda balbuciamos;
2 - A subespécie "homo sapiens sapiens" desaparecerá antes de falar fluentemente;
3 - Entretanto, balbuciemos: vale bem a pena.

Anónimo disse...

Não nos deveríamos impressionar com muitos "pensamentos" de filósofos: grande parte das proposições mais ou menos "profundas" deles são "verdadeiras" lapalissadas.

Anónimo disse...

Ponham "deus" onde está "nada"; "zerem" as grandezas que lhe queiram atribuir: as equações da Física ainda "funcionarão". Provavelmente baixará o número de infelizes e "protestantes".

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...