segunda-feira, 20 de março de 2017

O UNIVERSO QUE NOS VIU NASCER

Publico o início do meu artigo que acaba de sair na revista THEOLOGICA, 2.ª série, 51, 1 (2016), que corresponde a uma palestra que fiz em 2016 na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica em Braga.

RESUMO

Partindo das “últimas notícias” sobre o Universo – o anúncio em 2016 da primeira detecção de ondas gravitacionais. Descrevem-se as ondas e os objectos que lhes dão origem: os buracos negros. Tanto as ondas gravitacionais como os buracos negros foram previstas há um século no quadro da teoria da relatividade geral de Einstein. Também a teoria do Big Bang – que é, de certo modo, um enorme “buraco branco” – emergiu no mesmo quadro. Como houve um movimento de considerar que a teoria do Big Bang vinha legitimar científica o relato da Criação do Génesis, sumaria-se a evolução das relações da ciência com a religião,tyendo como base as posições sobre esse assunto dos grandes astrónomos e cosmólogos como Galileu, Newton, Einstein, Lemâitre, Hubble e Hawking. Discutem-se, em particular, as posições de Lemaître (que, sendo físico e padre católico, defendeu a separação entre ciência e religião), Einstein (autor de uma muito especial “religião cósmica”)  e Hawking (um cientista ateu, que fala de Deus nos seus livros). A conclusão é, na linha do que afirmou Lemaître, que ciência e religião são independentes, mas compatíveis.

PALAVRAS-CHAVE

Universo, Ondas gravitacionais, Big Bang, Ciência, Religião

“Fascinante e tremendo: o Universo que nos viu nascer” foi o título que o núcleo de Braga da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa me propôs para uma conferência sobre a cosmologia actual na Semana de Estudos Teológicos realizada em Fevereiro de 2016. O nosso Universo é, de facto, fascinante, isto é,  tem cativado a atenção dos seres humanos desde que eles existem na Terra, e, em resultado das suas continuadas e cuidadas observações, modernamente servidas por poderosos meios tecnológicos, a conclusão é que o Universo onde vivemos é tremendo, isto é, enorme e extraordinário. Não sabemos o tamanho do Universo (provavelmente é infinito), mas, na imensidão do espaço vazio, verificámos que ele é um cenário de permanente transformação: vemos estrelas que nascem, vivem e morrem, sempre em movimento, agrupadas em galáxias, também elas em rodopio incessante. O terceiro planeta a orbitar uma estrela média numa galáxia média, entre muitas outras, visto um pouco ao longe (ainda dentro do sistema solar) não passa de um “ponto azul-claro”, conforme lhe chamou o astrofísico americano Carl Sagan [[1]]. Observado mais ao longe, nem sequer se vê. Inspirado numa foto do sistema solar tirada nos confins desse sistema, a 6,4 mil milhões de quilómetros da Terra, pela sonda Voyager 1 a 14 de Fevereiro de 1990, na qual a Terra aparecia como um minúsculo ponto azulado, Sagan comentou numa conferência que realizou na sua Universidade de Cornell em 1994 [[2]]:

Conseguimos tirar essa fotografia e, se a a olharem, vêem um ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele viveram todas as pessoas de que ouviu falar, todas as pessoas que jamais existiram. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas económicas confiantes, cada caçador e colector, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilizações, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, cada criança cheia de esperança, cada inventor e explorador, cada professor de moral, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e cada pecador na história da nossa espécie viveram ali - num grão de pó suspenso num raio de sol.
A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto. Quão frequentes os seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida.
O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios.”

Não foi o caso de Sagan, que era ateu, mas o fascínio do Universo não raro leva a uma resposta religiosa a respeito da existência do Universo e do homem. O filósofo e cientista francês Blaise Pascal­ escreveu nos seus Pensées [[3]]:­­­­

“Ante a cegueira e a miséria do homem, diante do universo mudo, do homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido nesse rincão do universo, sem consciência de quem o colocou aí, nem do que veio fazer, nem do que lhe acontecerá depois da morte, ante o homem incapaz de qualquer conhecimento, invade-me o terror e sinto-me como alguém que levassem, durante o sono, para uma ilha deserta, e espantosa, e aí despertasse ignorante de seu paradeiro e impossibilitado de evadir-se. E maravilho-me de que não se desespere alguém ante tão miserável estado. Vejo outras pessoas ao meu lado, aparentemente iguais; pergunto-lhes se se acham mais instruídas que eu, e me respondem pela negativa; no entanto, esses miseráveis extraviados se apegam aos prazeres que encontram em torno de si. Quanto a mim, não consigo afeiçoar-me a tais objetos e, considerando que no que vejo há mais aparência do que outra coisa, procuro descobrir se Deus não deixou algum sinal próprio.
O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora. Quantos reinos nos ignoram!”

Mais modernamente, no século XX, um outro filósofo e cientista, o padre jesuíta francês Teilhard de Chardin, escreveu em L’Apparition de l’Homme [[4]]: “Na escala do cosmos só o fantástico tem condição de ser verdadeiro.”

Neste texto, baseado naquela conferência, começo por apresentar algumas das últimas notícias vindas do cosmos – a detecção de ondas gravitacionais emitidas pela colisão de dois buracos negros, que ilustra precisamenty a afirmação de Teilhard de Chardin – para depois expor resumidamente a actual visão científica da criação do mundo, que assenta principalmente nos trabalhos do físico suíço e norte-americano Albert Einstein, do astrofísico e padre belga George Lemaître e do astrónomo norte-americano Edwin Hubble. Comentarei no fim as relações da ciência física com a teologia, partindo das visões e vivências religiosas dessas grandes figuras. Para uma discussão mais alargada sobre ciência e religião, no contexto da cosmologia, remeto para outros escritos, de autores de referência [[5]] , ou meus. [[6]].


(...)


[1] Carl Sagan, O Ponto Azul-Claro. Uma visão do futuro do homem no espaço, Lisboa: Gradiva,  1995.

[3] Fragmento 72 do livro “Pensamentos” de Blaise Pascal. Extraído do volume Pensadores Franceses”da coleção Clássicos Jackson, vol. XII. Rio de Janeiro, S. Paulo e Porto Alegre: W.M. Jackson, 1952. Tradução de J. Brito Broca e Wilson Lousada. Disponível em http://revistacarbono.com/artigos/01o-homem-perante-a-natureza/

[4] Teilhard de Chardin: L’Apparition de l’Homme, Paris, Editions du Seuil, p. 234. Tradução minha.

[5] Enciclopédia Interdisciplinar de Ciência e Fé. Cultura Científica. Filosofia e Teologia, vol. I Agno-Wepis, Lisboa: Verbo, 2008  (Manuel da Costa Freitas, coord.). Ver, em particular, os artigos “Cosmologia”, de William R. Stoger, pp. 386-401, “Cosmos, Observação do”, de F. Duccio Machetto, pp. 401-411,  e  “Criação”, de Giuseppe Tanzela-Nitti, pp. 411-432;  The Cambridge Companion to Science and Religion, Peter Harrison (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 2019; e Hans Kueng, O Princípio de Todas as Coisas, Ciência e Religião,  Lisboa: Edições 70, 2011.

[6] “Ciência e Religião” (debate com o bispo do Porto, D. Manuel Clemente, na Reitoria da Universidade do Porto em 2009) http://dererummundi.blogspot.pt/2010/02/ciencia-e-religiao.html ; Carlos Fiolhais, “Em Busca de Sentido: Ciência e Religião”, in  Secretariado Diocesano da Evangelização e Catequese. Em busca de Sentido: Ateísmo e Crença na Construção da Pessoa que Ama,  Gráfica de Coimbra 2, 2011, pp. 45-61; C. Fiolhais, prefácio a Bruno Nobre e Pedro Lind, Dois dedos de conversa sobre o dentro das coisas, Braga: Frente e Verso, pp. 15-21; Carlos Fiolhais, “A ciência e o divino”, in Deus ainda tem futuro?, Anselmo Borges (coord.), Lisboa: Gradiva, 2014, pp. 53-70.


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