terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

CIÊNCIA EM PALCO: A ÚLTIMA PEÇA DE GONÇALO WADDINGTON

Meu artigo no último número do "Artes entre as Letras":


 Gonçalo Waddington é um actor português justamente conhecido da suas múltiplas aparições no teatro, do cinema e da televisão. Menos conhecido é que ele é o autor de duas peças recentes de teatro de inspiração científica. A primeira, Albertine, o Continente Celeste, estreou a 16 de Setembro de 2014 no Teatro Nacional de S. João, no Porto, e a segunda, O Nosso Desporto Favorito, estreou a 9 de Junho de 2016 no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Os dois textos estão publicados (o segundo numa edição bilingue português-inglês) pela editora Abysmo, de João Paulo Cotrim, na colecção “Palco”, tendo saído respectivamente em 2015 e 2016. A primeira peça apoia-se no romance Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, invocando as concepções científicas do tempo proporcionadas pela termodinâmica, pela teoria quântica e pela cosmologia, ao passo que o segundo, primeiro volume de uma anunciada tetralogia, é uma reflexão sobre a evolução artificial, isto é, a possibilidade de interferência do homem no seu destino como espécie biológica através da manipulação genética.

 Falemos do livro mais recente, O Nosso Desporto Favorito, cuja acção se conta em poucas linhas, sem desvendar alguns aspectos surpreendentes, como a razão de ser do título. Um grupo de cinco cientistas conseguiu, num futuro distante, a proeza de preparar um sucessor da espécie humana, um feto que está a incubar na barriga de um membro do grupo. Não se sabe o que vai a ser esse neohumano, a não ser que se pretenda que tenha inteligência superior, uma constituição física que lhes permitirá resistir aos climas mais desfavoráveis, e reduzida necessidade de alimentação (“Bendito sistema digestivo do Novo-humano, maravilha/ da simplificação anatómica”). Como são apresentadas as figuras desses cientistas, aprendizes de feiticeiro? Em palco estão três homens, Michel (um nome inspirado no do escritor Michel Houellebecq, mas que evoca o de um fraudulento cozinheiro português), o Prudente (o nome denota a necessidade de precaução em manipulações científicas) e o o Viajante em Sonho (que é uma figura onírica, surrealista, capaz de metamorfoses). E há duas mulheres com o nome de deusas, Hera, a deusa do casamento e da fecundidade, que transporta o “homem novo” no seu ventre, e Afrodite, a deusa do amor e da sexualidade. Os homens e mulheres que querem mudar a espécie humana estão evidentemente a fazer de deuses, pelo que não admira que o simpósio entre eles faça lembrar um diálogo de deuses da Antiguidade Clássica. Mas há também uma estranha cadeira falante, que em palco aparece com voz humana e em movimento robotizado. A primeira cena da peça intitula-se De Rerum Natura, como o texto do poeta latino Tito Lucrécio Caro, do século I a.C., que fala da Natureza como um turbilhão de átomos em transformação permanente, entregues como estão a leis naturais. Usando versos ao estilo latino, diz Michel na cena inicial, muito excitado: ”Maravilhem-se com a nossa obra, suplico-vos! /Sintam orgulho nos traços distintivos do Novo-Humano/ Abstractizem a sua aparência! Embeveçam-se com as/ Características anatómicas e fisiológicas da nossa/ Descendência. O futuro da nossa espécie está naquela/ Barriga, fruto do nosso fruto, prodígio da ciência”, explicando pouco depois como a proeza tinha sido conseguida: “Não há genoma que tenha escapado à nossa desencriptação, / tal como, nos tempos primevos da nossa demanda, não houve / Animal que tenha escapado à nossa ajuizada investigação.”

Mas a experiência não vai correr bem. Paira uma tensão latente entre os membros daquele grupo, que devem ter estado fechados num laboratório muito tempo, tensão essa que vai resultar numa explosão primeiro de palavras e depois de violência física. No meio da discussão, agravando-a, Michel faz a proposta de que se abstenham todos de qualquer prática sexual (subeentenda-se que tinha havido grande licenciosidade entre eles). A deusa da amor recusa veementemente a proposta. E é assim que os últimos representantes da humanidade antiga, os construtores do homem novo, se vêem enrodilhados na sua linguagem primitiva e grosseira. Recorrem ao insulto e aos palavrões. Declara Michel: “A linguagem é a base de tudo. Nada existiria sem a linguagem. As civilizações, como as conhecemos, não existiriam.“ A linguagem é também o fim de tudo: a eles nada mais resta do que uma linguagem velha e relha.

 Que imagem nos fica destes cientistas, construtores do “admirável mundo novo”? O teatro é bem mais antigo do que a ciência e, nos tempos da Grécia Antiga, a imagem dos sábios apareceu de duas maneiras, a do ser ambicioso e malvado, que roubou o fogo aos deuses para o dar aos homens, em Prometeu Acorrentado, atribuída a Ésquilo, e a dos também ambiciosos mas sem princípios e um pouco patetas, como os sofistas de As Nuvens, de Aristófanes. No fundo, é a divisão dual do teatro entre tragédia e comédia. No tempo da Revolução científica, quando emergiu a ciência moderna, a ciência apareceu logo em palco e podemos ainda falar deste dois estereotipos: o malvado é representado pelo médico-alquimista que vende a alma ao demónio na tragédia Doctor Faustus (1592), de Christopher Marlowe, ao passo que o pateta é representado pelo astrólogo aldrabão da comédia Albumazar (1615), de Thomas Tomkis. Como se situa a peça de teatro de Waddington? O Nosso Desporto Favorito é uma mistura, uma tragicomédia, pois os personagens oscilam entre o malvado e o pateta. Por muito avançada que seja a sua investigação, estão presos à sua inexorável condição humana. Na penúltima cena (intitulada Symposium - concórdia, indicando a restauração da tranquilidade), Hera já abortou, impedindo a distopia. Michel fala agora de um tempo futuro como um tempo passado, um tempo em que a Terra voltará a ser como dantes, e onde se dará uma ressurreição da vida humana, mas onde, diz ele, “seremos nós, outra vez e sempre”.

Nos últimos anos, em reflexo da crescente influência da ciência e tecnologia na sociedade, tem crescido em todo o mundo o número de peças de teatro que tratam de temas de ciência ou inspirados pela ciência. Não existem muitas peças em Portugal deste tipo e a última peça de Gonçalo Waddington faz-nos reflectir sobre as fantásticas mas também assustadoras possibilidades em aberto na biologia, num tempo em que o uso de técnicas de manipulação genómica, designadamente o CRISPR, está ao virar da esquina. A ciência está cada vez mais nas nossas vidas e o teatro sempre foi o espelho da vida.

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